sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

UM BREVE RETRATO DE MACHADO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 19 de novembro de 2005)

Livro de caráter didático mostra a vida e a obra do grande autor e sua relação com o Rio

Para conhecer Machado de Assis, de Keila Grinberg, Lucia Grinberg e Anita Correia Lima de Almeida. Jorge Zahar Editor, 124 páginas. R$ 24

Mais um livro sobre Machado de Assis. Desta vez, a intenção das autoras é puramente didática, uma autêntica iniciação à vida e obra daquele que é considerado nosso maior escritor. Para quem também se interessa pelo Rio Antigo é um prato cheio, pois além de um mapa da cidade na época há nomes de ruas com a devida atualização e um painel completo do modo de vida da Corte. As autoras optaram por um estilo simples e explicativo, voltado principalmente aos mais jovens, e exploram de forma sutil os aspectos trágicos da vida deste homem que enfrentou todas as dificuldades possíveis e mais um pouco até chegar aonde chegou.

Os quadros explicativos sobre a cidade na época são acompanhados de trechos de livros de Machado, que detestava viajar e fazia do seu quintal o seu mundo, cujos limites iam do Largo do Machado (nada a ver com seu sobrenome) ao centro da cidade — a Corte, capital do Império brasileiro e que deslumbrou o garoto pobre do Morro do Livramento quando lá botou os pés pela primeira vez. "A sensação que tinha ao desembarcar na enorme praça, ao ver o grande palácio imperial, a sede do governo, era sempre a mesma - vibrava de excitação como se lá estivesse pela primeira vez".

Obra enfatiza esforço e
persistência do garoto pobre


As autoras destacam também a importância das invenções no final do século XIX, invenções essas que eram saudadas com entusiasmo pelo imperador. Um exemplo citado no livro é o do telefone, visto por D. Pedro II na exposição da Filadélfia em que Graham Bell apresentou ao mundo o aparelho que iria revolucionar a comunicação.

A trajetória de vida de Machado já renderia um romance dos bons. As autoras enfatizam o esforço e a persistência do garoto pobre que sequer tinha condições de freqüentar uma escola, mas que traçou seu objetivo de forma determinada. A pesquisa parece ter sido bem precisa quanto a datas, embora na linha do tempo que está no início do livro "Memórias póstumas de Brás Cubas" apareça como sendo lançado em 1779, quando na verdade a data certa é 1881, ano que marcou o início do realismo na literatura brasileira.

As autoras também preferem não entrar em detalhes sobre momentos polêmicos da vida do autor. "Ele se orgulhava de nunca ter tido um inimigo. E nunca teria, para o resto da vida". Com isso, elas evitam falar de Sílvio Romero, que atacava deliberadamente Machado de Assis, que nunca alimentou essa agressividade gratuita.

Outra frase que merece reflexão - "Machado nunca fora insensível à sorte dos escravos". Há profundas controvérsias sobre esse tema, tanto entre biógrafos quanto entre estudiosos de sua obra. Da mesma forma, as autoras passam muito rapidamente pela relação de Machado com sua madrasta, Maria Inês, no trecho em que ele guarda no bolso algumas pedrinhas do morro do Livramento. Lúcia Miguel Pereira, sua melhor biógrafa e que conheceu algumas pessoas que tiveram contato direto com Machado, é bem mais realista quanto a esse delicado assunto. Diz ela em seu livro "Machado de Assis": "Temendo talvez pôr Carolina em contato com Maria Inês, não querendo ele próprio ter constantemente diante dos olhos esse espectro de uma infância penosa, abandonou a pobre mulata".

Mas como foi dito, o livro é uma iniciação, e nesse sentido é muito bem feito e organizado. E realmente direcionado aos mais jovens. Tanto que elas iniciam falando da sua infância e terminam com a misteriosa visita de um garoto ao quarto de um Machado de Assis já nos últimos momentos de vida. Este garoto, que mais tarde descobriu-se ser Astrojildo Pereira, um importante intelectual que ajudou a fundar o Partido Comunista Brasileiro, entrou, deu um beijo na mão do escritor e foi embora. Sutil e discreto, como Machado de Assis.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

NELSON RODRIGUES GANHA CRIATIVA ´TRAPAÇA BIOGRÁFICA´


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de agosto de 2005)

Livro mescla realidade e ficção para falar do dramaturgo

A fome de Nelson, de Adriana Armony. Editora Record, 112 páginas. R$ 24,90

Só há duas formas de se despertar o interesse por um autor já exaustivamente estudado. Ou se descobre algo novo sobre ele ou se aborda de forma original e criativa o que já se sabe. O livro da professora Adriana Armony se encaixa na segunda opção, pois ela transforma Nelson Rodrigues – cujo aniversário de 25 anos de morte acontece na terça-feira, dia 23 – no personagem de uma “biografia imaginária”, ou melhor, uma “trapaça biográfica”.

O livro, que é fruto de sua tese de doutorado “Nelson Rodrigues, leitor de Dostoiévski”, é narrado por “um homem doente, um homem desagradável”, que sofre do fígado e que conheceu Nelson, seu “personagem secreto”, no Sanatorinho, “uma mistura estranha de hospital e hotel aonde mandavam os tuberculosos para se curarem ou se extinguirem de vez.

A presença de Nelson no Sanatorinho, que ocupa a maior parte do livro, é o exemplo de como realidade e ficção são bem dosados por Adriana, que enumera diversos fatos da vida do autor como se tivessem saído da imaginação do narrador, ou do próprio leitor entre eles o assassinato do irmão Roberto por vingança contra o pai, Mário Rodrigues.

Sensibilidade e capacidade
de observação de Nelson


A autora mergulha na vida de Nelson de uma forma profunda, porém sutil, sem entrar em detalhes polêmicos e desnecessários ao andamento da trama. Ela se concentra na sensibilidade, na capacidade de observação do dramaturgo sobre o comportamento humano ou, mais especificamente, do brasileiro de classe média para baixo. É o que acontece na descrição de Alice, a professora primária que se orgulhava em cumprir com correção os atos mais simples, como “dar um bolo de laranja a uma tia doente, fazer para os alunos um cartaz com letras grandes e coloridas”.

Professoras primárias, funcionários públicos, tias solteironas e os inevitáveis contínuos, talvez a categoria mais retratada na obra de Nelson, estão bem representados neste livro, compondo toda a rica e diversificada gama de personagens do genial escritor. O narrador, como não poderia deixar de ser, é funcionário público aposentado, que economizou bastante na época em que “voltava para casa mastigando um pão francês seco e me trancava no quarto com livros de Dostoiévski, Machado de Assis e Nelson Rodrigues". A autora deixa, por exemplo, ao narrador a espinhosa tarefa de descrever a rotina do Sanatorinho, como a “orquestra de tosses” no fim da tarde e os banhos frios, que "fortalecem o sangue.

O próprio Nelson também dá o seu recado quando, por exemplo, é interpelado pelos demais internos devido ao seu silêncio. “O que você tem contra nós?”, foi o que perguntou Turíbio, “um homenzinho de cabeça chata”. Com o tempo, Nelson adquire a confiança de todos, ou melhor, de quase todos, pois Carlos Alberto e Onofre desprezavam “aqueles pobres-diabos proclamando a sua miséria” na primeira peça de Nelson, encenada no Sanatorinho. Esta peça, “inesquecível para os que a viram e nela se viram, se perdeu no Sanatorinho, queimada, talvez inadvertidamente, junto com o colchão da sua doença”.

O erotismo, um dos traços forte da obra de Nelson Rodrigues, ainda que de forma velada, não recebe muito espaço no livro de Adriana, apenas uma ou outra referência, como a paixão de Nelson por Eros Volúsia, a bailarina por quem ele se apaixonara na juventude, na época em que andava com um terno que só tirava para dormir. “Que mulher ama um homem que fede?”, pergunta ele.

Uma obra cada vez
mais explorada


A falta de dinheiro para o bonde – economizando os “pobres caraminguás que comprariam pastéis para as irmãzinhas pequenas” – para a roupa e também para o pão francês são apenas aspectos de uma fome muito maior, a fome pela literatura, uma fome imensa, básica, instintiva, que se traduziu numa obra cada vez mais explorada, como neste livro. Para os que acreditam que a necessidade é o fermento básico para o artista desenvolver seu instinto criativo, Nelson Rodrigues é um prato cheio (sem trocadilhos).

domingo, 24 de janeiro de 2010

CONVERSAS E CRIMES EM TORNO DE UM BILHAR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 23 de julho de 2005)

Romance do francês Michel Quint vai além do gênero policial

Bilhar indiscreto, de Michel Quint. Tradução de André Telles. Editora Record, 208 pgs. R$ 24,90

Nada mais frágil que uma palavra e, ao mesmo tempo, mais definitivo. Cada frase pronunciada fala ao lobo que habita o fundo de nossas florestas íntimas”. O poder da palavra é o verdadeiro protagonista deste romance do premiado escritor francês Michel Quint. Em torno de uma mesa de bilhar todos conversam, especulam e desconfiam uns dos outros quando um crime acontece e, principalmente, quando nada é o que parece.

A trama gira em torno de Joseph, forasteiro que chega a uma cidade do litoral francês onde tudo gira em torno do Bar de la Marine, uma espelunca próxima ao cais. O dono do bar, o desconfiado Zé (diminutivo de Bénézet), recebe diariamente no bilhar do andar de cima os quatro principais freqüentadores, Bastien, Samson, Chef e Violette, “sensatos inspetores do dia que passa”, que começam a olhar com desconfiança para Joseph, principalmente quando ele diz ter testemunhado um crime da janela do bar. Ida, para muitos “uma ninfomaníaca oferecida”, teria se jogado no mar. Numa cidade “onde se trata a beleza como uma verruga”, Ida tem sua vida contada em várias versões, geralmente difamatórias.

