domingo, 17 de janeiro de 2010

AMBIÇÃO E INVEJA NA ASTRONAVE UNITY, EM 2192


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 15 de janeiro de 2005)

Ficção científica bem-humorada apresenta futuro sem esperança

Infinito em pó, de Luís Giffoni. Editora Pulsar, 240 páginas. R$ 25

A maior dificuldade numa obra de ficção científica é atrair o leitor para o emaranhado de nomes complicados que os autores criam para suas tramas. O livro do premiado escritor mineiro Luís Giffoni não foge à regra, tanto que o protagonista atende pelo singelo nome de Shiva Ramanujan. Mas após umas dez páginas, o leitor fica à vontade para viajar junto com ele e outros personagens de nomes esquisitos no ano de 2192 a bordo da astronave Unity, uma “verdadeira Moby Dick do vácuo”.

O destino, pelo menos aparente, é o sistema de Alpha Centauri. Quinze anos após sua partida da terra, a Unity é, como toda astronave, “a solidão humana levada ao paroxismo”, comparada, como já foi muitas vezes feito, às antigas caravelas que também partiam rumo ao desconhecido.

O mundo vive em conflito constante e aqui começam as inevitáveis referências aos livros clássicos “1984”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, e também a filmes como “Blade Runner”, encontradas em diversos trechos do livro, como os que falam das pílulas de felicidade, da síndrome Huxley-Leinster e dos homens e mulheres do paraíso, espécies de andróides destinados apenas ao sexo.

Num mundo em que Washington é a sede do governo de um planeta Terra com 96 países, o autor centra seu enredo nas intrigas políticas, na estrutura de trabalho da nave, que muitas vezes lembra um escritório de aspones, e nas ironias. “Em suma, no espaço falta mais homem do que uísque, daí o fascínio que exerço, afirma Shiva Ramanujan, referindo-se ao seu sucesso com as mulheres no espaço sideral”.

Bom humor, muitas vezes
escrachado, percorre o livro


Os hábitos também são outros nesses tempos, como a degustação de carne humana. Mas o que muitas vezes parece uma visão pessimista do futuro da Humanidade, como ocorre com as obras de referência citadas, é pretexto para o bom humor, muitas vezes escrachado, que percorre o livro.

A conquista do espaço é mostrada aqui apenas como desdobramento de intrigas políticas, inveja, desconfiança e muita ambição. “Se todos se contentassem com a ignorância, talvez ninguém desafiasse o espaço”. O sexo, então, jamais aparece acompanhado do amor, esta palavra que parece mais do que deslocada no futuro. Quando não se utilizam dos seres criados artificialmente, os humanos podem também se valer dos Bancos de Gameta para perpetuarem a espécie ou do Kama Sutra instantâneo.

Em meio a tantas situações inusitadas, mas bastante criativas, a trama prossegue no rastro da Unity e de uma possível conspiração de Lahore, o “bisbilhoteiro profissional” da nave. Naquele pequeno mundo, pessoas nascem, outras envelhecem e morrem, enquanto o sistema de Alpha Centuri permanece como um objetivo distante.

A história toda se passa dentro da nave e não é preciso outro ambiente. Afinal, estamos no futuro e tudo é novidade, como os seres humanos que nascem com cinco braços e cinco olhos após uma mutação. Só não é novidade o que se passa na mente desses mesmos humanos, pois sexo, ambição e inveja não dependem nem de tempo nem de espaço para se manifestarem. “Confinados entre quatro paredes, sitiados pelo meio hostil, pelo futuro incerto, destilamos com língua ferina nossos rancores, complexos, saudades e medos”.

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