TORTURA, DOR E REDENÇÃO
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em oito de abril de 2006)
Livro reúne contos de autores brasileiros em que a crueldade é o fio condutor
Contos cruéis - As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organização de Rinaldo Fernandes. Geração editorial, 420 páginas. R$ 48,00
Como os apresentadores de telejornais gostam e advertir, este não é um livro indicado para pessoas de coração fraco. Tudo bem que em alguns dos 47 contos reunidos aqui a violência esteja apenas sugerida e insinuada, mas na grande maioria a crueldade aparece sem nenhuma máscara, com todos os seus cheiros, cores e ruídos explícitos.
“Feliz Ano Novo”, por exemplo, é violência pura do início ao fim, desde o diálogo dos bandidos que pretendiam comer farofa e galinha morta de um despacho de macumba até a festa de bacanas onde o ano começa com estupros e assassinatos por motivos fúteis. É Rubem Fonseca no seu estilo tradicional, de diálogos rápidos, texto conciso e muito realismo num ambiente urbano e quase sádico.
A ferida deixada pela
tortura durante a ditadura
Já Nélida Piñon, se não adota um linguajar tão pesado, toca numa ferida que ainda parece longe de ser cicatrizada: a tortura nos porões da ditadura. “A memória reviveu a tortura, a dor florescente, a cabeça estilhaçada em mil estrelas, a calça borrada de merda, a urina solta pelas coxas até alcançar a unha do pé”. No amargo relato a um tal de Zé, toda a amarga trajetória de Antônio é contada, um Antônio traído mas que foi incapaz de trair, e cujo corpo, símbolo não apenas do que sofreu, mas de sua própria identidade, nunca apareceu. “Nascemos iguais, mas cada máscara tem um desígnio cruel”.
Além de nomes consagrados, os autores reunidos neste livro pelo mesmo tema traduzem diferenças de idade e região. A cearense Tércia Montenegro, nascida em 1976, é um nome que tem tudo para ganhar cada vez mais espaço. Já tendo vencido alguns concursos, a jovem autora apresenta em “As casas de André” uma estrutura interessante, na qual a violência aparece de forma incipiente, perto de explodir, misturada a uma espécie de ternura dividida em doses iguais entre vítima e algoz.
Um dos melhores contistas contemporâneos, que andou esquecido por muito tempo mas que foi redescoberto há alguns anos, também está presente em um dos melhores momentos desta coletânea. Mineiro de Ituiutaba e traduzido para vários idiomas, o premiado Luiz Vilela nos oferece “A cabeça”, título de seu mais recente livro de contos, em que associa o aspecto sinistro da cena de uma cabeça de mulher no meio da rua à ironia, uma de suas marcas. Revela o desencanto com a condição humana, capaz de demonstrar indiferença e deboche sobre a inusitada situação.
Lygia Fagundes Telles, que dispensa apresentações, dá mostras do que pretende ao ambientar seu conto de nome singelo (“Venha ver o pôr-do-sol”) num cemitério abandonado, onde “nem os fantasmas sobraram”. É o local em que Ricardo e Raquel, ex-amantes, se encontram. Ele, pobre e ressentido, ela, determinada e disposta a usufruir do conforto que o marido rico lhe proporcionaria. Seu destino, cruel, muito cruel, já está traçado pela imaginação de nossa maior escritora viva.
“Sargento Garcia” foi extraído de “Morangos mofados”, talvez o melhor livro de Caio Fernando Abreu, o escritor gaúcho que este ano é lembrado pelos dez anos de sua morte. A tensão criada entre um sargento durão e um jovem metido a filosofar que pede dispensa do Exército explode numa relação homossexual dentro de um hotel barato. “Cheiro e suor de gente e cavalo, bosta quente, alfafa, cigarro e brilhantina”.
Erotismo presente em muitos
dos tetos da coletânea
O erotismo, aliás, está presente em muitos textos da coletânea, como em “Capitu sou eu”, de Dalton Trevisan, em que um distinto professor se afunda numa atração sexual por seu pior aluno, e em “A moça do sobrado”, de Domingos Pellegrini; “Pela franja verde”, de Bernardo Ajzemberg; e “Santinha Maria Goreti”, de Maria Alzira Brum Lemos.
Este último merece destaque porque toca num assunto que muito preocupa educadores: a influência que grupos de axé (e outros estilos) com suas letras maliciosas e lourinhas de shortinhos minúsculos exercem sobre meninas pobres no limiar de uma sexualidade precoce. Sem pai, mãe faxineira, já bonita de corpo aos 12 anos, Maria Goreti tem seis irmãos e precisa comprar fiado na quitanda de seu Alessandro, que sempre lhe dá chocolates. “Volta amanhã que eu tenho uma coisa boa pra você” é a deixa pra uma situação que se repete todos os dias em tudo que é canto deste país. O fim, no entanto, é uma espécie de redenção feminina.
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