sábado, 2 de janeiro de 2010

MELANCOLIA E IRONIA EM UM CENÁRIO ARMADO PARA MAIS UMA TRAGÉDIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de julho de 2003)

Curiosidade em torno da morte na escrita da premiada Amélie Nothomb

Dicionário de nomes próprios, de Amélie Nothomb. Tradução de Bluma Waddington Vilar. Editora Nova Fronteira, 160 páginas. R$ 22

A metafísica dos tubos, de Amélie Nothomb. Tradução de Clóvis Marques. Editora Record, 146 páginas. R$ 28

Apesar de colocar a criança como personagem principal destes dois livros, Amélie Nothomb escreve mesmo é para gente grande. Basta folhear as primeiras páginas para se perceber que seu texto, apesar de leve e agradável, possui como uma das principais características a inquietação diante da vida e a curiosidade em torno da morte. Um tema que pode fundir a cabeça de quem tem menos de 18 anos.

Plectrude é a protagonista de “Dicionário de nomes próprios”. Nascida de uma tragédia, contada de forma dinâmica no início do livro, ela é tratada pela irmã de sua mãe com todos os mimos que podem estragar a vida de um ser em formação. A tia, que não conseguiu ser bailarina, transfere o desejo para a sobrinha e reflete nela sua personalidade. Está armado o cenário para mais uma tragédia.

“Nesse mundo, nenhuma ternura nos olhos dos adultos: só uma foice à espreita dos últimos frutos da infância”. A melancolia, o isolamento e a ironia são as armas de Plectrude, assim como de outras personagens de Amélie diante dessas “estranhas criaturas” que são as outras pessoas. Uma delas é a própria autora, que faz uma rápida aparição no final do livro e lhe dá o desfecho para lá de inusitado.

Memórias do bebê Amélie
em “A metafísica dos tubos”


Em “A metafísica dos tubos”, no entanto, Amélie não aparece apenas no final, mas no livro todo. É uma espécie de autobiografia dos primeiros três anos da autora, em que a fantasia e a imaginação compensam a natural falta de memória desse período da vida, que só se revela para ela quando a avó lhe oferece um tesouro chamado chocolate branco. “A lembrança é um dos aliados mais indispensáveis da volúpia”.

Nessas memórias do bebê Amélie, passadas no Japão, onde ela, filha de pais belgas, viveu parte da infância, é preciso não pensar no que é real ou fictício e buscar apenas o prazer da leitura, que se divide entre algumas noções filosóficas na visão nem sempre tão ingênua de uma criança e o bom humor. “No Japão, ser gêmeo deve ser um problema mais grave que em qualquer outro país”.

Mas a autora também revela seu lado cético, que, mesmo diante da beleza constante da natureza presente em suas memórias (“A luz do sol é mais bela que nunca quando vista por baixo da água”), ela reduz a vida a algo desprezível. “A vida é o que você está vendo: membranas, tripas, um buraco sem fundo que exige ser enchido”. Neste ponto, o livro se enche de um pessimismo que não combina com a ingenuidade e a alegria de trechos como o da queda do pai no esgoto, do burro falante ou da “importância planetária” que ela dá ao seu aniversário de três anos.

Vencedora do Grande Prêmio da Academia Francesa em 1999, Amélie Nothomb vendeu milhões de livros no mundo todo. Nos dois romances mencionados aqui, a visão nem um pouco infantil das crianças-personagens parece explicar um pouco a razão deste sucesso, como ela escreve no “Dicionário de nomes próprios”: “Cada indivíduo sem dúvida tem no universo do escrito uma obra que o transformará em leitor, se o destino favorecer tal encontro”.

"QUANTO ÀS REFEIÇÕES, pareciam torturá-la. Já estavam acostumados a sua parca dieta, mas agora não comia praticamente nada (...).
Ao chegar, todos lhe pareceram obesos. (...)
Perguntava-se sobretudo como toleravam aquela vida tão vã, aquela moleza estacionária e sem finalidade. Bendizia sua existência dura, suas privações: ela, ao menos, caminhava para alguma ccoisa.
(...) precisava de sentido: nisso já era adolescente".

Trecho de "Dicionário de nomes próprios", de Amélie Nothomb

"EU ME ENTENDO. AOS DOIS anos de idade, saíra do meu torpor para descobrir que a vida era um vale de lágrimas no qual se comiam cenouras cozidas com presunto. Devia ter a sensação de ter sido passada para trás.
Para que então nascer, se não é para conhecer o prazer? Os adultos têm acesso a mil volúpias, mas para as criancinhas só a gulodice abre as portas do deleite".

Trecho de "A metafísica dos tubos", de Amélie Nothomb

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