Definir "Bilhar indiscreto" como um romance policial é restringir demais o alcance do livro. O possível assassinato de Ida é apenas o pano de fundo no qual Quint exercita sua bela prosa, explorando o clima de mistério que envolve os freqüentadores do bar e as suspeitas que volta e meia recaem sobre a figura de Joseph, o sujeito que se transforma num enigma nas mãos do autor.

A construção do enredo segue os atalhos do pano verde da mesa de bilhar e suas diversas combinações de pontos, estratégias e jogadas de mestre. Quint narra com muita sutileza não necessariamente uma trama policial, mas sim um romance sobre o disse-me-disse, sobre as várias versões que encenadas sobre um fato geralmente se tornam mais atraentes do que a própria verdade.

sábado, 23 de janeiro de 2010

NOTURNOS E OUTROS CONTOS FANTÁSTICOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 30 de abril de 2005)

Gianni Ratto revela que tem fôlego criativo em seu segundo livro de contos

Noturnos e outros contos fantásticos, de Gianni Ratto. Editora Códex, 108 pgs. R$ 22

O título pode até sugerir, mas os “contos fantásticos” deste livro nada têm de sobrenatural ou de ficção científica e se justificam mais pelo noturno, a forma musical imortalizada pelo gênio de Chopin e que sugere uma mistura de lirismo, melancolia, beleza e poesia. Não é à toa que a noite, a madrinha de todos os poetas, surge com freqüência nos 13 contos do livro, servindo como referência das narrativas nada convencionais, nas quais as imagens líricas e as descrições bem detalhadas muitas vezes atraem mais do que a própria trama. “E a noite descobriu tudo como antes, com seu silêncio e suas propostas indecorosas”.

O uso intenso de cores e imagens se justifica, já que Gianni Ratto, italiano radicado no Brasil desde 1954, é cenógrafo, além de diretor, ator e iluminador — imagens como as das “mãos de Escher”, o conto que abre o livro e no qual duas mãos representam “uma rotina diária cujo sabor já não estimula apetites nem memórias”. Ou em “Noturno n 5”, quando o autor enfatiza a relação com o abstrato, que o “leva por sendas mal iluminadas, por atalhos soturnos na direção de novas plagas”. Apesar das muitas abstrações diluídas no livro, o autor, por trabalhar no teatro há tantos anos, sabe que uma história não resiste muito tempo sem os argumentos e personagens “velhos de guerra”.

Personagens como o do conto “A ilha”, que mantêm uma relação incestuosa sem pormenores explícitos, baseada apenas nas sutilezas de um leve esbarrão, de uma troca sem graça de olhares ou de sombras mal definidas. Ou dos namorados cegos de “Uma história de amor”, conto que fecha o livro e que apesar do final meio exagerado mantém o tom das outras histórias, principalmente no cenário noturno. “A noite era a única amiga: a bengala branca o conduzia a um parque onde passava horas sentado num banco, dialogando com o silêncio”.

“Presépio ou Conto de Natal” é uma inusitada versão do nascimento de Jesus, que apesar de bem escrito soa um pouco fora do contexto do livro, parecendo mais uma provocação gratuita. “Um por um, os homens possuem Maria que levantou a saia (...)”, “José continua rindo estupidamente, enquanto uma baba amarronzada coa de sua boca e molha suas vestes ensopadas de mijo”.

Os relacionamentos amorosos são apresentados pelo autor em doses agradáveis de ternura e melancolia, como em “Dezoitomilduzentasecinqüentanoites”, quando uma mulher faz da lembrança do marido, morto misteriosamente, a única companhia no meio da noite. “O passado tinha-se diluído com o tempo, como a poeira na tampa de um piano hoje silencioso. Mas permanecia uma presença cruel, inequívoca e bela”. Neste conto, a história de amor que se transformou em cinzas, como está no texto, é contada com profunda sensibilidade, um retrato triste, porém belo e que permanece vivo na memória “desta última noite amada pela beleza do que foi e do que seria, eterna”.

Outra característica de seus contos, e aí entra novamente a influência da cenografia, é que Gianni Ratto descreve com profundo detalhismo e muitas cores o ambiente de suas histórias, sem no entanto exagerar. Embora haja sempre o risco de se tornar cansativo, o recurso se integra bem aos dramas dos personagens, ganha uma identificação em que folhas secas, capelas de pedra calcária, colchas de brocado e jardins de flores artificiais jamais roubam a cena e funcionam como figurantes de luxo.

"Noturnos" é o segundo livro de contos de Gianni Ratto (o primeiro foi "Crônicas improváveis", de 2002, também pela Códex) e comprova que o autor domina um estilo difícil, de personagens que falam pouco e que não se envolvem em muita ação. Há diversos trechos que lembram a linguagem poética, de tão líricos, mas que ainda permanecem presos ao conto, mesmo que por correntes meio frouxas. Para permanecer nesse equilíbrio de estilos, é preciso muito fôlego criativo e o autor, pelo menos nos 13 noturnos deste livro, mostra que tem.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A BOA FÓRMULA DO SUCESSO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 16 de abril de 2005)

Primeiro romance de Dan Brown já mostrava equilíbrio entre ação e informação

Fortaleza digital, de Dan Brown. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Editora Sextante, 336 páginas. R$ 29,90

A fórmula é a mesma, mas costuma dar certo. Sempre que um autor faz sucesso estrondoso com um livro, suas publicações anteriores vão na mesma onda e ele ganha uma espécie de toque de Midas literário. É o que acontece com o americano Dan Brown, autor do arrasa-quarteirão "O Código Da Vinci", o livro mais comentado e vendido dos últimos tempos, e que reaparece agora com "Fortaleza digital", seu primeiro romance, publicado em 1998.

Nem sempre escritores de sucesso sentem orgulho de seus primeiros livros e alguns até desconversam ou engasgam quando eles são mencionados. Dan Brown, no entanto, não tem do que se envergonhar de sua estréia literária. Embora possua alguns defeitos, o romance vai agradar aos milhões de leitores que ele ganhou com o “Código”. A trama é interessante, os personagens são bem desenvolvidos e o livro é bem escrito, principalmente nas cenas de ação, que acabariam se tornando um dos pontos fortes do seu estilo.

Exageros nos estereótipos
dos personagens


Aqui ele lida com códigos, mas não de uma forma tão artística quanto no seu livro mais famoso. O enredo se passa principalmente no Departamento de Criptografia da poderosa Agência de Segurança Nacional, o órgão responsável pelo armazenamento de todos os segredos de Estado da maior potência do mundo. Não é preciso ser nenhum especialista em informática para saber que invadir os seus arquivos é o sonho de qualquer hacker, que venderia as informações por uma fortuna para governos inimigos ou grupos terroristas, traficantes de drogas e outros “eixos do Mal”.

É aí que surge a tal fortaleza digital do título, um superprograma impossível de ser decifrado pelo poderoso computador do departamento e cujo segredo, se cair em mãos erradas, pode resultar num caos completo para o governo americano. Os segredos do programa, criado por um japonês (como não poderia deixar de ser), parecem estar contidos num anel e a busca pelo precioso objeto vai ocupar a maior parte do romance.

Mas Brown mostra que já dominava uma técnica muito comum em autores de best-sellers americanos, geralmente aqueles que costumam ser adaptados para o cinema em filmes de orçamentos estratosféricos. Ele dilui a trama em outros ambientes e grupos de personagens e cria novas áreas de interesse, sempre deixando um gancho para os capítulos seguintes. No fim das contas, o leitor acaba atravessando as mais de 300 páginas do livro sem se dar muita conta.

O autor só exagera mesmo em alguns estereótipos, como o do tal japonês "fera" em informática; o programador Greg Hale, que por ser ex-fuzileiro é um autêntico troglodita; o gênio da informática conhecido como Jabba, gigantesco de gordo, que só come fast-food e só pensa em cabos e conexões, e mesmo a protagonista, Susan Fletcher, cuja intuição nunca falha, e seu namorado, David, um professor de línguas incapaz de fazer uma conta de oito vezes oito. Além disso, algumas coincidências absurdas, como na hora da perseguição a David, complementam os pontos fracos do livro.

Nada, no entanto, que incomode tanto. As próprias explicações sobre a origem da criptografia, na época de Júlio César, ou sobre o desenvolvimento e a diversidade das mensagens cifradas não atrapalham a trama e acabam servindo como uma boa reserva para conversas de mesa de bar, como tantas informações (algumas totalmente inúteis, é verdade) que existem no “Código”.

Histórias por trás das
verdades incontestáveis


Curiosidades como a Enigma, a máquina de criptografia criada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial e considerada superavançada para a época, ou o desenvolvimento da internet, um sistema criado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos e que acabou caindo em domínio público no início dos anos 90, já servem para alimentar boa parte do romance, assim como especular que os principais detalhes das intrigas internacionais se passam mesmo no submundo desta guerra de informações, completamente à parte da mídia e do grande público.

Geralmente autores de best-sellers americanos acabam encontrando o seu nicho e ficam à vontade nele. Assim é Michael Crichton, com suas tramas envolvendo armas biológicas, John Grisham e seus romances jurídicos, Stephen King e suas histórias de terror. Dan Brown encontrou o seu também. Ele apostou nos códigos secretos, nas histórias que se escondem por trás das verdades incontestáveis e nos malabarismos que se fazem para decifrar estes códigos. Por trás disso tudo, uma boa trama, de preferência com uma história de amor, como neste livro, e a fórmula está feita. No caso dele, o toque de Midas que a grande maioria dos escritores busca e não consegue.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

VIAGEM MELANCÓLICA PELA MEMÓRIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de março de 2005)

Engenheiro nascido em Moscou retorna ao país onde se sente um estrangeiro

Transeuropa
, de Rafael Argullol. Tradução de Márcia Cavalcanti. Editora Rocco, 172 pgs. R$ 26

De Barcelona a Moscou, uma viagem não apenas por toda a Europa, mas também pela memória de um homem que volta à infância bem distante, tão distante quanto o desconhecido, “o princípio para qualquer aventura interior”. Escrito numa linguagem cheia de licenças poéticas e lúcidas observações, este livro mostra como a Europa pós-queda do Muro de Berlim ainda é um continente dividido, apesar da moeda única e da abertura das fronteiras.

