quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

NELSON RODRIGUES GANHA CRIATIVA ´TRAPAÇA BIOGRÁFICA´


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de agosto de 2005)

Livro mescla realidade e ficção para falar do dramaturgo

A fome de Nelson, de Adriana Armony. Editora Record, 112 páginas. R$ 24,90

Só há duas formas de se despertar o interesse por um autor já exaustivamente estudado. Ou se descobre algo novo sobre ele ou se aborda de forma original e criativa o que já se sabe. O livro da professora Adriana Armony se encaixa na segunda opção, pois ela transforma Nelson Rodrigues – cujo aniversário de 25 anos de morte acontece na terça-feira, dia 23 – no personagem de uma “biografia imaginária”, ou melhor, uma “trapaça biográfica”.

O livro, que é fruto de sua tese de doutorado “Nelson Rodrigues, leitor de Dostoiévski”, é narrado por “um homem doente, um homem desagradável”, que sofre do fígado e que conheceu Nelson, seu “personagem secreto”, no Sanatorinho, “uma mistura estranha de hospital e hotel aonde mandavam os tuberculosos para se curarem ou se extinguirem de vez.

A presença de Nelson no Sanatorinho, que ocupa a maior parte do livro, é o exemplo de como realidade e ficção são bem dosados por Adriana, que enumera diversos fatos da vida do autor como se tivessem saído da imaginação do narrador, ou do próprio leitor entre eles o assassinato do irmão Roberto por vingança contra o pai, Mário Rodrigues.

Sensibilidade e capacidade
de observação de Nelson


A autora mergulha na vida de Nelson de uma forma profunda, porém sutil, sem entrar em detalhes polêmicos e desnecessários ao andamento da trama. Ela se concentra na sensibilidade, na capacidade de observação do dramaturgo sobre o comportamento humano ou, mais especificamente, do brasileiro de classe média para baixo. É o que acontece na descrição de Alice, a professora primária que se orgulhava em cumprir com correção os atos mais simples, como “dar um bolo de laranja a uma tia doente, fazer para os alunos um cartaz com letras grandes e coloridas”.

Professoras primárias, funcionários públicos, tias solteironas e os inevitáveis contínuos, talvez a categoria mais retratada na obra de Nelson, estão bem representados neste livro, compondo toda a rica e diversificada gama de personagens do genial escritor. O narrador, como não poderia deixar de ser, é funcionário público aposentado, que economizou bastante na época em que “voltava para casa mastigando um pão francês seco e me trancava no quarto com livros de Dostoiévski, Machado de Assis e Nelson Rodrigues". A autora deixa, por exemplo, ao narrador a espinhosa tarefa de descrever a rotina do Sanatorinho, como a “orquestra de tosses” no fim da tarde e os banhos frios, que "fortalecem o sangue.

O próprio Nelson também dá o seu recado quando, por exemplo, é interpelado pelos demais internos devido ao seu silêncio. “O que você tem contra nós?”, foi o que perguntou Turíbio, “um homenzinho de cabeça chata”. Com o tempo, Nelson adquire a confiança de todos, ou melhor, de quase todos, pois Carlos Alberto e Onofre desprezavam “aqueles pobres-diabos proclamando a sua miséria” na primeira peça de Nelson, encenada no Sanatorinho. Esta peça, “inesquecível para os que a viram e nela se viram, se perdeu no Sanatorinho, queimada, talvez inadvertidamente, junto com o colchão da sua doença”.

O erotismo, um dos traços forte da obra de Nelson Rodrigues, ainda que de forma velada, não recebe muito espaço no livro de Adriana, apenas uma ou outra referência, como a paixão de Nelson por Eros Volúsia, a bailarina por quem ele se apaixonara na juventude, na época em que andava com um terno que só tirava para dormir. “Que mulher ama um homem que fede?”, pergunta ele.

Uma obra cada vez
mais explorada


A falta de dinheiro para o bonde – economizando os “pobres caraminguás que comprariam pastéis para as irmãzinhas pequenas” – para a roupa e também para o pão francês são apenas aspectos de uma fome muito maior, a fome pela literatura, uma fome imensa, básica, instintiva, que se traduziu numa obra cada vez mais explorada, como neste livro. Para os que acreditam que a necessidade é o fermento básico para o artista desenvolver seu instinto criativo, Nelson Rodrigues é um prato cheio (sem trocadilhos).

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