quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

JORNALISTAS QUE USAVAM BICO-DE-PENA E NÃO TINHAM MEDO DAS EXCLAMAÇÕES


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 28 de fevereiro de 2004)

Palavra, imagem e poder - O surgimento da imprensa no Brasil do século XIX, de Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros. DP&A ed., 130 pgs. R$ 17

O nascimento da imprensa brasileira, de Isabel Lustosa. Jorge Zahar Editor. 76 pgs. R$ 17

Muitos estudantes de jornalismo podem não acreditar, mas as máquinas de escrever ainda podiam ser vistas em algumas redações brasileiras até o início dos anos 90. E mesmo aqueles veículos já totalmente informatizados parecem de um tempo muito distante quando comparados às modernas técnicas de impressão e editoração de hoje. O que imaginar então de uma época em que a notícia era escrita a bico-de-pena, as fotografias copiadas por desenhistas e o noticiário internacional recebido com um mês de atraso?

Com certeza, o famoso 11 de Setembro teria virado 11 de outubro nos tempos analisados nestes dois livros. No caso de ‘O nascimento da imprensa brasileira’, Isabel Lustosa aborda o período que vai de 1808, quando surgiram o ‘Correio Braziliense’ e a ‘Gazeta do Rio de Janeiro’, os primeiros jornais brasileiros, até os anos posteriores à Independência.

Antes dos jornais, panfletos expressavam opinião pública

Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros também estudaram o período, mas vão mais longe, até o início do século XX, quando os jornais se tornaram empresas e começaram a deixar o romantismo de lado. Neste livro, os autores mostram como a opinião pública, expressão tão comum nos dias de hoje, já se fazia presente, mesmo antes dos jornais brasileiros, através do disse-que-disse pelas ruas, muitas vezes a partir de panfletos afixados em locais públicos. E apesar de a impressão ser proibida no Brasil, circulavam livremente por aqui jornais europeus, como a ‘Gazeta de Lisboa’.

Já no período da Independência, quando começaram a circular diversos jornais brasileiros, quase todos extremamente combativos na divulgação de suas idéias, os autores fizeram uma pesquisa sobre o perfil dos leitores daquela época, com resultados bastante curiosos. ‘Os homens se dividiam entre os que trabalhavam, os que rezavam e os que lutavam, de acordo com uma mentalidade originária da Idade Média’.

O livro é rico em abordagens, como a ligação entre literatura e jornalismo - que aos poucos foi adotando uma linguagem própria -, o surgimento do jornalismo feminino e suas corajosas pioneiras, a importância da ilustração e a utilização das tipografias como locais de encontro, onde os jornais eram vendidos e muitas vezes debatidos em calorosas discussões.

Os anúncios da época também se revelam pitorescos quando vistos com o distanciamento que a História exige. Um deles, publicado no jornal ‘O Retirante’, chama a atenção pela linguagem nada politicamente correta. Ao descrever um escravo fugido que teria cometido diversos crimes e ‘bebe aguardente como quem chupa caju’, o longo texto termina com o seguinte brado: ‘Retirantes! Vós que sois irmãos, pais e parentes das seis donzelas que esse infame deflorou, quebrai a cara desse cabra!’.

Já o livro de Isabel Lustosa apresenta um caráter bem mais didático, como parece ser a proposta da série Descobrindo o Brasil. Isso não impede, entretanto, que apareçam detalhes bem interessantes sobre o surgimento do jornalismo no país, entre eles trechos de um artigo escrito por d. Pedro I, sob pseudônimo e repleto de expressões chulas, a respeito de João Soares Lisboa, um inimigo político comparado pelo imperador jornalista a ‘uma vala, onde se lançam todas as imundícies da imoralidade pública’. A cordialidade não faria parte dos manuais de redação da época se eles existissem. D. Pedro foi, segundo a autora, o primeiro jornalista a cobrir uma eleição, no caso a da Assembléia Constituinte de 1823.

A influência da maçonaria na imprensa do século XIX


A autora mostra como a maçonaria exerceu influência na imprensa da época, possibilitando uma livre expressão das idéias, o que não impedia que de vez em quando alguém fosse surrado nas ruas exatamente por causa dessa liberdade. Luís Augusto May, por exemplo, ao publicar um artigo ofensivo no seu jornal ‘Malagueta Extraordinária’, apanhou de um ‘grupo de embuçados’ a mando provavelmente do próprio imperador.

Um nome extremamente importante nos dois livros é o de Hipólito José da Costa, fundador do ‘Correio Braziliense’ e do jornalismo brasileiro. Nascido na Província Cisplatina, que seria mais tarde o Uruguai, sua vida é repleta de aventuras e reviravoltas. O que se sobressai, no entanto, é a atualidade de suas idéias e opiniões, como Isabel Lustosa mostra, ao afirmar que ele não era um democrata, mas ‘queria que as reformas fossem feitas pelo governo antes que o povo as fizesse’. Nestes tempos em que tanta gente fala em convulsão social, o pensamento de Hipólito poderia muito bem estar na página de opinião do jornal de hoje.

* Ilustração: Hipólito José da Costa

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