terça-feira, 10 de novembro de 2009

CONTOS SOBRE A SAUDADE DO QUE NÃO HÁ DE VOLTAR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 27 de outubro de 2001)

Moutinho narra com profundidade e beleza ações introspectivas

Memória dos barcos, de Marcelo Moutinho. Editora 7letras, 76 páginas. R$ 15

Em vez de ações contínuas e de final imprevisto, os contos de Marcelo Moutinho têm como tema principal a saudade. E nos introspectivos monólogos de seus personagens, o autor evita o perigoso terreno do melodrama e faz da impossibilidade de tudo voltar a ser o que era um sentimento mais profundo.

Na história que dá título ao livro, por exemplo, os barcos azuis da infância do protagonista estão no mesmo local, "com uma ou duas mãos de tinta a mais", mas ele já vive em um outro mundo e a sensação de melancolia é inevitável.

Neste raro momento em que ele pode vislumbrar o passado de forma tão viva, entre uma e outra viagem a trabalho, até mesmo um cartão de Natal caído no chão assume as proporções de um livro de memórias, quando se enviavam cartas apenas pelo prazer de receber cartas de volta, "ávidos, incomensuravelmente ávidos, por algo ou alguém que eleve nosso nome".

A menina que se agarra à árvore plantada pelo pai, já morto e substituído por um sujeito que discute com a sua mãe todos os dias, também se refugia no passado, mas encontra no fantástico, emoldurado pelo livro "Flicts", de Ziraldo, a alternativa que a vida, concreta como ela só, não dá. "Era como se a porta de entrada do quarto fosse a porta de saída do mundo".

Personagens se movem
num mundo indiferente


Esse caráter introspectivo de boa parte de seus personagens, estranhos em um mundo cruel e indiferente, se manifesta por imagens fortes, simples e bem descritas. A felicidade nas histórias de Marcelo Moutinho é um ingrediente que só é convidado quando a imaginação do autor resolve enfeitar um pouco a realidade.

Assim, a velha história do sujeito que passa um entediante domingo vendo TV, lendo jornal e sentindo a segunda-feira chegar, ganha toques de originalidade quando uma estrela cai em sua sala. "Nomear, nomear, nomear o inteligível e o ininteligível, eis o nosso incessante desejo".

A angústia dos personagens permanece até mesmo no canário que passou a vida preso - inclusive acompanhando um de seus donos na prisão por 17 anos - e não consegue conviver com a liberdade, que aproveita nos dias de domingo, quando seu atual dono o deixa passear livremente pela casa. No entanto, quando está solto, o canário fica em silêncio, não canta e se explica ao leitor: "Se por todo o sempre estive cerceado, vivo a cantar minhas dores, não minha alegria".

Perto de uma vizinha que reclama dos sacos de lixo, o personagem de "Flores de inverno", conto de apenas um longo parágrafo, se sente um "náufrago de saudades indizíveis". E junto com ele e sua busca pelas flores que só nascem nesta estação do ano, a válvula de escape dos personagens dos demais contos pode estar tanto nos tais barcos azuis como em ruas de paralelepípedos e de terra batida. Ou na vitrine de uma padaria do Rio, onde Ana, recém-separada de Mário, busca o homem que a encantou e que só viu uma vez.

Sem apelar para chavões ou baixarias, os contos de Marcelo Moutinho se destacam pela leveza com que são contados, uma característica a se destacar principalmente devido à profundidade dos temas. Pois se não há aqui a história de ação constante e de final surpreendente, a ação se passa no mundo dos próprios personagens, muitas vezes ilusório e angustiante. Mas, afinal, talvez seja o único onde vale a pena estar vivo.

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