quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

METAMORFOSE à la EMMANUEL CARRÈRE


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 22 de março de 2003)

Gesto simples vira o início de um romance que ilude à primeira vista

O bigode, de Emmanuel Carrère. Tradução de Vivian Mara. Editora Rocco, 144 páginas. R$ 24

É bem possível que muitos bigodudos, ao lerem este livro, pensem duas vezes antes de pegar o aparelho de barbear com o firme propósito de mudar de aparência. Emmanuel Carrère, premiado autor francês de 45 anos, faz de um gesto simples como o de tirar o bigode o início de um romance daqueles que iludem à primeira vista. Começam descontraídos, ficam tensos e terminam extremamente violentos.

Vida se transforma
em grande enigma


A trama lembra Kafka, não no estilo, mas na situação vivida pelo protagonista. Afinal, é uma metamorfose que ele, cujo nome não é revelado, sofre ao perceber que seu bigode há tanto tempo cultivado era uma ilusão. Isolado, mas ao mesmo tempo cercado de pessoas que o amam, ou pelo menos que ele julga que o amam, o personagem vê o mundo desabar sob seus pés – e a vida, que até então lhe parecera feliz sob todos os aspectos, se transforma em um grande enigma.

Quando a situação chega a se tornar irritante, com as constantes discussões entre ele e a esposa a respeito do bigode, é que o livro assume um tom mais sério. “Sozinho contra todos, sozinho afirmando que tinha um bigode, um pai, uma memória da qual queriam afastá-lo”. O que parecia uma brincadeira, com tiradas espirituosas, se transforma em uma reflexão sobre o posicionamento do indivíduo diante do mundo e das pessoas que o cercam, mostrando como podemos estar redondamente enganados sobre aquilo de que mais temos certeza.

O desespero do personagem é de uma angústia crescente a partir desse ponto e quem quiser passar o domingo descontraído com a família (de bigode raspado ou não) deve interromper a leitura para continuar numa segunda-feira chuvosa. Estaria mais de acordo com o clima do livro, pois Carrère não poupa escalas para transformar um homem feliz no mais completo dos desesperados. “Gostaria de poder lavar e secar ao sol, por um longo tempo, seu cérebro doente”.

Momentos de humilhação
na vida do protagonista


Apesar do tom meio sombrio que a história assume, o autor consegue inserir alguns elementos de descontração, sacrificando, para isso, seu protagonista, obrigado a passar por momentos da mais pura humilhação. Assim, ele liga de madrugada para amigos a fim de perguntar se tinha ou não bigode, revira fotos no armário com o mesmo objetivo, e chega a inventar artimanhas para abordar pessoas na rua e tentar eliminar sua dúvida, cada vez mais obsessiva. “Sorriu imaginando o ar perturbado que o velhinho ficaria se ele lhe pedisse para olhar atentamente e responder se estava ou não com bigode na foto.

Carrère só exagera um pouco este jogo de referências, sobre o que é ou não realidade, no final do livro. Quando seu protagonista conegue encontrar um pouco de normalidade na vida, há uma virada tão abrupta na história que ela parece perder um pouco o sentido até mesmo para o leitor. Mas vá lá, pois o leitor também compartilha da dor do personagem e acaba se tornando seu cúmplice, pois até o final da trama não se sabe se o protagonista está ficando realmente louco. Pode ter sido uma brincadeira de mau gosto da esposa, ou ela também poderia estar começando a perder a razão, ou mesmo tudo pode não ter passado de uma ilusão, um daqueles pesadelos que surgem depois, por exemplo, que o sujeito come um prato de mocotó à meia-noite.

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