Victor, engenheiro nascido em Moscou, mas que bem cedo foi levado para Barcelona, onde vive e trabalha até hoje, recebe a missão de voltar ao seu país natal para comandar a construção de uma ponte sobre o rio Volga, que “a tudo nutria com seu sangue: a cidade arruinada, as imensas pradarias, os bosques que o escoltavam como intermináveis cortejos”. A viagem já começa complicada, por causa de uma greve de controladores de vôo na Polônia, e prossegue de trem, direto “a uma ignorada franja do mapa onde a Europa ia se esfumando na Ásia”.

Relação fria e distante
com a família


Em direção à infância e à cidade perdidas, e a uma família que mal o reconhecia, o personagem descreve tudo o que encontra, numa linguagem cheia de detalhes criativos e dramáticos. Assim, a Moscou que se lhe apresenta aos olhos é “uma cidade que a tudo invade, olhos e consciências, até chegar a invadir a si mesma, numa cerimônia de canibalismo urbano totalmente única”. Na família, para a qual ele era um parente “que só existia por meio de palavras extraviadas no tempo”, a relação é fria e distante, com exceção da prima Vera, exímia violinista e que se revela como sua única fonte de afeto por todo o livro.

Embora a princípio possa parecer mais um livro mostrando o choque de culturas entre o leste e o oeste da Europa, o romance deste escritor espanhol, mais conhecido por seus ensaios sobre arte e filosofia, é bem mais do que isso. Afinal, a missão do engenheiro pode se traduzir num reencontro do personagem consigo mesmo, uma espécie de catarse emocional impossível de se viver se ele continuasse em Barcelona, onde tudo funciona direito e a rotina sem sobressaltos o mantém afastado deste caminho muitas vezes complicado chamado memória.

Sentindo-se um estrangeiro em seu próprio país, Victor se vê às vezes em um ambiente nitidamente kafkaniano, com funcionários de ternos cinzas e muita burocracia. O ambiente em volta também é cinzento, frio, assim como as pessoas que o cercam. O cenário é perfeito para reflexões angustiosas nesta “noite de terras desconhecidas”. Restam então os inevitáveis prazeres da noite, prostitutas, bebidas e inferninhos.
A beleza das descrições e da linguagem usada pelo autor, no entanto, suaviza a frieza e a melancolia da história, cujo fato menos importante é justamente a tal construção da ponte, mero pretexto para o regresso do personagem. Como ele próprio diz, a ponte sobre o Volga não iria apenas unir duas margens que a natureza mantinha separadas, mas também, e principalmente, juntar duas margens tão distantes de sua vida.

Volga, um confidente
do personagem


A relutância em aceitar o projeto ganha um outro contexto quando Victor tem contato com o Volga, o mítico rio cercado de imensas pradarias, atravessado por tantos exércitos no passado, e que se tornou um confidente do personagem, que conversava com ele principalmente nos longos silêncios do amanhecer. Preferia, assim, essa insólita conversa com a natureza a dialogar com a família, numa casa repleta de intimidade forçada e ícones religiosos opressores.

O passeio por Moscou se revela perturbador, principalmente pela repetição de portas, janelas e edifícios e da ausência de um centro preciso. A falta de referências só encontra alguma espécie de refúgio seguro, mais uma vez, na companhia da prima Vera, que se movimentava "com insólita graça entre as ruínas da memória".

Se o personagem vai sair bem desta viagem, tanto do ponto de vista interno quanto externo, só mesmo lendo o livro para saber. Mas o que se pode adiantar é que o romance é daqueles que não precisam de tramas complicadas e cheias de personagens para se impor, e sim de uma riqueza descritiva e de uma reflexão franca, e muitas vezes melancólica, sobre a vida e as pessoas que nos fizeram felizes de algum modo no passado. Neste ponto, Rafael Argullol foi muito feliz.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

OUTRO ENIGMA BEST-SELLER



(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em cinco de março de 2005)

Mistério sobre um livro da Renascença movimenta obra de texto excelente

O enigma do quatro, de Ian Caldwell e Dustin Thomason. Tradução de Léa P. Zylberlicht. Editora Planeta, 432 pgs. R$ 39,90

Um enigma se torna mais fascinante quanto maior for a sua capacidade de se eternizar como enigma. Assim são os grandes mistérios contados nas entrelinhas dos livros religiosos ou de imagens indecifráveis que sobrevivem à poeira (e bota poeira nisso!) dos séculos. Assim é este “enigma do quatro”, sobre um livro da Renascença, que se revela “um tributo ao amor de um homem por uma mulher”. Mas... será só isso?

Quem leu, ou pelo menos conhece o best-seller “Código da Vinci”, de Dan Brown, vai se interessar pela história do livro de nome quase impronunciável — "Hypnerotomachia” — da mesma forma que os estudantes da prestigiada Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, fazem aqui. Como na obra de Brown, Caldwell e Thomason misturam dentro de um texto excelente mistério com perigo, aventura com estudo, intuição com muito sangue e suor. Não é à toa que o livro também já é um best-seller no mundo todo.

Trama mistura
ficção e História


“Um bom amigo nos acompanha em situações de perigo no momento em que lhe pedimos - mas um grande amigo o faz sem que lhe peçamos nada”. Este laço de amizade une os estudantes em busca dos segredos do livro, numa trama que mistura ficção e História, como é comum em obras deste tipo. Em meio a descrições bem interessantes do estilo de vida no campus da universidade, a figura do romano Francesco Colonna, que publicou o livro em 1499, começa a ganhar forma. O jovem Paul, por exemplo, que começa a utilizar todas as formas de decodificação possíveis, trava com Colonna uma batalha para decifrar o “labirinto de enredos secundários, encontros estranhos com figuras mitológicas, dissertação sobre assuntos esotéricos”.

Quando um estudante é assassinado, talvez por estar perto demais da verdade, a trama ganha uma dimensão misteriosa e envolvente. É quando o leitor começa a tomar contato com diversas formas de decodificação, cada uma mais interessante do que a outra, uma verdadeira “floresta de línguas mortas e da xilogravura”. Descobertas como a dos “chifres de Moisés”, que para um leitor mais gaiato seria uma coisa e se revela outra, completamente diferente e bem mais profunda. Todo este complicado “caminho das pedras” muitas vezes começa do jeito mais fortuito possível, como na hora de se passar uma nota na máquina de refrigerante.

O enigma do quatro só pode ser resolvido pelos “amantes do conhecimento”, pessoas com a capacidade de cruzar referências eruditas de diversos sistemas de informação. O objetivo não era apenas afastar os curiosos, mas também esconder tesouros culturais numa época em que a intolerância religiosa não admitia nada que não fosse “sagrado”. Dessa forma, muitas obras valiosíssimas foram jogadas na “fogueira das vaidades” criada pelo monge Savonarola, o pregador evangélico que tentou restaurar a fé da cidade de Florença a todo custo.

Uma homenagem à
cidade de Florença


Mesmo que não fosse pela trama, que se concentra na busca do enigma e se revela bastante interessante, o livro traz, de forma equilibrada, dentro do enredo diversas informações e curiosidades (como o significado da palavra sarcófago e do termo beladona) que tanto podem aumentar a bagagem cultural como servir para impressionar alguém numa mesa de bar.

Não deixa de ser também uma homenagem à cidade de Florença, berço da Renascença e “um lugar onde a beleza e a verdade eram soberanas”. Maquiavel, Boccaccio, Leonardo da Vinci, Michelangelo, “os maiores heróis culturais em toda a História ocidental, cruzando um com o outro nas ruas (...) é como um sonho. Uma impossibilidade”. Por trás de tudo, a fortuna e o prestígio dos Médicis, a família de mecenas que possibilitou a produção e divulgação das obras de todos estes gênios.

Da metade do livro em diante, a busca pelo enigma se torna uma atividade extremamente perigosa. Assassinatos, sumiço de material, desconfiança, tudo se junta ao esforço quase insano da decifração do código. Mas tudo isto na verdade se justifica, porque, como está muito bem definido, “os enigmas têm um brilho próprio, uma sabedoria que ilumina os limites da experiência quando nada mais pode fazê-lo”. Alguém se arrisca a decifrá-lo?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

BAILADO TRISTE E POÉTICO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 12 de fevereiro de 2005)

Skármeta constrói sensível romance a partir de três deserdados da sorte

O baile da vitória, de Antonio Skármeta. Tradução de Luís Reyes Gil. Editora Planeta, 344 páginas. R$ 44,90

"No mundo da malandragem só funcionam a violência ou a paciência. A primeira vai deixar você rico ou trazê-lo de volta para a prisão, a segunda vai manter você pobre, mas livre". Esta é a filosofia, a regra de conduta do submundo de Santiago do Chile, pelo menos na visão dos personagens de Antonio Skármeta, um escritor que tem como principal característica oferecer doses generosas de sensibilidade e emoção a figuras humildes, aparentemente inexpressivas, mas que se revelam carregadas de conteúdo dramático.

Personagem feminina
é forte e densa


Da mesma forma que em outros livros seus, como "As bodas do poeta" e o mais famoso deles, "O carteiro e o poeta", aqui o autor chileno também apresenta uma personagem feminina forte, densa, sensível o suficiente para estudar balé e auto-destrutiva o bastante para fazer programas de sexo oral em cinemas de baixíssimo nível. Inteligentíssima, mas expulsa da escola por rebeldia, Victoria Ponce é uma figura muito bem construída em todo o seu enigma e que concentra a trama do livro com os outros dois personagens principais, recém-saídos da cadeia após uma anistia presidencial: Ángel Santiago e Vergara Grey.

