terça-feira, 1 de dezembro de 2009

TEXTOS QUE INAUGURAM ´O BAÚ DE NELSON RODRIGUES´ RESISTEM AO TEMPO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 29 de junho de 2002)

Em obras inéditas, autor consagrado já revelava conhecer a alma humana

A mentira
, de Nelson Rodrigues. Companhia das Letras, 144 páginas. R$ 24,50

Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, de Nelson Rodrigues. Editora Companhi das Letras, 144 páginas. R$ 24,50

Parece coisa do Sobrenatural de Almeida, mas é verdade. Para comemorar os 90 anos do nascimento de Nelson Rodrigues, em agosto, dois livros inéditos do escritor estão sendo lançados. Publicados apenas em jornais, “A mentira” e “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo” abrem a coleção “O baú de Nelson Rodrigues, da Companhia das Letras, que há havia publicado, sob a organização de Ruy Castro, 14 títulos da obra não-teatral do escritor. Para os fãs, saber que terão de abrir mais espaço na estante dedicada à sua imensa produção é um acontecimento. E, para o autor, é uma homenagem e tanto saber que sua obra resiste bem até mesmo ao perigoso teste das obras póstumas, muitas vezes sinônimo de constrangimento para a imagem do artista.

´A mentira´ se comprime
num cenário tijucano


"A mentira" é o primeiro romance de Nelson Rodrigues. Escrito em 1953 durante 18 semanas no semanário "Jornal da Semana - Flan", de Samuel Wainer, ele traz elementos do típico universo rodriguiano, comprimido numa casa tijucana onde convivem uma adolescente grávida e dissimulada despertando desejos no pai hipócrita, a mãe submissa, as outras filhas, ciumentas em relação à caçula, e os genros, estes suspeitos da gravidez da cunhada.

O cenário, tipicamente carioca e povoado de pessoas comuns, fará parte de um desfecho trágico e completamente inesperado. As constantes mudanças no curso do enredo, evitando situações previsíveis, os planos de narrativa se sobrepondo e aumentando o interesse da trama central, e a vida medíocre e sem perspectivas de personagens típicos da "vida como ela é" já são a base do estilo que Nelson Rodrigues desenvolvia, sem excluir alguns personagens constantes em suas obras, como o psiquiatra, o contínuo e o médico: "Ele costumava dizer que a reputação de um ginecologista é mais sensível e mais ameaçada que a de uma senhora honesta".

O outro livro traz o "consultório sentimental de Nelson Rodrigues", no qual o autor, escondido sob o pseudônimo de Myrna, respondia centenas de cartas numa coluna do jornal "Diário da Noite", em 1949. Nos conselhos "dela", que se define de forma singela ("apenas uma mulher"), a preocupação essencial é com o amor. "A mulher pode se privar de pão; de amor, nunca". O profundo conhecimento de Nelson Rodrigues sobre a alma feminina e sua inquietações se sobressai em todas as cartas, muitas delas repletas de constatações perturbadoras. "De onde resultam as tragédias amorosas? Resultam, precisamente, do fato de que ninguém escolhe certo, mas escolhe, quase sempre, errado".

Coerência das respostas
de Myrna é inabalável


Nos 43 conselhos do livro, a coerência das respostas de Myrna é inabalável e muitas vezes proporciona frases irônicas e teoricamente definitivas, que, tanto pelo tema quanto pela ironia, lembram Oscar Wilde, outro frasista de respeito. "A mulher feia deve ser quase sempre inconquistável"; "De uma maneira geral, é sempre interessante que a mulher se faça difícil"; "O amor de uma mulher, quase sempre, faz mal à outra, sobretudo se esta não teve ou não tem um sentimento parecido".

Myrna também é profunda e na firmeza de sua opinião ela se aventura até mesmo no terreno de ninguém menos do que Balzac, pois se para o escritor francês os 30 anos eram o "ápice poético da vida das mulheres", para Myrna, nesta idade "a mulher começa a se aproximar da plenitude dos seus encantos de corpo e de espírito".

Os dois livros foram organizados pelo diretor teatral Caco Coelho, que também assina os posfácios. Espera-se que o bom nível seja mantido nas próximas descobertas deste precioso baú, ainda que possa ser o óbvio ululante afirmar isto quando se trata de Nelson Rodrigues.

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