segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O CARISMÁTICO DETETIVE NERO WOLFE ENFRENTA CONFRARIA DE VELHOS AMIGOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 16 de março de 2002)

Personagem de Rex Stout aparece numa de suas primeiras histórias

A confraria do medo, de Rex Stout. Tradução de Álvaro Hattnher. Editora Companhia das Letras, 368 páginas. R$ 28

Quem sabe dizer até que ponto um personagem se confunde com seu autor? Algumas das melhores frases de Oscar Wilde saíram da boca do pedante lorde Henry Wotton, em “O retrato de Dorian Gray”, assim como o Nick Adams de Hemingway tinha um pai médico e adorava caçar e pescar, como seu criador, e para muitos o defunto autor Brás Cubas não transmitiu a nenhuma criatura o “legado da nossa miséria” simplesmente porque esta era a filosofia de vida de Machado de Assis.

Mas Nero Wolfe, um dos personagens mais carismáticos da literatura policial, é tão singular que é difícil associá-lo ao estilo de vida de seu criador, Rex Stout, um americano de Indiana, nascido em 1886, ativo participante de causas liberais em seu país e que quando morreu, em 1975, deixou dezenas de livros com sua principal criação.

Wolfe tem mania de cuidar
de suas preciosas orquídeas


“A confraria do medo”, de 1935, é uma das primeiras histórias em que Wolfe aparece. Glutão, bom bebedor de cerveja, é um homem com raro poder de intuição, profundamente sistemático quanto a horários e que raramente sai de seu escritório, em Nova York, deixando o trabalho nas ruas para seu ajudante, Archie Goodwin, narrador da história e que não se conforma por não ter metade da capacidade de raciocínio do chefe, mas se irrita muito quando Wolfe deixa de lado discussões importantes sobre um caso para cuidar de suas preciosas orquídeas ou apreciar um atlas.

A trama tem início numa brincadeira de mau gosto feita pelos colegas de Paul Chapin na faculdade e que lhe custou um defeito físico numa das pernas. Quando, muitos anos depois, alguns destes mesmos colegas começam a ser assassinados, as suspeitas recaem sobre uma possível e mórbida vingança de Chapin, já então um famoso romancista. Ao contrário de muitos livros policiais, os diálogos e a ação não ocupam o plano principal da narrativa de Rex Stout, que ganharia ainda muitos prêmios literários por sua sére de histórias sobre Nero Wolfe. O personagem ainda se manteria ativo mesmo após a morte do autor, numa continuação feita pelo escritor Robert Goldborough até meados dos anos 90.

As idas e vindas da investigação, descritas num texto sofisticado, são o que mais atraem na história e Rex Stout se aproveita de seu personagem principal para considerações de todo tipo, inclusive estéticas. “Assim, o artista tem de deixar de fora muitíssimo mais do que inclui, e uma de suas preocupações centrais é não deixar nada de fora que seja vital para sua obra”.

O autor não abusa da ironia em seu texto, mas quando a utiliza prefere não economizar no sarcasmo. “E se algum deles trouxer consigo algum objeto estranho, como um advogado, por exemplo?” O cenário principal da ação é o escritório de Nero Wolfe. Suspeitos, assassinos, policiais, outros detetives, praticamente todos passam por lá, em audiências com o personagem principal, que nunca fala de negócios na hora das refeições, sempre preparadas pelo fiel e excelente cozinheiro Fritz Benner, eficiente também para não se esquecer dos copos de leite de Archie.

Seu ponto fraco,
a imensa barriga


Por cuidar do ponto mais fraco de Wolfe, a imensa barriga, Fritz talvez seja a única pessoa que ele respeita, já que para as outras ele prefere expor sua superioridade de forma inteligente e devastadora, como nesta frase dita a Archie: “Deus nos criou, você e eu, bastante desiguais em alguns aspectos, e seria inútil tentar qualquer interferência em seus planos”.

Além de Fritz e Archie, já estão neste livro dois personagens que iriam acompanhá-lo sempre, o desconfiado inspetor Cramer, que nutre uma profunda admiração por Wolfe, e o nem sempre eficiente detetive Saul Panzer, às vezes empregado para ajudar Archie no “trabalho sujo”. Se é difícil dizer o quanto Rex Stout tirou de si mesmo para compor Nero Wolfe, ou mesmo se tirou alguma coisa, é certo no entanto que ele deu aos seus personagens tanta atenção que eles não sofreram a ação do tempo e se mantiveram sempre atraentes para o leitor, um caso raro na literatura.

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