segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

SUBMUNDO, DEBOCHE E FOLHETIM EM SP


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 31 de maio de 2003)

Marcos Rey, autor versátil em estilos e gêneros, tem dois de seus melhores livros relançados

Memórias de um gigolô e Ópera de sabão, de Marcos Rey. Editora Companhia das Letras, 320 pgs e 320 pgs. Cada um a R$ 36

Marcos Rey foi aquilo que nem mesmo alguns grandes escritores conseguiram ser: versátil. Pois não poderia haver outra definição para o autor que misturou em seu currículo livros como “Memórias de um gigolô”, passado no submundo paulistano dos anos 30, e uma vasta coleção infanto-juvenil. Entre romances, roteiros de cinema, novelas, crônicas, scripts de rádio e peças, foram mais de cinco milhões de exemplares vendidos. Um fenômeno, principalmente neste país onde se diz que as pessoas lêem pouco.

Morto em 1999, o escritor paulistano tem agora dois de seus melhores livros relançados. O já citado “Memórias de um gigolô”, publicado pela primeira vez em 1968, foi adaptado para o cinema e uma série de TV nos anos 80, com Lauro Corona, Bruna Lombardi e Ney Latorraca. Conta a história de Mariano, sobrinho de madame Antonieta, vidente que lia cartas de um baralho ensebado e teria sido a pessoa que “mais intensivamente combateu o quebranto e o olho gordo”. Com a morte dela, ele vai morar no prostíbulo de Madame Iara, ex-cliente de sua tia, onde torna-se redator de bordel, uma “profissão” que não vale a pena ser explicada para quem ainda não leu o livro.

O ambiente de Marcos Rey, cujo nome verdadeiro era Edmundo Donato, é São Paulo, e os personagens tanto poderiam sair da música de Adoniran Barbosa ou de um livro de João Antônio, profundos conhecedores da “arraia-miúda” e das “crocodilagens” daquela cidade. O exagero proposital, o bom humor e uma ironia que beira o deboche são as marcas deste livro, que apesar de se passar nos anos 30 permanece atualíssimo.

Publicado originalmente em 1980, “Ópera de sabão” já tem um estilo mais contido. Também ambientada em São Paulo, a trama se concentra numa família de classe média durante quatro dias, do suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, até um dia qualquer de 1969. Cada um dos cinco membros da família de Manfredo Manfredi, dono de uma empresa de transportes que sai de casa para matar Carlos Lacerda, rende uma história interessante. Elas se cruzam através de coincidências típicas de folhetim, com os tradicionais “ganchos” de finais de capítulos, e tornam a leitura mais dinâmica à medida que se aproxima do final.

Referência à época na qual
São Paulo começava a crescer


O livro, que tem prefácio de Mário Donato, autor de “Presença de Anita”, traz referências interessantes sobre a época em que São Paulo começava a se tornar a maior metrópole da América Latina. Um filho de Manfredi trabalha numa imobiliária e outro numa agência de publicidade, dois ramos que enriqueceriam muita gente dali para frente. Já a esposa, Hilda, ganha a vida num programa de rádio chamado “Madame Zohra e você”, onde dá diversos conselhos e combate o aborto. Mas quando um dos seus filhos “faz mal” a uma moça de subúrbio, que engravida, vai surgir uma das tramas mais tensas do livro.

Embora tenha passagens bem-humoradas, o livro pode ser visto também como um relato bem sério da época em que o Brasil deixava de ser, de fato, um país agrícola para entrar na era industrial e todas as suas conseqüências, como a comunicação de massa e a preocupação com o marketing, hoje indispensável em eleições, seja para presidente da República ou síndico. “A técnica da conversa em grupo consiste em não deixar cair a peteca e fazer perguntas quando nos cabe dar respostas”.

“Ópera de sabão” é a tradução literal de soap opera, expressão usada nos EUA para as antigas radionovelas, geralmente patrocinadas por marcas de sabão. Além da constatação de que as clíncias clandestinas de aborto já ficavam lotadas nos anos 50, outros temas atuais deste livro são mencionados, como a preocupação de que os americanos um dia nos tomem “na marra” a Amazônia - acentuada nestes tempos de Doutrina Bush.

Mas o que fica de mais importante e prazeroso após a leitura destes dois livros é a comprovação de que uma das maiores fontes de histórias dramáticas ainda é a boa e velha família. Que o diga Nelson Rodrigues.

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