quarta-feira, 5 de maio de 2010

UM RIO DE CORAÇÃO JUDEU



(Publicado no caderno ´Prosa & Verso´, do jornal "O Globo", edição de 11 de agosto de 2007)

Obra conta história de imigrantes na Praça Onze em época de mudanças

Paisagem estrangeira - Memórias de um bairro judeu no Rio de Janeiro, de Fania Fridman. Editora Casa da Palavra, 144 páginas. R$ 29,00

André Luis Mansur

Autora de um dos melhores livros sobre a ocupação do espaço físico no Rio de Janeiro e o desenvolvimento da cidade (“Donos do Rio em nome do Rei”, Jorge Zahar Editor), a pesquisadora Fania Fridman apresenta agora um retrato extremamente minucioso da imigração judia no Rio, concentrada principalmente em um bairro da famosa Praça Onze, no coração da cidade.

O texto didático, porém de grande leveza, começa por uma breve história dos judeus, desde bem antes de Cristo até a perseguição sofrida no leste da Europa na virada do século XIX para o XX, quando grandes massas de judeus imigraram para o Brasil. Depois, Fania Fridman faz um panorama da transformação urbanística sofrida pelo centro do Rio neste período, quando a inauguração da avenida Presidente Vargas deu praticamente o contorno atual da região. Num livro ricamente ilustrado, uma das fotos que mais impressionam é a que mostra a área densamente povoada do trecho onde ficaria a avenida. Tudo demolido e sem nenhuma indenização para os moradores.

O incentivo à imigração em geral foi muito forte após a abolição da escravidão, em 1888, e num dos gráficos do livro vemos que em 1904 o Rio tinha 30% de estrangeiros, a maioria portugueses, mas havia também grande número de espanhóis, italianos, turcos, sírios e libaneses, que se concentravam na “Turquia Pequena”, região situada nos arredores da rua da Alfândega. Até hoje aquela área, conhecida como Saara, é dominada por descendentes desses imigrantes e constitui uma das principais concentrações do comércio varejista da cidade. É importante ressaltar que sírios e libaneses eram invarialmente chamados de turcos porque seus países faziam parte do Império turco-otomano na época da imigração.

O interessante deste livro é que a autora, sem descuidar da parte técnica e mais acadêmica, reserva generosos espaços a detalhes que poderiam passar despercebidos mas que para ela simbolizam aspectos marcantes, não apenas da vida daquela comunidade, mas também da paisagem urbana da cidade. Um desses aspectos narrados por ela é o da venda de porta em porta, “klienteltshik” na língua ídiche, atividade que empregava 30% dos judeus sem ocupação definida e que ainda permanece bem atual (não mais com predomínio deles), principalmente nos subúrbios da cidade.

A prostituição também é outro tema abordado com profundidade por Fania. Afinal quem não ouviu falar nas famosas polacas, prostitutas do leste europeu, na maioria de origem judia? “Com a falsa promessa de casamento, muitas foram trazidas para as Américas e já prostituídas durante a viagem de navio”. Os próprios judeus formaram associações de amparo às jovens pobres para evitar que elas se tornassem vítimas dos aliciadores, mas mesmo assim a prostituição se expandiu numa área que ia da Praça Tiradentes até depois da Marquês de Sapucaí.

As leis se tornaram mais rígidas contra este tipo de prática, como a Lei do Gordo, de 1907, que combatia a figura do agenciador e dono de prostíbulos, e a Lei de 1927, que tornava o explorador de prostitutas passível de expulsão sumária. Caso famoso foi a deportação do polonês B.Goldberg, conhecido como o “rei dos cáftens”.

Mas se até então o bairro judeu pôde se desenvolver de forma relativamente livre, a política, naquele período em que ideologias e “ismos” de diversos tipos ainda eram capazes de provocar guerras mundiais, iria mudar a situação. A presença cada vez maior de comunistas e anarquistas entre os imigrantes mudou o olhar das autoridades, culminando com o Estado Novo de Getúlio Vargas, quando a perseguição da polícia política e a restrição da imigração tornariam a vida no bairro judeu um inferno.

Nunca é demais lembrar que antes da aproximação com os norte-americanos o governo Vargas era extremamente simpático à Alemanha nazista, vide a deportação de Olga Prestes em 1936. “O anti-semitismo recebeu, por parte dos órgãos de repressão, uma faceta política, pois a correlação entre comunismo e judaísmo tornou-se recorrente para eles.”

Com o fim do bairro, atropelado pela avenida Presidente Vargas, começaria a peregrinação dos judeus pela cidade, com grande concentração em bairros da Zona Sul e também em alguns do subúrbio, como em Madureira. Hoje, os judeus, assim como os demais imigrantes, não estão mais confinados a um bairro e sim totalmente integrados a uma cidade que enfim percebeu sua natureza cosmopolita.

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