O primeiro, um jovem de boa aparência, impulsivo e revoltado por ter sido sodomizado na cadeia. O segundo, um criminoso experiente, debilitado fisicamente e que ganha um sopro de vida do jovem Santiago para juntos praticarem um tal de grande golpe. Este triângulo amoroso meio louco, meio improvável, é construído por Antonio Skármeta com tanto equilíbrio, tanto estilo e poesia que é impossível não se envolver e torcer por seus destinos.

São três deserdados da sorte, que caíram na marginalidade por culpa de uma sociedade brutal e opressora. Ángel Santiago, com “a beleza brutal de seus vinte anos”, sai da cadeia com dois projetos. Um deles, o inspetor que o atirou pelado numa “cela cheia de animais”, jura que é matá-lo. Esta dúvida atravessa todo o romance e vai aumentando a tensão da trama quando o inspetor liberta por um mês um prisioneiro cheio de escrúpulos para assassinar Santiago, considerado por ele “um pobre coitado sem antecedentes, cujo único delito ainda não aconteceu”.

Vergara Grey, cujos delitos foram considerados verdadeiras obras de arte, saiu da cadeia escoltado pelos presos e ganhou um discurso do inspetor, que o declarou “longe dessa índole de malfeitores ressentidos e inescrupulosos que enchem nossas prisões e que abundam pelas ruas”. Ele sai da prisão em busca da grana que o antigo comparsa lhe deve por ter ficado de boca fechada na prisão. Mas a coisa não sai como ele previa.

Victoria Ponce completa este trio de perdidos com uma vida onde se misturam poesia e tragédia, sensibilidade e pornografia, vontade de viver e atração pela morte. O amor pela dança e o desprezo pelas regras rígidas da escola a atraem imediatamente para Ángel e, por conseqüência, para Vergara Grey, que apesar de sua frieza e desencanto pela vida, se sensibiliza pelo drama da moça.

Resquícios da ditadura
do general Pinochet


Skármeta constrói o ambiente perfeito para contar a sua história. A Santiago que surge no romance é cinzenta, fria e chuvosa, opressiva como a vida dos três protagonistas. Ao mesmo tempo, surgem aqui e ali seqüelas da brutal ditadura do general Pinochet nas torturas, violações de todo tipo e histórias de presos políticos. Mas o autor, apesar de ser considerado um dos mais importantes da literatura latino-americana, não foge da visão estereotipada que se tem das mulheres brasileiras, ao descrever Victoria Ponce como dona de “maravilhosas nádegas disciplinadas com os exercícios de balé que evocavam sem esforço uma nativa do Brasil”.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

PAÍS PELO AVESSO EM CONTOS DE GRANDES MESTRES


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 29 de janeiro de 2005)

Coletânea reúne textos ficcionais sobre a política e o poder

Fora da ordem e do progresso, org. de Luiz Ruffato e Simone Ruffato. Geração Editorial, 400 pgs. R$ 48

Uma edição caprichada, com 28 contos de alguns dos nossos melhores escritores sobre um tema que sempre pode render bons textos e muita polêmica: a política. De João Anzanello Carrascoza a Machado de Assis, os contos têm em comum não apenas o tema, mas a atualidade.

Em “A cabeça de Tiradentes”, Bernardo Guimarães mostra como se constrói um mito, no caso o de “mártir da Inconfidência Mineira”. Com o argumento extraído das tradições populares, o autor de “A escrava Isaura” narra o desaparecimento do crânio de Tiradentes da ponta de um estandarte, revelando como o mito do alferes já se perpetuava entre o povo bem antes da Proclamação da República.

Outra figura elevada à condição de mito também mereceu um texto à altura de sua importância, com uma mistura de ironia e bom humor. “O dia em que morreu Getúlio Vargas”, de Domingos Pellegrini, mostra a visão de um garoto se recuperando de caxumba e que só conhecia Getúlio como “um homem gordo de chapéu, com cachorro preto, andando num palácio com lama até os joelhos”. Em volta, uma descrição realista da consternação do povo, das brigas na rua e do abatimento da nação com a tragédia.

Luiz Vilela usa narrativa
feita só com diálogos


No entanto, se alguns autores preferem falar sobre personagens conhecidos e épocas precisas, outros contam histórias que prescindem de tempo e espaço, como “Más notícias”, de Luiz Vilela, cujo personagem candidato a prefeito tenta tirar vantagem de um acidente com um caminhão de bóias-frias num texto feito só de diálogos, técnica que o escritor mineiro, felizmente redescoberto há algum tempo, domina tão bem.

Da mesma forma, “Os homens que descobriam cadeiras proibidas”, de Ignácio de Loyola Brandão, não se refere a uma ditadura específica, mas abusa do sarcasmo e da concisão para ironizar as batidas policiais sem mandado judicial. Os homens não bateram, porque há muito a polícia não batia para entrar. Lembra, pela ironia e a situação absurda, a frase que Aparício Torelly, o "Barão de Itararé", pôs na porta da redação do "Jornal do Povo" depois de levar uma surra de oficiais da Marinha: “Entre sem bater”.

Lima Barreto, autor que também entendia bastante de arbitrariedades, participa com “Numa e a ninfa”, nome de um de seus melhores livros. Além da clara referência ao Barão do Rio Branco, seu desafeto, estão no texto duas características essenciais da sua obra: a atualidade e a metáfora.

No conto de João do Rio,
silêncio cerca marinheiro


Da mesma época e cidade, o Rio da belle époque, é João do Rio. “O fim de Arsênio Godard” traz uma forma de punição diferente a um marinheiro estrangeiro num navio rebelde. Ninguém lhe dirige a palavra e, à medida que o desespero dele aumenta, o leitor sente que a história se encaminha para um fim trágico. “Cada dia passado era para seus nervos mais um motivo de fúria, de raiva contida”.

Há contos de Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Lygia Fagundes Teles, entre outros. Machado de Assis, que não poderia faltar, vem muito bem representado com sua maquiavélica “Teoria do Medalhão”, em que expõe, com a tradicional ironia, a atitude correta a se tomar diante dos costumes sociais e políticos e que poderia entrar no guia de qualquer “marqueteiro” político. “Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo”.

domingo, 17 de janeiro de 2010

AMBIÇÃO E INVEJA NA ASTRONAVE UNITY, EM 2192


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 15 de janeiro de 2005)

Ficção científica bem-humorada apresenta futuro sem esperança

Infinito em pó, de Luís Giffoni. Editora Pulsar, 240 páginas. R$ 25

A maior dificuldade numa obra de ficção científica é atrair o leitor para o emaranhado de nomes complicados que os autores criam para suas tramas. O livro do premiado escritor mineiro Luís Giffoni não foge à regra, tanto que o protagonista atende pelo singelo nome de Shiva Ramanujan. Mas após umas dez páginas, o leitor fica à vontade para viajar junto com ele e outros personagens de nomes esquisitos no ano de 2192 a bordo da astronave Unity, uma “verdadeira Moby Dick do vácuo”.

O destino, pelo menos aparente, é o sistema de Alpha Centauri. Quinze anos após sua partida da terra, a Unity é, como toda astronave, “a solidão humana levada ao paroxismo”, comparada, como já foi muitas vezes feito, às antigas caravelas que também partiam rumo ao desconhecido.

O mundo vive em conflito constante e aqui começam as inevitáveis referências aos livros clássicos “1984”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, e também a filmes como “Blade Runner”, encontradas em diversos trechos do livro, como os que falam das pílulas de felicidade, da síndrome Huxley-Leinster e dos homens e mulheres do paraíso, espécies de andróides destinados apenas ao sexo.

Num mundo em que Washington é a sede do governo de um planeta Terra com 96 países, o autor centra seu enredo nas intrigas políticas, na estrutura de trabalho da nave, que muitas vezes lembra um escritório de aspones, e nas ironias. “Em suma, no espaço falta mais homem do que uísque, daí o fascínio que exerço, afirma Shiva Ramanujan, referindo-se ao seu sucesso com as mulheres no espaço sideral”.

Bom humor, muitas vezes
escrachado, percorre o livro


Os hábitos também são outros nesses tempos, como a degustação de carne humana. Mas o que muitas vezes parece uma visão pessimista do futuro da Humanidade, como ocorre com as obras de referência citadas, é pretexto para o bom humor, muitas vezes escrachado, que percorre o livro.

A conquista do espaço é mostrada aqui apenas como desdobramento de intrigas políticas, inveja, desconfiança e muita ambição. “Se todos se contentassem com a ignorância, talvez ninguém desafiasse o espaço”. O sexo, então, jamais aparece acompanhado do amor, esta palavra que parece mais do que deslocada no futuro. Quando não se utilizam dos seres criados artificialmente, os humanos podem também se valer dos Bancos de Gameta para perpetuarem a espécie ou do Kama Sutra instantâneo.

Em meio a tantas situações inusitadas, mas bastante criativas, a trama prossegue no rastro da Unity e de uma possível conspiração de Lahore, o “bisbilhoteiro profissional” da nave. Naquele pequeno mundo, pessoas nascem, outras envelhecem e morrem, enquanto o sistema de Alpha Centuri permanece como um objetivo distante.

A história toda se passa dentro da nave e não é preciso outro ambiente. Afinal, estamos no futuro e tudo é novidade, como os seres humanos que nascem com cinco braços e cinco olhos após uma mutação. Só não é novidade o que se passa na mente desses mesmos humanos, pois sexo, ambição e inveja não dependem nem de tempo nem de espaço para se manifestarem. “Confinados entre quatro paredes, sitiados pelo meio hostil, pelo futuro incerto, destilamos com língua ferina nossos rancores, complexos, saudades e medos”.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

MAIS DO MESMO VELHO E BOM SIDNEY SHELDON


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 18 de dezembro de 2004)

Sem inovação, autor best-seller mostra que ainda sabe como entreter seus fiéis leitores

Quem tem medo do escuro?, de Sidney Sheldon. Tradução de Alves Calado. Editora Record, 378 páginas. R$ 39,90

Gostem ou não, quando se pensa em romances do tipo best-seller, o primeiro nome que surge é o de Sidney Sheldon. Não dá para ignorar um sujeito que vendeu mais de 300 milhões de livros, figura no Guiness como o escritor mais traduzido do planeta, ganhou prêmios importantes, como o Oscar (melhor roteirista), o Tony (teatro) e o Edgar Allan Poe (literatura policial e de mistério) e criou séries clássicas de TV, entre elas “Jeannie é um gênio” e “Casal 20”.

