quarta-feira, 5 de maio de 2010

AMIZADE DE OURO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 21 de março de 2009)

Livro reúne cartas de Machado de Assis a Mário de Alencar

“Empréstimo de ouro – Cartas de Machado de Assis a Mário de Alencar” – Organização, introdução e notas: Eduardo F. Coutinho e Teresa Cristina Meireles de Oliveira – Ouro sobre azul - 128 páginas – R$ 75

Ilustres desconhecidas para a geração do e-mail, as cartas eram o meio de comunicação mais utilizado no final do século XIX, entregues rapidamente por mensageiros – que muitas vezes aguardavam pacientemente a resposta. Machado de Assis as empregou muito bem, e em grande quantidade. Este livro, que ainda pega carona nas efemérides do centenário do grande escritor no ano passado, reúne 22 cartas enviadas por Machado a Mário de Alencar, filho de seu grande amigo, o escritor José de Alencar e recebido por Machado, já no final da vida, como “empréstimo de ouro”, para justificar o título.

As 22 cartas, escritas entre 1902 e 1908, ano de sua morte, não trazem lá muita coisa de interessante. São considerações banais, cumprimentos às famílias, encontros e desencontros e recomendações mútuas de saúde (“Se um enfermo pode mostrar a outro o espelho do seu próprio mal conseguirá alguma cousa”). Mas, levando-se em conta que estamos falando de uma pessoa que fez da rigorosa discrição um estilo de vida, não há como negar que a publicação destas missivas se justifica por encontrarmos, aqui e ali, pequenas pistas e detalhes da rotina de Machado na sua então solitária casa do Cosme Velho após a morte da esposa Carolina, em 1904, após quase 35 anos de um casamento feliz.

Assim, descobrimos que para disfarçar a solidão e a melancolia provocadas pela ausência da esposa e pelos problemas de saúde, o maior escritor brasileiro passava algumas noites a jogar paciência no seu sobrado da então silenciosa rua do Cosme Velho, trabalhava em excesso em casa (inclusive aos domingos) e sofria com alguns males, descritos ao amigo de forma detalhada, mas sem esquecer a ironia, sua marca registrada. “Falta de apetite, amargor de boca e recrudescimento do corisa. Um hospital, meu querido!”. Ou então algumas considerações sobre fatos determinantes de sua própria existência, como a ausência de filhos, que poderiam diminuir a solidão. “É o que sucede a quem os possui, para compensar a felicidade de os ter”, sobre um filho de Mário que estava doente.

Organizada pelos professores de Literatura Comparada da UFRJ Eduardo F. Coutinho e Teresa Cristina Meireles de Oliveira, a edição é ricamente ilustrada, com fotos raras do Rio Antigo, reproduções em fac-símile das cartas e uma produção gráfica impecável. Pela publicação das cartas originais, notamos que, à medida que o estado de saúde de Machado piorava, as cartas vão diminuindo consideravelmente de tamanho, abreviaturas surgem aqui e ali e a letra fica bem menos legível. “Vá relevando esta letra execrável, cada vez pior que a de costume”.

Sua preocupação com a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 e presidida por ele até a morte, era constante. Ainda sem sede própria, Machado ficava a par de tudo o que acontecia, dos novos candidatos, das atas, palestras, reivindicações etc. “A Academia pegou, como dizem alguns, e parece que sim.” Todos os nomes citados nas cartas merecem notas explicativas bem detalhadas, assim como ruas e logradouros do Rio, sempre citados por um escritor que amou sua cidade como poucos e adorava passear por ela. As últimas cartas revelam de forma profunda a tristeza de Machado, que já não tinha forças para “ir à cidade”, expressão que até hoje é usada por quem se dirige ao centro do Rio.

Machado viveu e morreu cercado de amigos, inclusive os da Academia. E não deixa de ser curioso notar que o escritor que criou personagens em sua grande maioria dissimulados, interesseiros e muitas vezes cruéis, tenha sido exatamente o oposto disso tudo, sempre solícito e gentil, incapaz de uma grosseria ou de incomodar os outros com seus problemas (como os de saúde, por exemplo, sempre um transtorno em sua vida). Nestas cartas, nas quais o carinho e a gentileza são as tônicas, como em toda a sua vasta correspondência, isto fica mais do que evidente. Apesar da grande tristeza pela morte de Carolina, “a dor que o dilacerou não o fez encerrar-se em si mesmo”, como diz Antonio Candido na apresentação.

Nas cartas, descobrimos também que Machado confiou a Mário a leitura de seu último livro, “Memorial de Aires”, antes da publicação. O livro é um diário do Conselheiro Aires, espécie de alter-ego do autor, e não faltou ao amigo mais novo a perspicaz observação de que Machado empregava todo o seu talento em pintar com cores belas e saudosistas sua Carolina na figura doce e honestíssima de Dona Carmo. Sem ter como recriar na realidade a felicidade da vida doméstica que viveu por quase 35 anos com sua amada mulher, Machado, como artista genial que era, a reviveu na ficção em seu último e comovente suspiro literário.

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