terça-feira, 17 de novembro de 2009

DOTE ACABA QUANDO ENTRA EM CENA O AMOR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de janeiro de 2002)

Pesquisadora dos EUA estuda as mudanças nos pactos matrimoniais realizados no Brasil

O desaparecimento do dote - Mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600/1900, de Muriel Nazzari. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira, 358 páginas. R$ 37

É bem possível que a expressão "quem casa quer casa" tenha sua origem na prática do dote, tão comum nos casamentos brasileiros até meados do século XIX. Pois foi nessa época que fizeram a grande descoberta de que o amor também poderia, e deveria, fazer parte das ligações entre os cônjuges. O dote era, até então, parte integrante do pacto matrimonial, um grande empreendimento produtivo e que também tinha a função de ampliar as ligações familiares.

O ótimo estudo da pesquisadora americana Muriel Nazzari, tendo como ponto de partida a prática do dote nos EUA e na Europa, foi feito em São Paulo no início dos anos 80 e se limitou às famílias paulistas no período que vai do início do século XVII ao século XX. O trabalho se baseou em inventários e mostrou como a mulher teve papel fundamental no processo.

O dote nada mais era do que um adiantamento da herança de uma das filhas que iria casar, dado pelos pais ao novo casal - quase sempre em regime de comunhão de bens. Basicamente, ele se constituía de elementos produtivos: fazendas, escravos e bois. Como a Coroa não se envolvia muito nas atividades econômicas e administrativas de São Paulo, devido ao difícil acesso, o casamento era muito mais um acerto entre os clãs familiares, que dominavam o poder.

As famílias eram unidades empresariais e os casamentos nada mais do que alianças de negócios, uma questão de propriedade. E quem eram os maridos? Na maioria, faziam parte dos outros clãs importantes, ou então eram nobres fidalgos, que neste caso garantiam o "sangue azul" para a família e o embranquecimento da raça numa região de profunda mistura entre brancos e índios. "Na verdade, casar uma filha não significava perdê-la, e sim ganhar um genro".

O objetivo da pesquisa é descobrir por que o dote acabou. A situação, segundo a autora, começou a mudar no século XVIII. Até aquele momento, o dote era a melhor forma de um jovem solteiro iniciar sua atividade econômica, limitada na época às atividades agropecuárias. O sujeito se casava, recebia o dote e, mesmo que mal suportasse olhar para o rosto da esposa, tinha garantido uma existência material tranqüila e muito provavelmente uma vida conjugal infeliz.

A pesquisadora explica que as bandeiras, as expedições feitas pelos paulistas ao interior em busca de ouro e índios, começaram a mudar a situação. Além de haver uma outra possibilidade de enriquecer, o afastamento e a dispersão dos filhos diminuíram o poder patriarcal. A mudança se aprofundou no século XIX, quando atividades comerciais e o surgimento de profissões liberais tornaram o casamento, pelo menos boa parte deles, uma questão de opção entre os cônjuges e não mais um empreendimento. Os dotes diminuíram de tamanho e quantidade, até que o Código Civil de 1917 oficializou o seu fim.

Muriel diz que com isso a mulher perdeu a importância que tinha no casamento, pois ela era a principal responsável pela estabilidade econômica do casal, enquanto que as novas leis determinavam sua total dependência do marido, tornando a esposa "relegada à esfera doméstica", sem direito a usar o seu sobrenome de solteira.

Apesar de ser uma pesquisa profunda, com gráficos e números, o texto é leve e conta com glossário e várias indicações bibliográficas. A autora não se esquece, por exemplo, da literatura. Ela lembra que os escritores românticos do século XIX elegeram o amor como a melhor alternativa contra o dote.

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