PRECONCEITO QUE NÃO OUSA DIZER O PRÓPRIO NOME
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de junho de 2006)
Ana Maria Gonçalves constrói obra de fôlego sobre escravidão no Brasil
Nascida em 1970, a mineira Ana Maria Gonçalves consegue, apesar de jovem, a proeza de lançar um romance histórico de quase mil páginas e por uma grande editora. Em "Um defeito de cor" (Record), que tem como tema a escravidão, ela mantém um fôlego de maratonista durante toda a trama, principalmente por dois motivos: a intensa pesquisa histórica que fez e a envolvente aventura de Kehinde, a menina africana que é escravizada e percorre boa parte da vida brasileira do século XIX. Para a autora, a protagonista de seu romance sofreria no Brasil de hoje, onde ainda persiste "um preconceito velado, insidioso, que não ousa dizer o próprio nome".
É inevitável começar a entrevista com a pergunta: o que significa para você, uma autora jovem, que está em seu segundo livro, publicar um romance de quase mil páginas por uma grande editora?
Meu primeiro livro (“Ao lado e à margem do que sentes por mim”) foi uma produção independente e cuidei de tudo, desde a confecção das capas, uma a uma, até a comercialização. Então, só agora estou tendo o gostinho de ser apenas escritora, que é do que realmente gosto, podendo contar com a estrutura da Record, que está sendo fantástica em todas as etapas.
Seu livro tem uma grande quantidade de informações históricas, não apenas sobre a escravidão, como sobre o Brasil do século XIX. Gostaria que falasse sobre este trabalho de pesquisa e quanto tempo durou.
Foram dois anos. Minha idéia inicial era escrever um livro sobre a Revolução Malê, que acabou se concentrando mais no sétimo capítulo, pois encontrei um material riquíssimo que me estimulou a um projeto mais ousado. Tive muito medo de deixar de fora assuntos importantes, fui colocando tudo no livro.
Você apresenta uma visão bem realista da crueldade com que eram tratados os escravos. Até que ponto Gilberto Freyre, que você cita na bibliografia e que chegou a ser criticado por uma visão idealizada da escravidão no livro “Casa-grande & senzala”, a influenciou?
Eu deixei para ler Gilberto Freyre depois de já ter a personagem narradora bastante solidificada, com voz e idéias próprias, para que ela não se deixasse influenciar pelas idéias dele. Tentei ao máximo fugir de teorias e espero que tenha conseguido, pois precisava me ater a informações e análises disponíveis no final do século XIX, que é o tempo narrativo.
No livro, depois que o “sinhô” José Carlos violenta Kehinde, a mulher dele, Ana Felipa, adota a criança, já que ela tinha problemas para engravidar. Era uma situação comum na época?
Era uma situação possível, mas não sei dizer se comum. Um dos meus maiores ganhos ao escrever esse livro foi perceber uma diversidade que até então não imaginava. Com tudo isso, não vejo muito como traçar um perfil do escravo ou do senhor de escravo ou de seus comportamentos em determinadas situações.
Aproveitando a pergunta anterior, gostaria que você falasse da intensa miscigenação, muitas vezes forçada, que acabou se tornando a principal característica dos brasileiros.
Os estudos mais significativos são poucos e recentes, pois me parece que só a partir da década de 1990 o assunto começou a despertar maior interesse. Não se sabe, por exemplo, a dimensão do impacto econômico da comercialização de escravos e mercadorias de troca. Acho que um passo importante talvez fosse dar menos importância à miscigenação, que tem uma conotação racial, e se concentrar nos fatores socioculturais, onde houve grande fusão e assimilação. Talvez assim consigamos parar de tratar a África e seus habitantes, no passado ou na atualidade, como um continente e um povo homogêneos. Homogeneizar, no caso, é reforçar os preconceitos e estereótipos raciais.
Você também fez uma grande pesquisa sobre as expressões africanas, principalmente religiosas. Até que ponto estes cultos e rituais serviram para diminuir o sofrimento e até mesmo unificar os negros escravos?
