segunda-feira, 18 de maio de 2015

A PRIMEIRA HISTÓRIA DO MUNDO


 ("A primeira história do mundo", de Alberto Mussa. Editora Record. 240 páginas)

            O primeiro assassinato ocorrido no Rio de Janeiro, no longínquo ano de 1567, quando a maior parte da cidade se encontrava no extinto Morro do Castelo, é o mote do último livro do carioca Alberto Mussa, autor premiado e traduzido para dez países e que aqui dá continuidade ao projeto, segundo ele "absurdo", de produzir uma espécie de compêndio mítico do Rio de Janeiro, que já rendeu os livros "O trono da rainha Jinga" e "O senhor do lado esquerdo".
         O crime propriamente dito, ou seja, o assassinato do serralheiro Francisco da Costa, encontrado com sete flechadas nas costas (e um ferimento nos rins, provavelmente de mais uma flechada) é o ponto de partida para uma aventura que não se limita à História do Rio de Janeiro em seus primeiros anos, mas também à mitologia indígena, tema que o autor já utilizou muito bem em outras obras e que justifica, inclusive, o título deste livro.
         As fontes documentais do assassinato, o primeiro registrado na cidade, são esparsas, sem contar que toda a estrutura jurídica e institucional do lugar ainda estava sendo montada e quem investigava era quem julgava e condenava. Desta forma, misturando ficção com fontes históricas primárias, o narrador vai conduzindo o leitor para as vidas (sempre repletas de fatos pitorescos naquela época de desbravamento de uma terra inóspita) dos dez suspeitos do caso, das testemunhas, do modo de vida dos primeiros habitantes da cidade e das primeiras batalhas pela conquista do litoral.
         O autor mergulha também na intensa mistura (inclusive sexual) de portugueses e indígenas que dariam à formação do Brasil talvez um aspecto único no mundo, tanto que o primeiro a encontrar o corpo da vítima, morta diante da mítica Casa de Pedra, foi o mameluco (mestiço de branco com índio) Simão Berquó, que também será um dos acusados.
         Como uma crônica de uma morte anunciada, para citar aqui Gabriel García Márquez, que nos deixou recentemente, o narrador já deixa bem claro, nas primeiras linhas, quem morreu, onde morreu, além de outras circunstâncias do crime, e que Jerônima Rodrigues, esposa de Francisco, parece ser a chave daquele mistério que assume proporções ainda maiores por se situar na terra bruta do início da ocupação da cidade, onde os muros da cidadela protegiam seus moradores dos perigos do mundo desconhecido, que tanto podiam surgir nas flechadas das tribos inimigas como em um ataque de onça, animal que assume um papel importante na mitologia tupi. Ali a realidade era hostil e a qualquer momento podia desaguar em violência. "Numa cidade onde há mais homens que mulheres, não pode haver virtude".
         A própria natureza dos dez acusados revela a imensa variedade nas origens daquela gente, entre nobres degredados, piratas franceses, perseguidos pela Inquisição, homens gananciosos e libidinosos, que se envolviam sem pudor com as nativas, experimentavam drogas alucinógenas e participam dos rituais indígenas (inclusive os antropófagos), um material riquíssimo para os tantos relatos de viajantes que estiveram na costa brasileira neste primeiro século de ocupação.
         No fim das contas, o que mais importa na narrativa acaba nem sendo o crime em si e sua correspondente investigação (ou devassa), e sim todas as circunstâncias das quais o narrador se apropria para apresentar um painel da vida brasileira do século XVI. Mas para quem quiser ver o livro também no seu aspecto de romance policial, alguns dos seus elementos clássicos estão lá, inclusive com citações a dois mestres do gênero, Edgar Allan Poe e Agatha Christie.    
         Alberto Mussa vai conduzindo o leitor a um final repleto de possibilidades, em uma narrativa que flui leve em meio a tantas informações, sejam reais ou fantasiosas, e estimula a imaginação ao nos levar a um Rio de Janeiro que se limitava a um espaço tão estreito, e a cujo maior símbolo, o Morro do Castelo, nem existe mais, demolido na década de 1920. Além disso, ele nos faz ver a História sob o ponto de vista também da gente da terra, dos nativos que aqui já estavam, com suas culturas, suas lendas (entre elas a das amazonas, as mulheres sem marido, sem dúvida a mais saborosa do livro), as muitas guerras e os rituais, além de um rico vocabulário, presente até hoje em boa parte dos nomes que encontramos no país. Não à toa o autor dedica o livro também "às mulheres anônimas da minha linhagem materna - mamelucas e índias de quem herdei o sangue e o Espírito Tutelar que sopra em meus ouvidos".

1 Comentários:

Às 25 de maio de 2015 às 06:59 , Blogger Marcela Gomes disse...

Olá Mansur, ao longo do romance "A primeira história do mundo", vários mitos indígenas relacionados a figura do feminino foram descritos, que características vc acredita que estes mitos possuem em comum?
E quais as razões para estes mitos estarem narrados neste romance?

 

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