Autor de sucessos estrondosos como “O outro lado da meia-noite”, Sheldon estava há três anos sem publicar nenhuma obra inédita Volta à ativa com “Quem tem medo do escuro?”, um livro que não acrescenta nada de novo à sua carreira, mas que também não a diminui, mostrando que, para ele, uma fórmula de sucesso consagrada é igual a time que está ganhando. Não se mexe.

A trama segue o mesmo estilo de boa parte de seus livros anteriores. Um mistério logo no início, violência, erotismo dissimulado, uma grande corporação internacional envolvida em algo suspeito, policiais enigmáticos, mulheres perspicazes, frases convidativas nos finais dos capítulos e muitas reviravoltas. Ah, sim, e nenhuma, mas nenhuma sofisticação literária.

Provavelmente alguns dos mais de 300 milhões de leitores de Sidney Sheldon, ao lerem esta última frase, vão perguntar: “E daí?” Pois o que os seus leitores querem mesmo é se entreter e para isto o escritor não perdeu a mão. O livro prende a atenção do início ao fim, sem levantar questões metafísicas e existencialistas e passando longe de rebuscamentos literários.

“Ondas quentes batendo
numa praia de veludo”


A história começa com uma série de assassinatos em países diferentes e um laço comum entre eles: todas as vítimas trabalhavam para a mesma empresa, a tal grande corporação internacional, que lida com questões ambientais.

O mafioso Tony Altieri, “parecendo um sapo pálido e gordo dobrado sobre si mesmo”, é o principal suspeito, principalmente por ter sido levado ao banco dos réus pela pintora Diane Stevens, um das duas heroínas da história, com um “jeito saudável e honesto de garota comum”, descrição melhor do que muitas no texto, como a de um beijo cujas línguas “pareciam ondas quentes batendo suaves numa praia de veludo”.

Estes detalhes, no entanto, não tiram o interesse do livro, que a partir da metade se concentra na perseguição contra as duas personagens principais, movidas principalmente pelo pistoleiro Harry Flint e seu “eterno sorriso sádico” - protagonista, aliás, de um final para lá de absurdo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

FOGO BRANDO DAS PAIXÕES QUE RUÍRAM


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em sete de agosto de 2004)

Em seu primeiro romance, Fernanda Gentil conta história repleta de sutilezas

Barreado, de Fernanda Gentil. Editora Topbooks, 122 páginas. R$ 19

Um casal jovem em crise, sem diálogo e sem nada a perder. É assim que começa o primeiro romance de Fernanda Gentil, jovem autora que já havia lançado o livro de contos "Língua de trapos", em 1999, pela mesma Topbooks, e que agora revela fôlego para uma história mais longa, cheia de sutilezas e tons intimistas, "uma grata surpresa", na definição de Moacyr Scliar.

A narrativa justifica o título. Barreado é um prato típico do litoral do Paraná, uma "carne cozida em fogo brando, durante muitas horas, em panela de barro tampada, fechada", segundo o Novo Dicionário Aurélio. Da mesma forma, a autora não tem pressa nenhuma em desenvolver seu enredo, que prossegue com a tentativa de Lucas, o marido do casal em crise, de salvar seu casamento e dar um rumo à própria vida, levando a mulher, Maria, e a filha, Helena, numa viagem de volta à casa da família, de onde saiu após a morte da mãe. "Voltar é um verdadeiro rito de passagem".

O reencontro de Lucas com o pai, Pedro, e o irmão, Mateus, todos nomes de apóstolos de Cristo, não deixa de ser uma espécie de pedido de perdão por ter abandonado a família em seu momento de maior dor. "Mãe não pode morrer antes do tempo. A minha cometeu esse pecado". Mas a volta de Lucas traz também o germe da discórdia. O pai, que andava meio perdido, distante, reencontra sua felicidade com a volta do filho e entra em perfeita harmonia com a nora e a neta. Mateus se sente desprestigiado. E começa a cultivar um mundo à parte, feito de visões e memórias daqueles que já se foram. "Eu, que sempre fui um mau aventureiro, percorro o museu hermético do meu espírito".

Este quase monólogo interior de Mateus toma conta do livro da metade em diante, com seu jeito excessivamente sério e pragmático, em contraste com o irmão, menos preso às amarras da família e dos negócios. Neste tumulto sem palavras, no resgate impossível da vida, Mateus, "que nunca se atrasa, sistemático em quase tudo" e que dá beijos de despedida protocolares na namorada, que ele só vê uma vez por semana, "quando o cansaço permite", se pergunta: "Quando vou me deixar em paz?" .

É uma história de muitas despedidas, poucos reencontros e algumas traições, "ocupando cada espaço da pele, infiltrando-se sorrateira nos sentidos, despedindo qualquer centelha de lucidez". São muitas perdas, tanto aquelas mais concretas, como a da mãe, como as que não se percebem de imediato, entre elas a dos ideais, perceptíveis apenas quando a família desmorona e o tédio e a amargura tomam conta do casal. "O meu emprego é uma droga, você está desempregada, perdemos o quê?".

Fernanda Gentil utiliza, no início do livro, a interessante técnica de colocar os próprios personagens narrando os capítulos de suas vidas, até juntá-los todos na mesma casa e na mesma linha narrativa. Assim, nos primeiros capítulos, os personagens se definem, se apresentam ao leitor, com pormenores biográficos e revelações íntimas. Na casa antiga da família, cheia de reminiscências de uma infância de muitas vozes, uma ponta de felicidade vai surgir, e também a esperança de que as mágoas e os ressentimentos, os rostos virados na hora do beijo de boa-noite, as recriminações por não se preocupar com a filha doente, a falta de sexo, tudo fique de lado diante dos novos ares.

Mas a autora deixa claro que, mesmo sendo feita aparentemente de coisas simples, a vida não é tão simples assim. E tudo vai desmoronando de novo, aos poucos, como a tinta das paredes de uma casa velha, mostrando que reviver, ou reinventar, o passado traz apenas uma satisfação passageira para as crises de relacionamento, tão passageira como a satisfação que Lucas consegue em ônibus lotados, voltando do trabalho, e que nem de longe sente com Maria.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NO BONDE, NOTÍCIAS DA GUERRA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de julho de 2004)

Jornais brasileiros ficaram imparciais diante da carnificina do conflito de 14-18

A Primeira Guerra Mundial e a imprensa brasileira, de Sidney Garambone. Ed. Mauad, 112 pgs. R$ 26,50

Encontrar aspectos originais em assuntos já exaustivamente discutidos é sempre um privilégio. E Sidney Garambone consegue isto, ao pesquisar o noticiário da imprensa brasileira durante a primeira guerra mundial e descobrir detalhes tão interessantes que é incrível terem ficado ausentes dos livros de História. O texto se originou da dissertação de mestrado defendida pelo autor na PUC-Rio e logo na apresentação a jornalista Ana Paula Padrão justifica um dos motivos pelos quais aquele conflito, tão distante nestes tempos de guerras vistas da poltrona de casa, ainda desperta tanto fascínio: “Ver a História acontecer é um privilégio. Mas entendê-la, talvez seja tarefa que só o tempo pode cumprir com rigor”.

Brasil declarou guerra à
Alemanha em outubro de 1917


Garambone compara as duas guerras mundiais — a segunda, uma conseqüência quase natural da primeira — ressaltando as diferenças de cobertura jornalística dos dois conflitos. Sobre a segunda, ele lembra que há vasto material de pesquisa, inclusive da participação brasileira através da Feb, mas sobre a primeira, chamada de A Grande Guerra, o autor afirma que há muita gente que até hoje sequer sabe que o Brasil declarou guerra à Alemanha em outubro de 1917 e enviou navios repletos de soldados à Europa. Soldados estes que não chegaram a lutar por causa do término dos combates, em novembro de 1918. Mas muitos morreram de gripe espanhola, “o mal do século” na época.

O autor analisa dois jornais do Rio, então capital da República e com uma população de cerca de 1,5 milhão de habitantes: o sisudo “Jornal do Commercio” e o popular e oposicionista “Correio da Manhã”, veículos de comunicação de uma época em que não havia vídeo, TV e Internet. “Quem não sabia ler pedia explicações ao vizinho do bonde”, escreveu Garambone. Os jornais começavam a se transformar em grandes empresas e os jornalistas se tornavam mais críticos, independentes e profissionais, uma postura bem diferente do jornalismo boêmio e romântico do século anterior. A mudança foi descrita com ironia e profundidade por Lima Barreto em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”.

Faltava, porém, aos jornais da época, uma análise mais profunda do noticiário internacional e suas diversas implicações, como acontece hoje, quando qualquer jornalista bem informado sabe que um atentado na Palestina pode resultar num conflito de grandes proporções. Em 30 de junho de 1914, por exemplo, dois dias depois do assassinato de Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, fato que desencadearia a guerra, a notícia saiu sem destaque, ao lado de notas como esta: “Foi vítima de um acidente de automóvel o padeiro Bernardino da Silva”.

O livro também destaca o desenvolvimento da diplomacia brasileira, ainda se recuperando da morte do Barão do Rio Branco, o chanceler imortal, em 1912. Após a crise da Guiana com os ingleses, no início do século, o Brasil deixava seu antigo parceiro de lado e iniciava um alinhamento duradouro com os EUA. Apesar disso, Garambone destaca que o Brasil só declarou guerra à Alemanha seis meses depois da entrada dos americanos no conflito, e mesmo assim porque os submarinos germânicos afundaram navios mercantes brasileiros. O autor enfatiza que, “dos países sul-americanos, o Brasil foi o único a mobilizar tropas para o conflito, flertando já aí com o papel de liderança no continente".

