segunda-feira, 30 de setembro de 2019

ALGUM LUGAR PARA CAIR E FECHAR OS OLHOS DE VEZ



Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez - Raphael Vidal - Pallas Editora.

Certa vez conversei com Raphael Vidal sobre o escritor João Antônio, referência literária para nós dois e que eu conhecera nos anos 90, enquanto Vidal já o homenageara em um evento. Agora Vidal consagra seu livro "Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez" a João Antônio e a Lima Barreto. A referência ao escritor não está só na dedicatória e também na temática e no estilo do livro, intenso e dinâmico, feito de frases curtas, gírias de rua, a língua viva dos entorpecidos, dos atropelados pela realidade.

Quando conheci João Antônio, no início de 1994, ele me convidou para tomar umas em um boteco que não existe mais, na esquina da Rua da Relação com Avenida Gomes Freire. Lá ele me falou do incômodo que sentia com a forma como os pobres eram retratados por boa parte de nossos escritores, jornalistas e autores de novelas, seja com preconceitos ou com um olhar excessivamente piedoso. Entre as exceções do passado, Lima Barreto, sua grande inspiração, que sempre teve um olhar sensível e digno para essas pessoas, principalmente os encardidos que frequentavam os muquinfos nas madrugadas, para usar o linguajar de João.

                                                                       João Antônio

Pois foi exatamente dessa conversa com João e da leitura de Lima Barreto que me lembrei ao ler o livro de Raphael Vidal, cria do subúrbio carioca como eu, e que não passa indiferente a essa gente que "tenta escapar do destino, da carne, do corpo, do sangue nas veias". Muito pelo contrário, se mistura com ela, vivencia suas dores e alegrias e percebe a imensa riqueza que há na vida dos que nem sempre são percebidos pelos olhares rápidos de quem só quer cumprim suas obrigações dentro do sistema.

Aqui os pobres são protagonistas, os remediados das ruas estão no palco principal, não há espaço para firulas, não dá tempo sequer de esperar a ressaca passar. "Morrer de verdade é insistir em viver". Como Malagueta, Perus e Bacanaço, os personagens mais famosos de João Antônio, os brasileiros que Vidal nos apresenta são criados nas biroscas e nas quitandas, sem eira nem beira, se arrastando para ganhar um qualquer, como o velho que sobe a ladeira com as flores da igreja, aguardado ansiosamente pelo padre e pelas senhoras, sobe como se fosse um Cristo levando a cruz, em um dos momentos mais emblemáticos do livro: "Caído, lambendo pedra, as flores fizeram um espetáculo, voando para a finitude. Um tapete desenrolava-se bem a sua frente, guiando pelo caminho do fracasso. Ele, o homem, sorria. Se precisasse de uma razão só em toda sua vida, lá estava: o fim".

Vidal já tem uma vivência cultural de muitos anos pelas ruas da cidade, principalmente na área portuária, onde mora, no Morro da Conceição, e onde está à frente da Casa Porto, misto de restaurante, boteco, Centro Cultural, fuzuê e casa de amigos, pois ele recebe a todos do mesmo jeito, informal, sempre de bermuda e sandália, onde não há como não ficar à vontade. João Antônio e Lima Barreto com certeza iriam adorar tomar umas lá, olhando pela moldura da janela o casario do morro e a Baía de Guanabara ao fundo, sonhando com uma cidade mais justa e menos cruel.



                                                        Raphael Vidal na Casa Porto

terça-feira, 24 de setembro de 2019

NATUREZA MORTA

Natureza morta, de José Fontenele. Editora Moinhos.



        O romance "Natureza morta" é construído por José Fontenele em torno de um tema sensível e doloroso: a morte de um bebê durante a gravidez, o chamado parto interrompido. O luto da personagem Laura, que perde primeiro Henrique e, pouco mais de um ano depois, Rafael, não é um luto muito reconhecido pela sociedade, seria uma espécie de dor menor, mas que para a mãe "é como se a natureza dentro de mim não me quisesse como raiz de nada".

A narrativa, com suas muitas doses de dramaticidade e personagens singulares, é bem conduzida pelo autor, que alterna as vozes de Laura e seu marido Damião, que, ao não entender esse tipo de luto, se refugia em um silêncio constrangedor. Em volta dele, todos são vistos e caracterizados como animais, uma forma de representação da sociedade que vai se encaixar muito bem com o destino do personagem, no final do livro. "Todo dia era forçado a ultrapassar bicos, penas, patas, narizes que ninguém sabe o nome, cascos, asas, falsos pés, e toda a sorte de animália possível".

Incompreendida pelo marido e pela família, Laura usa a pintura para enfrentar a sua dor solitária. Mas de repente, do nada, ela se vê cercada, em seu apartamento, por pessoas interessadas em ajudá-la, o aspirante a escritor Hipólito e Tereza, que consegue uma exposição para as obras de Laura. A forma como esses novos personagens são vistos pelo casal é completamente diferente entre Laura e Damião, que os vê como dois intrusos em sua vida com a esposa, enquanto Laura os percebe como eles realmente são: a sua tábua de salvação, o único pedacinho de esperança que ela tinha para se agarrar à vida. "Já ouvi que para ser feliz a dois, nunca devemos nos revelar completamente ao parceiro. Algo como se fôssemos um capítulo de novela que se renova dia a dia, indefinidamente, até a hora desconhecida da morte".

Damião representa a vida adaptada ao sistema, um emprego chato em um hotel, mas suportável apenas pelo desejo de crescer na empresa, e a indiferença, ou a falta de compreensão, em relação ao problema da esposa, facilmente substituível por um jogo de futebol na noite de quarta-feira na TV, aliada à falta de bom senso ao tocar em assuntos traumáticos com a esposa no dia da vernissage dela. Enquanto isso, Laura vive no fio da navalha, uma vida frágil, que pode ser rompida a qualquer momento, e que acaba sendo a o principal combustível para a qualidade da sua pintura: "Mas não tem jeito, Arte é um ofício irregular porque áspera é a vida".

Como foi dito no início, o livro trata de um tema sensível e complexo e José Fontenele, por ser homem, obviamente jamais poderia sentir, em toda a sua dimensão, a dor de Laura ao perder dois filhos durante a gravidez. Mas uma das grandes qualidade deste livro é exatamente o uso da empatia pelo autor, essa capacidade de se sentir no lugar do outro, mergulhando fundo na tristeza e frustração de Laura. Acredito que após a leitura de "Natureza morta" muitos terão um olhar diferenciado para esse tipo de luto tão comum, mas ao mesmo tempo tão oculto pela sociedade.

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                                                                   Eu com o autor


SOBRE O AUTOR
José Fontenele nasceu no Piauí. É jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escritor e organizador cultural. Autopublicou seu primeiro romance, O ralo da consciência, em 2014. Está entre os coordenadores do Clube da Leitura RJ e o Clube de Leitura ZO (RJ). Participou da coletânea Clube da Leitura Vol. IV (Rubra), como escritor e organizador; e tem um conto na coletânea 80 anos, devagarinho — Conta forte, conta alto, publicada pela Festa Literária das Periferias (FLUP), em homenagem à obra de Martinho da Vila. Escreve sobre Cultura e Literatura para a revista literária Revéstres. Colabora com resenhas para sites de literatura e trabalha na agência literária Oasys Cultural. Mora na cidade do Rio de Janeiro.