quinta-feira, 26 de novembro de 2009

COMO SALVAR O MUNDO SEM DESTRUIR A FAMÍLIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 27 de abril de 2002)

Hornby mostra com ironia quão difícil é na prática se solidarizar com os desabrigados

Como ser legal, de Nick Hornby. Tradução de Paulo Reis. Editora Rocco, 308 páginas. R$ 31

A irreverência e o bom humor de Nick Hornby fizeram muito sucesso por aqui há dois anos, em livros como “Febre de bola” e “Alta fidelidade”, este último responsável por uma epidemia de listas de melhores e piores sobre qualquer assunto. A prosa do autor inglês parecia ideal para um bate-papo no bar da esquina, tal a naturalidade com que ele falava de temas típicos de uma conversa de botequim, como futebol e problemas de relacionamento. Desta vez ele trata também de problemas amorosos, mas resolve ser mais profundo e usa o protagonista para acabar com a miséria do mundo. Para desespero da sua esposa.

Katie Carr descobre que está infeliz no casamento, mesmo tendo “dois filhos adoráveis, uma casa agradável, um emprego bom, um marido que não bate em mim e aperta todos os botões certos no elevador”. O problema é que o tal marido, David, é um sujeito extremamente irritante, que fala mal de todo mundo, de Pelé a Paul McCartney, e não dá muita atenção às dúvidas da esposa, uma médica que também já não sentia prazer na profissão.

Místico-curandeiro muda
a vida do protagonista


Felizmente a história não fica na neurótica rotina do casal. O toque de irreverência que Hornby empregou tão bem nos livros anteriores surge na figura do D.J. BoasNovas, um místico-curandeiro que resolve o problema da dor nas costas de David e dos eczemas de Molly, a filha do casal, apenas com massagens.

A amizade com BoasNovas, que vai morar na casa de David, para desespero de Katie e do outro filho deles, Tom, provoca uma mudança na personalidade de David. Se antes ele falava mal de todo mundo, agora busca ver o lado bom das pessoas. Para Katie, a mudança causa muito mais estranheza do que alegria, pois David aprende a “como ser legal” não apenas com a família, mas com toda a Humanidade.

A solidariedade passa a ser o tema dominante do livro, já que David e seu inseparável amigo BoasNovas resolvem iniciar uma campanha de adoção de desabrigados na rua onde moram. A campanha se expande depois com outras idéias, mas o principal é que Hornby mostra até que ponto o cidadão comum, principalmente nos países desenvolvidos, tem uma parcela de culpa na miséria. E isso tudo na medida certa, sem em nenhum momento parecer panfletário.

É claro que problemas surgem a partir das imensas diferenças entre os desabrigados e as pessoas que os adotaram, alguns com ruídos impressionantes durante a mastigação, outros com flatulência e outros ainda com um irresistível desejo de roubar quem os acolheu. “Quem diria que o desejo de melhorar o mundo poderia ser uma coisa tão agressiva?”

A idéia vai dando certo parcialmente e alguns dos desabrigados chegam mesmo a melhorar a vida de quem os abrigou. Só não melhoram a de Katie, que representa o cidadão comum, achando-se liberal e solidária, mas que diante de uma campanha radical se recolhe a um conformismo que prefere salvar o próprio casamento em vez da Humanidade. “Manter boas relações com quem sempre partilhamos o peru de Natal é que é um milagre”.

Katie é a personagem mais atormentada da história. É através dela que o autor revela sua intenção, que não é buscar soluções para resolver toda a miséria do mundo, mas sim um modo razoável de viver e salvar a própria família. “Aparentemente, o simples fato de sermos humanos já é suficientemente dramático para todos nós; não é preciso ser viciado em heroína ou poeta performático para vivenciar emoções extremadas. Só é preciso amar alguém”.

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