Outra prova de que com a pesquisa em jornais é possível pôr em dúvida afirmações históricas é a notícia sobre Santos-Dumont no “Jornal do Commercio”. O pai da aviação, que segundo consta na História, teria cometido suicídio por não concordar com a utilização bélica do avião, diz o autor, visitou o presidente da República, Venceslau Brás, em novembro de 1917, com propósitos nada pacifistas, oferecendo “seus préstimos técnicos para o caso de a nação precisar de conhecimentos aeronáuticos de um especialista”. Verdade seja dita também, e este fato não está no livro, é que Santos-Dumont sofria de uma dolorosa esclerose múltipla quando morreu e seu suicídio teria sido motivado pela utilização de aviões por brasileiros contra brasileiros na São Paulo que ele tanto amava, durante a Revolução Constitucionalista de 1932.

Só em 1917 o país começou a
ver os alemães como inimigos


O livro mostra que os jornais brasileiros, assim como o governo, se mantiveram imparciais na maior parte da guerra e só começaram a ver os alemães como inimigos a partir de 1917. “A Alemanha acaba definitiva e finalmente de deixar cair a máscara”, dizia o “Correio da Manhã”. Bem diferente do que ocorreu na segunda guerra, quando alemães e italianos foram perseguidos por todo o país e muitos tiveram que mudar os nomes de seus estabelecimentos, como ocorreu com o Bar Luiz (antigo Bar Adolf), no Rio, e o clube de futebol Palmeiras (antigo Palestra Itália), em São Paulo.

Apesar de se originar de uma dissertação de mestrado, Garambone conseguiu dar uma leveza ao texto que desperta a curiosidade para mais informações sobre o tema. Ler o livro dá a impressão de que hoje, apesar do neurótico bombardeio de informações que recebemos de todas as frentes, ou até por isso, seríamos bem mais informados se tivéssemos apenas que ler o jornal do vizinho do bonde e debatermos as notícias nos cafés da Rua do Ouvidor. Na época, ainda sem batalhas entre camelôs e guardas municipais.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

GUERRA, ESPADAS E SINAIS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 10 de julho de 2004)

A ferro e fogo - Trilogia (Parte I, vols 1 e 2), de Henryk Sienkiewicz. Tradução de Tomasz Barcinski. Editora Record, 448 páginas (cada volume). R$ 52,90 (cada volume)

Os dois volumes de “A ferro e fogo” formam a primeira parte da épica trilogia de Henryk Sienkiewicz, primeiro dos cinco autores poloneses a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1905, com o já clássico “Quo Vadis”. A trilogia foi lançada entre 1884e 1888 e narra momentos importantes da conturbada História polonesa no tempo em que a sua monarquia constitucional era das mais importantes da Europa e suas terras se estendiam à longínqua Ucrânia. É este o cenário de uma guerra “prenunciada por sinais celestes, pela expressão no rosto dos homens, pelo brilho das espadas, pelos uivos noturnos dos cães e pelo relinchar dos cavalos sentindo o cheiro de sangue”.

E é justamente nas intermináveis “planícies selvagens da estepe”, mais tarde tomadas pelos russos, que se desenvolve o enredo desta primeira parte da trilogia, a rebelião cossaca, ocorrida na segunda metade do século XVII (as outras duas tratam das invasões sueca e turca, alguns anos antes da rebelião). Os camponeses, explorados tanto pelos senhores feudais quanto pela nobreza, se revoltam e é aí que reside a principal crítica sofrida por Sienkiewicz na época do lançamento do livro, já que ele não tenta entender os motivos da rebelião, totalmente justificáveis devido às condições miseráveis de vida dos cossacos, vistos muitas vezes no livro como “uma gente disforme, pronta para saquear e acostumada a lutar”.

Chmielnicki, o líder da revolta, é definido apenas como um traidor cruel da Nação. Assim, as mortes violentas, as torturas por empalamento, os esquartejamentos feitos pelos cossacos são condenados, enquanto as mesmas atitudes tomadas pelos poloneses são vistas com uma parcialidade só explicável devido à situação de esfacelamento que a Polônia passava na época em que o livro foi escrito, com a auto-estima espremida entre os apetites insaciáveis de alemães, austríacos e russos. Os bárbaros cossacos são retratados como se fossem personagens de um filme de terror, com direito inclusive a feiticeiras. "Os algozes disputuavam entre si pedaços dos corpos esquartejados, deliciavam-se lambuzando o rosto e o peito com sangue e enrolando as tripas ainda quentes no pescoço".

Tradução mantém termos
da língua original


A tradução, feita diretamente do polonês por Tomasz Barcinski, mantém muitos termos e expressões da língua original, técnica que, se no início do livro soa um pouco estranha, logo depois facilita o mergulho do leitor numa cultura tão diferente da nossa. O final traz um glossário detalhado e o próprio tradutor explica, no prefácio, como foi feito o seu trabalho, além de situar o contexto histórico do romance. A lamentar na caprichada edição os muitos erros de revisão verificados no segundo livro, embora o volume traga um interessante posfácio escrito por Barcinski, mostrando o que aconteceu na vida real com alguns dos principais personagens.

Mas o romance possui tantas qualidades que merece ser classificado como uma obra-prima sem nenhum exagero. É impossível, por exemplo, não se envolver nas peripécias do tenente Skrzetuski, o mais valente guerreiro da Polônia, que vai em busca de sua amada Helena por todo o livro enquanto enfrenta batalhas e o ódio do rival Bohun, um guerreiro tão temido quando ele e também apaixonado por Helena. A maioria segue esta linha de “os brutos também amam”, capazes de matar com extrema brutalidade e de chorar como uma criança diante do drama de algum amigo. São muitos os personagens interessantes, sendo que o autor concentrou em Zagloba todo o lado cômico do livro. Ele reúne em doses iguais coragem e covardia, vigarice e dignidade, verdade e mentira, sendo por isso uma das melhores criações do livro.

Praticamente não há um capítulo monótono na narrativa repleta de situações de clímax e ótimos diálogos. A iminência de batalhas é descrita em um tom dramático, acentuado pela minuciosa descrição da natureza das estepes. “Certos rumores, como os que prenunciavam a chegada de uma tempestade, começaram a esvoaçar sobre toda a Ucrânia e ambas as margens do Dnieper”. O risco de ser atacado a qualquer momento mantém o tom de apreensão, principalmente nas fugas, e Sienkiewicz sabe dosar bem esta característica do texto, terminando os capítulos sempre com um “gancho” que só será retomado mais adiante. Não há quem não chegue final do primeiro livro, por exemplo, e não fique ansioso para saber como a trama prossegue.

O bom do romance histórico, esta categoria literária consagrada por Walter Scott, é que desperta o interesse para o fato narrado (muita gente, com certeza, vai se interessar pela História da Polônia), mas também dá ao autor a liberdade de criar personagens muitas vezes mais fascinantes do que os da vida real. E apesar dos exageros, como no episódio em que 15 mil poloneses enfrentam 500 mil cossacos e tártaros, Sienkiewicz conseguiu incutir o enredo da trilogia nos corações e mentes poloneses de tal forma que durante a ocupação nazista na Polônia, ou seja, 60 anos após a sua primeira edição, os corajosos combatentes da guerrilha usavam os nomes dos personagens da trilogia.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

DICKENS: PERCEPÇÃO AGUDA E IRONIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 1º de maio de 2004)

Escritor inglês começou a afiar a sua pena escrevendo crônicas em jornal

Retratos londrinos, de Charles Dickens. Tradução de Marcello Rollemberg. Editora Record, 306 páginas. R$ 35,90


Da mesma forma que muitos grandes escritores, incluindo aí o nosso Machado de Assis, Charles Dickens também iniciou sua carreira pelas páginas dos jornais. Nas 32 crônicas reunidas nestes "Retratos londrinos", publicadas em 1836 e pela primeira vez traduzidas no Brasil, o autor inglês já ensaiava o que viria pela frente. Tanto que um ano depois, ele publicaria, também nos jornais, sua primeira obra-prima, “As aventuras do Sr. Pickwick”.

Machado de Assis também pode ser citado por outras curiosas coincidências em relação a Dickens: os dois escritores nasceram paupérrimos, foram autodidatas, trabalharam como repórteres nos respectivos parlamentos e em suas crônicas mostraram boas doses de ironia, humor e uma grande capacidade de observação. Mas a grande diferença em relação ao autor brasileiro é que Dickens, mesmo em figuras rudes e grosseiras, encontrava algo de bom. Seu otimismo é fundamentado por um grande amor pela natureza humana, que aprofundaria nas obras mais conhecidas, como Oliver Twist e David Copperfield. Suas descrições fisionômicas nada têm de cansativo e se relacionam com alguma intenção ou sentimento, como no caso do líder do partido oficial (“A eleição do bedel”), um homem de “nariz interrogativo e olhos pequenos, incansáveis e vivazes, que parecem estar ali com o único propósito de ajudá-lo a se meter nos negócios alheios”.

Há um estilo ainda indefinido, é verdade, que se verifica principalmente quando o autor, só com 24 anos, descreve cenas de ação ou assume um tom meio panfletário ao fazer críticas sociais. Mas ele mesmo reconhece isso quando diz, no prefácio da edição de 1850, que, apesar da precipitação e da inexperiência em alguns momentos, manteve o texto quase todo integral, já que o livro foi um sucesso quando lançado. As crônicas foram publicadas em jornais como o “Evening Chronicle” e o “Morning Chronicle” e os assuntos são variados, mas o que sobressai é o contraste entre as condições de vida das classes trabalhadoras do início da industrialização e o fortalecimento da burguesia.

A primeira parte, “Cinco retratos da nossa paróquia”, traz bons momentos, como na crônica “As quatro irmãs”, mas é nas outras duas séries, “Cenas” e “Personagens”, que Dickens revela o seu lado de profundo observador dos aspectos prosaicos do cotidiano. Vendedores de peixes, limpadores de chaminés, jantares beneficentes, a novidade trazida pelos ônibus, nada escapa ao seu olhar, nem mesmo o sofá-cama, que “não possui a respeitabilidade de um sofá nem as virtudes de uma cama”.

