O AMOR IDEALIZADO E A ASPEREZA DO COTIDIANO EM CONTOS DE 1001 NOITES
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em dois de novembro de 2002)
Tahar Ben Jelloun fala de encontros e desencontros, felicidade e perdas
O primeiro amor é sempre o último, de Tahar Ben Jelloun. Tradução de Joana Angélica D´Ávila Melo. Editora Vieira & Lent, 176 páginas. R$ 26
Apesar de alguns dos 16 contos deste livro terem sido publicados em periódicos franceses durante vários anos, eles formam uma bem estruturada unidade temática em torno do amor. Tahar Ben Jelloun, escritor marroquino radicado em Paris desde 1971, utiliza este sentimento como um ponto de equilíbrio entre a vida idealizada e a aspereza do cotidiano. “O amor é bonito nos livros, em imagens, no cinema. O amor de verdade, aquele que conta, é o da vida cotidiana; dele nunca se fala, porque ele não é fácil de representar”.
Já no primeiro conto, “O amor desatinado”, onde o Brasil é citado em um “ditado popular” sobre o uso da camisinha, isto fica bem claro e o final trágico, que muda toda a expectativa da história no parágrafo derradeiro, é uma prova de que a força das chamadas histórias curtas reside principalmente na surpresa.
O autor tem uma clara preferência pelos “ardis femininos” – título de outra história – como elemento de provocação ao leitor. Eles tanto podem surgir revestidos de uma declaração cheia de adornos poéticos como de um desejo nada dissimulado. “Uma era loura, a outra morena. Uma colecionava homens, a outra esperava o príncipe encantado”.
As mulheres árabes dos contos de Bem Jelloun tiram o véu e muito mais, revelando uma sensualidade explícita, algumas vezes submissa, em outras dissimulada, mas quase sempre instigante, como na tática do amor aéreo. “Impedia-o de ejacular e obrigava-o a ficar o máximo de tempo em ereção, girando em torno dele, acariciando-o com sua longa cabeleira”.
O autor utiliza uma linguagem poética e cheia de imagens fortes para contar suas tramas, sendo que em algumas vezes recorre a um contador de histórias dentro da narrativa. Como em “A víbora azul”, típico caso do conto que merece uma relida, não por falta de entendimento, mas sim para perceber com mais prazer como os elementos se encaixam com a precisão de um encantador de serpentes.
No conto mais erótico do livro, “O homem que escrevia histórias de amor”, Ben Jelloun utiliza de novo a técnica de dar a um personagem a tarefa de contar a história – marca óbvia de uma literatura inspirada nas “Mil e uma noites” – e revela ao mundo ocidental o significado que surge se a mulher casada colocar emborcada a babucha masculina, uma espécie de calçado, e apontar a sola. Recomenda-se não fazer isso em locais públicos.
Mas além do amor e seus derivativos eróticos, Ben Jelloun também escreve muito sobre solidão, que tanto pode ser a do narcisista que não vê nada além do espelho (“Em criança, quando lhe perguntavam o que ia ser quando crescesse, ele respondia sem hesitar: Famoso”) como a do homem que não suporta festas de Natal, pelo menos até encontrar alguém que lhe dê um mínimo de atenção. “Deviam construir abrigos antifestas”.
Vencedor do prestigiado prêmio Goncourt na França, em 1987, com o romance “La nuit sacrée” (“A noite sagrada”), o autor não deixa de fazer um alerta sobre sua própria profissão. “Convém desconfiar dos escritores que se dizem de férias, pois eles jamais deixam de interpretar e de imaginar”. Não é à toa que parte de suas histórias se passa durante as férias de alguém, como no caso das senhoras européias atraídas por guias turísticos árabes que dão notas às suas conquistas: “Sexta-feira: ela me obrigou a fazer aquilo de pé. Boca sem lábios. Nota 2!...”
É principalmente um livro de encontros e desencontros, de uma busca constante pela felicidade no amor e também de sua perda, que traz solidão, desespero e boas histórias desde que se começaram a contá-las. Ben Jelloun cria, por isso, personagens marcantes, que carregam a fantasia e o mistério da cultura árabe misturada com a rapidez da vida moderna. “Invento a textura da pele, o calor das mãos, o olhar e os silêncios”. O resto fica por conta do leitor e sua imaginação.
"HAVIA LIDO QUE UMA JOVEM podia perder a virgindade apenas com a penetração do dedo médio. Agora, sua virgindade estava disponível, suas coxas, afastadas, seu sexo, aberto, mas o homem que ela amava dormia profundamente e até roncaca. Ela tirou o anel e admirou-o à luz do banheiro. E se as pedras fossem falsas? E se tudo fosse falso? O homem não sendo um homem, o casamento não passando de um simulacro de casamento, a lua-de-mel sendo apenas um sonho mal escrito, um sonho desvirtuado por um marido que havia mudado de face?"
Trecho do conto "O amor desatinado", de Ben Jelloun
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