CELEBRAÇÃO AO MODERNISMO E ÀS TRANSGRESSÕES DA MORAL BURGUESA
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em três de agosto de 2002)
Vingança definitiva contra Serafim Ponte Grande em ´Pinto Calçudo´, agora revisto
Pinto Calçudo ou os últimos dias de Serafim Ponte Grande, de Sérgio Augusto de Andrade. Editora Globo, 208 páginas. R$ 22
Quando lançou “Serafim Ponte Grande”, livro no qual estava definido que o Brasil “é uma República Federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus”, Oswald de Andrade deu ao seu texto o “direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas”. O escritor e crítico Sérgio Augusto de Andrade seguiu à risca a recomendação do autor modernista quando publicou este livro, escrito “de 1990 para trás, para os lados”, e revisto agora.
Não apenas por manter a linha de sátira social e ruptura com a forma e a estrutura tradicionais da ficção, “Serafim Ponte Grande”, escrito em 1929, é uma leitura fundamental para se entender de onde surgiu Pinto Calçudo, ou melhor, José Ramos Góis Pinto Calçudo, um sujeito que sentia imenso constrangimento por seu sobrenome e que talvez tenha esta como uma das razões para abrir suas memórias dizendo que “o amor ao próximo não é o meu forte”.
Pinto Calçudo, “condenado”
a Serafim Ponte Grande
No livro de Oswald de Andrade, Serafim e Pinto Calçudo trabalham juntos na Repartição Federal de Saneamento, também conhecida como Escarradeira. Antes que Serafim o expulsasse do romance que estava escrevendo, Pinto Calçudo teve bastante tempo para alimentar uma aversão completa a seu colega, gerada por fatos como a insistência dele em chamá-lo de “pintão” ou “pintérrimo”, a inconveniência de convidá-lo para intermináveis jogos de bilhar e a insistência em lhe dar suspensórios azul-pavão de presente de aniversário.
“Há quem nasça com um tumor ou uma maldição; eu pareço ter nascido condenado a Serafim Ponte Grande”, diz Pinto Calçudo, enquanto seu desespero vai aumentando. A idéia de uma vingança definitiva surge em meio a uma estrutura narrativa que dá espaço a uma ironia cheia de referências cultas (que no final são explicadas mais ironicamente ainda por um suposto editor nonagenário). O autor adicionou, inclusive, nomes ao bizarro dicionário do livro de Oswald, que ia só até a letra L, como “Aguiar Nogueira (dr) – Médico gordo que me curou de recaída de gonorréia”; “Númia – Nome esquisito”; Valerinha Lion – Sirigaita”; Carlindoga – Exemplo da indignidade humana”.
Nesta mescla de formas e estilos, que inclui 11 páginas sem uma vírgula (descritas no final pelo editor nonagenário como um “ostensivo ultraje às regras da lógica”), há espaço para uma lista das conquistas amorosas de Pinto Calçudo, uma sucessão de “donas” que realçam o lado erótico, e muitas vezes quase pornográfico – como no breve desejo sexual por Serafim – destas memórias. Dona Olga, por exemplo. “De um lado, os músculos de um mouro; de outro, a alva delícia primitiva da ametista e da mirra: o império dos lóbulos, a tapeçaria do púbis, a garganta da loba”.
Premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, este livro é uma celebração talvez do que o modernismo tinha de mais transgressor em relação à moral burguesa, às normas convencionais da narrativa e ao próprio conceito de obra de arte. E nestes tempos em que nunca se viu tanta gente ser famosa por 15 minutos, Pinto Calçudo mostra que sua sabedoria é um resignado complemento à famosa frase de Andy Warhol: “Passei a tarde defendendo, com métodos, a tese inquestionável de que pessoas por demais expostas ao aplauso público acabam atordoadas”.
´SERAFIM NUNCA ESTEVE TÃO gordo, com crises cada vez mais agudas da mais cabotina puerilidade: agora resolveu deixar crescer um bigode que teima em se limitar às proporções femininas e um pouco humilhantes de um discreto, ridículo e parco buço. Elogia sempre essa desconexa, absurda sombra sob o seu nariz como se fosse alguma arma fálica, um troféu espartano, um tesouro viril, uma dádiva mediterrânea – e é só um traço de penugem. Uma penugem, aliás, a que Serafim se refere na terceira pessoa o tempo todo, como se se tratasse de algo gloriosamente alheio a si próprio: talvez esteja acometido de alguma forma medíocre e esquizofrênica de mania persecutória. Na melhor tradução de suas obsessões, entretando, seu duplo – esse simulacro ontológico e terrível que tanto atormentou Poe, Dostoievsky e, de certa forma, mesmo Conrad – é só o projeto inacabado e juvenil da sombra de um bigode´.
Trecho de “Pinto Calçudo”
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