As diversas religiões trazidas pelos africanos para o Brasil, além de serem uma forma de resistência à conversão forçada ao catolicismo, e de serem uma ligação com o lugar de onde foram tirados contra a vontade, também assumiram em muitos aspectos o papel da família do ex-patriado. Além disso, se exercida com verdadeira fé (porque em alguns casos podia ser forçada ou de conveniência), a religião ajudava a suportar as agruras do cativeiro.
Você mostra de forma bem clara que a escravidão já era praticada entre os próprios negros na África. Muita gente ainda pensa que os portugueses precisavam buscar os escravos, quando na verdade eles eram oferecidos pelos chefes das tribos. Você não acha que esse tema merecia ser mais discutido?
A escravidão é quase tão antiga quanto a Humanidade, mas a memória dos seus efeitos é bastante curta, fazendo com que sua pesada herança recaia hoje apenas sobre os filhos da diáspora africana. Na África, a escravidão já existia desde muito antes do contato com os europeus e as elites coloniais, que inauguraram e fomentaram o tráfico transatlântico. Na maioria das vezes, esses apenas ancoravam seus navios e esperavam pelo embarque da carga.
Lendo sua descrição do navio negreiro, quase dá para sentir o “cheiro de sangue” que sua personagem cita durante toda a viagem. Você acha que esse sofrimento tão forte contribuiu para unir os negros que chegavam ao Brasil, mesmo vindos de nações tão diferentes?
Também não podemos afirmar isso. Muitas vezes a experiência traumatizante da viagem em comum não era suficiente para apaziguar inimizades tribais ou entre reinos, ou mesmo de cunho religioso. Aliás, os lotes de escravos mais valorizados eram os multiétnicos, porque, pelo menos inicialmente, eles não tinham como se comunicar.
Qual a importância dos escravos muçulmanos no processo de resistência dos negros no Brasil? É outro tema que não é muito abordado e que acabou se tornando um elemento muito importante em seu livro.
Os escravos muçulmanos tiveram grande importância, principalmente na Bahia, para onde foram em maior número. Muitos eram da etnia hauçá e grande parte foi morta ou mandada de volta à Àfrica na dura repressão a uma rebelião ocorrida em 1816, em Salvador, na qual tiveram grande participação. Confiando na palavra do Alcorão, que prega a total igualdade entre os homens, não se submetiam à atitude servil exigida pela escravidão. Além dos mais eram disciplinados e, na maioria das vezes, muito mais cultos do que os seus donos. Eram escravos muito valorizados, que serviam de tutores para os filhos de seus senhores ou trabalhavam principalmente nos escritórios comerciais. Isso dava a eles certa liberdade de circulação, facilitando a organização de uma das mais importantes rebeliões escravas no Brasil, a Revolta dos Malês, em Salvador, em 1835. Foi a primeira grande rebelião urbana que teve um planejamento cuidadoso, também duramente reprimida, provocando a morte, a fuga ou a deportação da quase totalidade deles.
Como você vê o racismo hoje no Brasil? Sua personagem Kehinde ainda sofreria muita discriminação?
Vejo como do pior tipo possível, pois é um preconceito velado, insidioso, que não ousa dizer o próprio nome. Combatê-lo é como combater um inimigo invisível, mas quase onipresente. Acredito que a Kehinde também o sofreria, pois pouquíssimos escapam. Mas também acredito que ela reagiria achando que o problema é do preconceituoso, e não dela, pois ela os enfrentaria para vencer, ao preconceito e ao preconceituoso, apesar de ser portadora do "defeito de cor".
UM ROMANCE HISTÓRICO QUE JÁ NASCE CLÁSSICO
Autora encontra forma envolvente e original para falar sobre um tema bastante discutido
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Editora Record, 954 páginas. R$ 79,90
“Um defeito de cor” é desses livros que já nascem clássicos. Não é à toa que Ana Maria Gonçalves conseguiu um feito raro no mercado literário brasileiro. Sendo praticamente desconhecida, pois este é seu segundo livro, obteve o apoio de uma grande editora, que não apenas a publicou como acreditou numa obra de quase mil páginas. Além disso, a autora mineira apostou em um tema já exaustivamente discutido no Brasil, a escravidão, só que de forma original e envolvente.