O universo retratado aqui tanto pode ser a paróquia, este “mundinho à parte” com suas disputas religiosas, as tavernas, o parlamento, jardins como o Scotland Yard (antes que a polícia instalasse sua sede lá), as regatas do Tâmisa e as ruas de Londres numa “escura, sombria e triste noite de inverno”, seu momento mais glorioso, segundo o autor.

O tradutor Marcello Rollemberg, que baseou seu trabalho na edição de 1839, também é responsável pela boa introdução e pelas notas de pé de página, indispensáveis, já que muitos nomes e lugares da Inglaterra pré-vitoriana já não existem, como a velha ponte de Londres e a Monmouth Street, uma das mais populares ruas de lojas de roupas de segunda mão da época. Nesta notas, há curiosos detalhes, como a origem da palavra bus e o incrível imposto que havia na Inglaterra sobre o número de janelas de cada residência.

O mais interessante ao ler cronistas de outros países é perceber como nas pequenas situações do cotidiano todo mundo se parece. Os homens de meia-idade, “cujos salários não aumentaram na mesma proporção de suas famílias”, o passageiro irritado do ônibus cheio e o parente inconveniente que pergunta quando você vai casar podem até falar outros idiomas, torcer para times diferentes ou acreditar no que quiserem, mas nada mais são do que instituições universais. Talvez por isto, e também pelo imenso talento de Dickens, é que livros assim não envelhecem e seus personagens (com nomes e roupas diferentes) podem estar ao nosso lado agora.

JORNALISTAS QUE USAVAM BICO-DE-PENA E NÃO TINHAM MEDO DAS EXCLAMAÇÕES


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 28 de fevereiro de 2004)

Palavra, imagem e poder - O surgimento da imprensa no Brasil do século XIX, de Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros. DP&A ed., 130 pgs. R$ 17

O nascimento da imprensa brasileira, de Isabel Lustosa. Jorge Zahar Editor. 76 pgs. R$ 17

Muitos estudantes de jornalismo podem não acreditar, mas as máquinas de escrever ainda podiam ser vistas em algumas redações brasileiras até o início dos anos 90. E mesmo aqueles veículos já totalmente informatizados parecem de um tempo muito distante quando comparados às modernas técnicas de impressão e editoração de hoje. O que imaginar então de uma época em que a notícia era escrita a bico-de-pena, as fotografias copiadas por desenhistas e o noticiário internacional recebido com um mês de atraso?

Com certeza, o famoso 11 de Setembro teria virado 11 de outubro nos tempos analisados nestes dois livros. No caso de ‘O nascimento da imprensa brasileira’, Isabel Lustosa aborda o período que vai de 1808, quando surgiram o ‘Correio Braziliense’ e a ‘Gazeta do Rio de Janeiro’, os primeiros jornais brasileiros, até os anos posteriores à Independência.

Antes dos jornais, panfletos expressavam opinião pública

Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros também estudaram o período, mas vão mais longe, até o início do século XX, quando os jornais se tornaram empresas e começaram a deixar o romantismo de lado. Neste livro, os autores mostram como a opinião pública, expressão tão comum nos dias de hoje, já se fazia presente, mesmo antes dos jornais brasileiros, através do disse-que-disse pelas ruas, muitas vezes a partir de panfletos afixados em locais públicos. E apesar de a impressão ser proibida no Brasil, circulavam livremente por aqui jornais europeus, como a ‘Gazeta de Lisboa’.

Já no período da Independência, quando começaram a circular diversos jornais brasileiros, quase todos extremamente combativos na divulgação de suas idéias, os autores fizeram uma pesquisa sobre o perfil dos leitores daquela época, com resultados bastante curiosos. ‘Os homens se dividiam entre os que trabalhavam, os que rezavam e os que lutavam, de acordo com uma mentalidade originária da Idade Média’.

O livro é rico em abordagens, como a ligação entre literatura e jornalismo - que aos poucos foi adotando uma linguagem própria -, o surgimento do jornalismo feminino e suas corajosas pioneiras, a importância da ilustração e a utilização das tipografias como locais de encontro, onde os jornais eram vendidos e muitas vezes debatidos em calorosas discussões.

Os anúncios da época também se revelam pitorescos quando vistos com o distanciamento que a História exige. Um deles, publicado no jornal ‘O Retirante’, chama a atenção pela linguagem nada politicamente correta. Ao descrever um escravo fugido que teria cometido diversos crimes e ‘bebe aguardente como quem chupa caju’, o longo texto termina com o seguinte brado: ‘Retirantes! Vós que sois irmãos, pais e parentes das seis donzelas que esse infame deflorou, quebrai a cara desse cabra!’.

Já o livro de Isabel Lustosa apresenta um caráter bem mais didático, como parece ser a proposta da série Descobrindo o Brasil. Isso não impede, entretanto, que apareçam detalhes bem interessantes sobre o surgimento do jornalismo no país, entre eles trechos de um artigo escrito por d. Pedro I, sob pseudônimo e repleto de expressões chulas, a respeito de João Soares Lisboa, um inimigo político comparado pelo imperador jornalista a ‘uma vala, onde se lançam todas as imundícies da imoralidade pública’. A cordialidade não faria parte dos manuais de redação da época se eles existissem. D. Pedro foi, segundo a autora, o primeiro jornalista a cobrir uma eleição, no caso a da Assembléia Constituinte de 1823.

A influência da maçonaria na imprensa do século XIX


A autora mostra como a maçonaria exerceu influência na imprensa da época, possibilitando uma livre expressão das idéias, o que não impedia que de vez em quando alguém fosse surrado nas ruas exatamente por causa dessa liberdade. Luís Augusto May, por exemplo, ao publicar um artigo ofensivo no seu jornal ‘Malagueta Extraordinária’, apanhou de um ‘grupo de embuçados’ a mando provavelmente do próprio imperador.

Um nome extremamente importante nos dois livros é o de Hipólito José da Costa, fundador do ‘Correio Braziliense’ e do jornalismo brasileiro. Nascido na Província Cisplatina, que seria mais tarde o Uruguai, sua vida é repleta de aventuras e reviravoltas. O que se sobressai, no entanto, é a atualidade de suas idéias e opiniões, como Isabel Lustosa mostra, ao afirmar que ele não era um democrata, mas ‘queria que as reformas fossem feitas pelo governo antes que o povo as fizesse’. Nestes tempos em que tanta gente fala em convulsão social, o pensamento de Hipólito poderia muito bem estar na página de opinião do jornal de hoje.

* Ilustração: Hipólito José da Costa

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

SUBMUNDO, DEBOCHE E FOLHETIM EM SP


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 31 de maio de 2003)

Marcos Rey, autor versátil em estilos e gêneros, tem dois de seus melhores livros relançados

Memórias de um gigolô e Ópera de sabão, de Marcos Rey. Editora Companhia das Letras, 320 pgs e 320 pgs. Cada um a R$ 36

Marcos Rey foi aquilo que nem mesmo alguns grandes escritores conseguiram ser: versátil. Pois não poderia haver outra definição para o autor que misturou em seu currículo livros como “Memórias de um gigolô”, passado no submundo paulistano dos anos 30, e uma vasta coleção infanto-juvenil. Entre romances, roteiros de cinema, novelas, crônicas, scripts de rádio e peças, foram mais de cinco milhões de exemplares vendidos. Um fenômeno, principalmente neste país onde se diz que as pessoas lêem pouco.

Morto em 1999, o escritor paulistano tem agora dois de seus melhores livros relançados. O já citado “Memórias de um gigolô”, publicado pela primeira vez em 1968, foi adaptado para o cinema e uma série de TV nos anos 80, com Lauro Corona, Bruna Lombardi e Ney Latorraca. Conta a história de Mariano, sobrinho de madame Antonieta, vidente que lia cartas de um baralho ensebado e teria sido a pessoa que “mais intensivamente combateu o quebranto e o olho gordo”. Com a morte dela, ele vai morar no prostíbulo de Madame Iara, ex-cliente de sua tia, onde torna-se redator de bordel, uma “profissão” que não vale a pena ser explicada para quem ainda não leu o livro.

O ambiente de Marcos Rey, cujo nome verdadeiro era Edmundo Donato, é São Paulo, e os personagens tanto poderiam sair da música de Adoniran Barbosa ou de um livro de João Antônio, profundos conhecedores da “arraia-miúda” e das “crocodilagens” daquela cidade. O exagero proposital, o bom humor e uma ironia que beira o deboche são as marcas deste livro, que apesar de se passar nos anos 30 permanece atualíssimo.

Publicado originalmente em 1980, “Ópera de sabão” já tem um estilo mais contido. Também ambientada em São Paulo, a trama se concentra numa família de classe média durante quatro dias, do suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, até um dia qualquer de 1969. Cada um dos cinco membros da família de Manfredo Manfredi, dono de uma empresa de transportes que sai de casa para matar Carlos Lacerda, rende uma história interessante. Elas se cruzam através de coincidências típicas de folhetim, com os tradicionais “ganchos” de finais de capítulos, e tornam a leitura mais dinâmica à medida que se aproxima do final.

Referência à época na qual
São Paulo começava a crescer


O livro, que tem prefácio de Mário Donato, autor de “Presença de Anita”, traz referências interessantes sobre a época em que São Paulo começava a se tornar a maior metrópole da América Latina. Um filho de Manfredi trabalha numa imobiliária e outro numa agência de publicidade, dois ramos que enriqueceriam muita gente dali para frente. Já a esposa, Hilda, ganha a vida num programa de rádio chamado “Madame Zohra e você”, onde dá diversos conselhos e combate o aborto. Mas quando um dos seus filhos “faz mal” a uma moça de subúrbio, que engravida, vai surgir uma das tramas mais tensas do livro.

Embora tenha passagens bem-humoradas, o livro pode ser visto também como um relato bem sério da época em que o Brasil deixava de ser, de fato, um país agrícola para entrar na era industrial e todas as suas conseqüências, como a comunicação de massa e a preocupação com o marketing, hoje indispensável em eleições, seja para presidente da República ou síndico. “A técnica da conversa em grupo consiste em não deixar cair a peteca e fazer perguntas quando nos cabe dar respostas”.

“Ópera de sabão” é a tradução literal de soap opera, expressão usada nos EUA para as antigas radionovelas, geralmente patrocinadas por marcas de sabão. Além da constatação de que as clíncias clandestinas de aborto já ficavam lotadas nos anos 50, outros temas atuais deste livro são mencionados, como a preocupação de que os americanos um dia nos tomem “na marra” a Amazônia - acentuada nestes tempos de Doutrina Bush.

Mas o que fica de mais importante e prazeroso após a leitura destes dois livros é a comprovação de que uma das maiores fontes de histórias dramáticas ainda é a boa e velha família. Que o diga Nelson Rodrigues.

domingo, 3 de janeiro de 2010

SCOTT FITZGERALD POR INTEIRO NO JOVEM, BONITO E AMBICIOSO AMORY BLAINE


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em cinco de julho de 2003)

Em seu primeiro livro, o autor americano já demonstra sua rara sensibilidade

Este lado do paraíso, de F. Scott Fitzgerald. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Editora Cosac & Naify, 336 páginas. R$ 37

Lançado em 1920, dois anos após o fim da I Guerra Mundial, “Este lado do paraíso” representa bem o espírito da época. O maior conflito ocorrido até então sepultou nas trincheiras da Europa a fina flor da juventude daquele continente e os ideais de paz e prosperidade da belle époque. Além disso, forjou as bases da “geração perdida”, o grupo de artistas auto-exilados em Paris que tinha como lemas a desilusão com o passado, a visão crítica do presente e a falta de esperança no futuro.

O autor deste livro, o americano de classe média alta Francis Scott Fitzgerald, foi um típico representante do grupo, assim como Ernest Hemingway, Ezra Pound e Gertrude Stein. O próprio Hemingway diria, a respeito de Fitzgerald, em “Paris é uma festa”, livro que retrata bem a efervescência daqueles dias: “Seu talento era tão espontâneo como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta”.

Assim como o personagem,
autor estudou em Princeton


Para um escritor em seu primeiro livro, é quase impossível não despejar generosas porções de sua própria vida na história. Neste caso, Fitzgerald se colocou por inteiro na personalidade de Amory Blaine, o jovem bem nascido, bonito e ambicioso que adora mulheres, literatura, liberdade e, acima de tudo, de si mesmo. Da mesma forma que seu criador, o personagem também estuda na prestigiada Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, local onde se passa quase todo o enredo. Quer dizer, estudar em termos, pois tanto o autor como o personagem preferiam passar o tempo lendo, se apaixonando e praticando esportes. “A sala de aula era um campo fértil para um estudo sobre a estupidez”.

A perfeita descrição da geração que surgia nos escombros da guerra deu fama e sucesso repentinos a Fitzgerald, então com apenas 24 anos. Já estão presentes no livro características essenciais de um estilo que atingiria o auge no seu grande clássico, “O grande Gatsby”, livro fundamental em qualquer biblioteca: diálogos bem construídos e envolventes, belas e nada enfadonhas descrições de cenário naturais e, acima de tudo, uma rara sensibilidade para atingir os corações e mentes da juventude, um período da vida que ele, mais do que ninguém, exaltou em sua obra.

O sucesso deu a ele também a oportunidade de se casar com Zelsa Sayre, filha de um juiz do Alabama cuja família relutara em aceitar o pedido de casamento feito por Fitzgerald, mas que acabou cedendo após a boa repercussão do livro. Zelda e Scott formariam um dos casais mais turbulentos de sua época, numa trajetória de badalações nas colunas sociais, alcoolismo e instabilidade emocional já exaustivamente tratada por biógrafos, autorizados ou não. Fitzgerald morreria em 1940, aos 44 anos, de enfarte, e Zelda oito anos depois, após um incêndio no sanatório onde estava internada. No livro, Amory Blaine faz da frustração o resultado de seu envolvimento com as mulheres que cruzam sua vida, belas e caprichosas como Zelda. “A educação de todas as mulheres belas é o conhecimento que têm dos homens”.

Vida acelerada num meio
social egocêntrico e vaidoso


Ao dizer que Amory Blaine estava pronto para “despertar o Maquiavel que latejava em seu íntimo”, Fitzgerald mostra a fina ironia com que iria revelar o egocentrismo e a vaidade que percebia no meio em que vivia. A profunda lucidez do autor em relação às mudanças de comportamento que observava também revela – novamente através de Blaine –que a vida moderna já não mudava a cada século, porém ano a ano, numa clara antecipação do que ocorre hoje, quando tudo parece se transformar cada vez em menos tempo.

A capa da bela e ilustrada edição do livro, com a foto de um jogador de futebol americano, ilustra bem outra característica da obra do autor, a divulgação de valores da cultura de seu país. A partir de Fitzgerald, a literatura americana, que já tinha amadurecido e desenvolvido uma temática própria com autores como Mark Twain, ganhava uma classe e uma sofisticação que a marcariam por muitas gerações já não tão perdidas como aquela.

sábado, 2 de janeiro de 2010

MELANCOLIA E IRONIA EM UM CENÁRIO ARMADO PARA MAIS UMA TRAGÉDIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de julho de 2003)

Curiosidade em torno da morte na escrita da premiada Amélie Nothomb

Dicionário de nomes próprios, de Amélie Nothomb. Tradução de Bluma Waddington Vilar. Editora Nova Fronteira, 160 páginas. R$ 22

A metafísica dos tubos, de Amélie Nothomb. Tradução de Clóvis Marques. Editora Record, 146 páginas. R$ 28

Apesar de colocar a criança como personagem principal destes dois livros, Amélie Nothomb escreve mesmo é para gente grande. Basta folhear as primeiras páginas para se perceber que seu texto, apesar de leve e agradável, possui como uma das principais características a inquietação diante da vida e a curiosidade em torno da morte. Um tema que pode fundir a cabeça de quem tem menos de 18 anos.

Plectrude é a protagonista de “Dicionário de nomes próprios”. Nascida de uma tragédia, contada de forma dinâmica no início do livro, ela é tratada pela irmã de sua mãe com todos os mimos que podem estragar a vida de um ser em formação. A tia, que não conseguiu ser bailarina, transfere o desejo para a sobrinha e reflete nela sua personalidade. Está armado o cenário para mais uma tragédia.

“Nesse mundo, nenhuma ternura nos olhos dos adultos: só uma foice à espreita dos últimos frutos da infância”. A melancolia, o isolamento e a ironia são as armas de Plectrude, assim como de outras personagens de Amélie diante dessas “estranhas criaturas” que são as outras pessoas. Uma delas é a própria autora, que faz uma rápida aparição no final do livro e lhe dá o desfecho para lá de inusitado.

Memórias do bebê Amélie
em “A metafísica dos tubos”


Em “A metafísica dos tubos”, no entanto, Amélie não aparece apenas no final, mas no livro todo. É uma espécie de autobiografia dos primeiros três anos da autora, em que a fantasia e a imaginação compensam a natural falta de memória desse período da vida, que só se revela para ela quando a avó lhe oferece um tesouro chamado chocolate branco. “A lembrança é um dos aliados mais indispensáveis da volúpia”.

Nessas memórias do bebê Amélie, passadas no Japão, onde ela, filha de pais belgas, viveu parte da infância, é preciso não pensar no que é real ou fictício e buscar apenas o prazer da leitura, que se divide entre algumas noções filosóficas na visão nem sempre tão ingênua de uma criança e o bom humor. “No Japão, ser gêmeo deve ser um problema mais grave que em qualquer outro país”.

Mas a autora também revela seu lado cético, que, mesmo diante da beleza constante da natureza presente em suas memórias (“A luz do sol é mais bela que nunca quando vista por baixo da água”), ela reduz a vida a algo desprezível. “A vida é o que você está vendo: membranas, tripas, um buraco sem fundo que exige ser enchido”. Neste ponto, o livro se enche de um pessimismo que não combina com a ingenuidade e a alegria de trechos como o da queda do pai no esgoto, do burro falante ou da “importância planetária” que ela dá ao seu aniversário de três anos.

Vencedora do Grande Prêmio da Academia Francesa em 1999, Amélie Nothomb vendeu milhões de livros no mundo todo. Nos dois romances mencionados aqui, a visão nem um pouco infantil das crianças-personagens parece explicar um pouco a razão deste sucesso, como ela escreve no “Dicionário de nomes próprios”: “Cada indivíduo sem dúvida tem no universo do escrito uma obra que o transformará em leitor, se o destino favorecer tal encontro”.

"QUANTO ÀS REFEIÇÕES, pareciam torturá-la. Já estavam acostumados a sua parca dieta, mas agora não comia praticamente nada (...).
Ao chegar, todos lhe pareceram obesos. (...)
Perguntava-se sobretudo como toleravam aquela vida tão vã, aquela moleza estacionária e sem finalidade. Bendizia sua existência dura, suas privações: ela, ao menos, caminhava para alguma ccoisa.
(...) precisava de sentido: nisso já era adolescente".

Trecho de "Dicionário de nomes próprios", de Amélie Nothomb

"EU ME ENTENDO. AOS DOIS anos de idade, saíra do meu torpor para descobrir que a vida era um vale de lágrimas no qual se comiam cenouras cozidas com presunto. Devia ter a sensação de ter sido passada para trás.
Para que então nascer, se não é para conhecer o prazer? Os adultos têm acesso a mil volúpias, mas para as criancinhas só a gulodice abre as portas do deleite".

Trecho de "A metafísica dos tubos", de Amélie Nothomb