Ana Maria desenvolve aqui um romance histórico de grande qualidade, não apenas no estilo, dinâmico e envolvente, como na pesquisa, profunda como o tema merece, fazendo sua personagem principal, Kehinde, depois rebatizada Luísa Gama, nascer na África no início do século XIX e ser levada como escrava a um lugar muito distante, tratada como mercadoria no navio negreiro e separada da família de forma traumatizante.
Diferentemente das teses acadêmicas sobre o assunto, que por melhores que sejam não superam a frieza da figura do “observador distante”, Ana Maria consegue levar o leitor a mergulhar no universo da pequena escrava, a sofrer com ela, a viver sua dor e a ter as mesmas esperanças. Outra pesquisa que chama a atenção no livro é a das expressões africanas, principalmente religiosas. Os escravos africanos nunca abandonaram suas crenças, mesmo tendo de aportuguesar muitos dos nomes de suas divindades, e a riqueza de seus rituais é retratada aqui como se estivéssemos vivendo aquela época em que duas culturas completamente diferentes se misturavam, primeiro como uma relação de opressor e oprimido, e depois como uma mistura que acabou se tornando a base da formação do povo brasileiro.
O tráfico de escravos é abordado na visão realista da cumplicidade dos chefes das tribos africanas, que já tinham seus cativos e os vendiam aos portugueses. “Todos os dias chegava mais gente capturada em muitos lugares da África, falando línguas diferentes e dando várias versões sobre o nosso destino”. Chamado de tumbeiro, o navio negreiro tem a sua rotina relatada aqui de forma bastante crua, um lugar onde não dava para ninguém se mexer e que após alguns dias de viagem exalava um odor de fezes, urina, vômito, suor e feridas insuportável. “Alguns adoeceram e tiveram febre, mas o que dava mais aflição eram os gemidos de um fulani que tinha sido empurrado da escada e quebrara a perna, o osso chegando a furar a pele”.
O fio condutor do livro é a revolta dos escravos muçulmanos na Bahia dos anos de 1830, escravos chamados de muçurumins e que eram os mais conscientes de sua condição, acreditando que todo aquele sofrimento era o fermento de uma revolta que iria libertá-los. Conseguiam praticar sua religião e aprendiam a ler e a escrever, ajudando outros escravos a conseguirem suas liberdades, seja através da compra de cartas de alforria ou da fuga para os quilombos, “um lugar onde os pretos viviam livres e felizes, cuidando uns dos outros”.
Protagonista atravessa a
história em busca do filho
Luísa passa por todos os momentos históricos importantes de boa parte do século XIX no Brasil, indo parar em várias cidades, como o Rio de Janeiro, onde faz uma minuciosa descrição dos hábitos, lugares e pessoas. Luísa passa também a maior parte do livro em busca do filho que ela teve após ser violentada por seu dono, o “sinhô” José Carlos, homem poderoso que tirava a virgindade e toda as escravas novas que comprava. Ana Felipa, a invejosa mulher dele, adota a criança após a morte do marido e depois de diversos contratempos Luísa perde o paradeiro da criança, para quem o livro é contado.
A obra deverá interessar tanto a historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas, jornalistas e várias outras categorias, mas o melhor é que por trás de tudo há uma história sendo contada, uma história que vai prender a atenção dos leitores e que tem tudo para ser adaptada em outros meios e traduzida para muitos idiomas. Afinal, é o retrato perfeito de um momento histórico brasileiro de muita crueldade e injustiça e que (infelizmente) ainda carrega suas sequelas nos dias de hoje. “Tudo carecia de esperança, de vida, e a morte cheirava muito mal”.
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