segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

GUERRA, ESPADAS E SINAIS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 10 de julho de 2004)

A ferro e fogo - Trilogia (Parte I, vols 1 e 2), de Henryk Sienkiewicz. Tradução de Tomasz Barcinski. Editora Record, 448 páginas (cada volume). R$ 52,90 (cada volume)

Os dois volumes de “A ferro e fogo” formam a primeira parte da épica trilogia de Henryk Sienkiewicz, primeiro dos cinco autores poloneses a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1905, com o já clássico “Quo Vadis”. A trilogia foi lançada entre 1884e 1888 e narra momentos importantes da conturbada História polonesa no tempo em que a sua monarquia constitucional era das mais importantes da Europa e suas terras se estendiam à longínqua Ucrânia. É este o cenário de uma guerra “prenunciada por sinais celestes, pela expressão no rosto dos homens, pelo brilho das espadas, pelos uivos noturnos dos cães e pelo relinchar dos cavalos sentindo o cheiro de sangue”.

E é justamente nas intermináveis “planícies selvagens da estepe”, mais tarde tomadas pelos russos, que se desenvolve o enredo desta primeira parte da trilogia, a rebelião cossaca, ocorrida na segunda metade do século XVII (as outras duas tratam das invasões sueca e turca, alguns anos antes da rebelião). Os camponeses, explorados tanto pelos senhores feudais quanto pela nobreza, se revoltam e é aí que reside a principal crítica sofrida por Sienkiewicz na época do lançamento do livro, já que ele não tenta entender os motivos da rebelião, totalmente justificáveis devido às condições miseráveis de vida dos cossacos, vistos muitas vezes no livro como “uma gente disforme, pronta para saquear e acostumada a lutar”.

Chmielnicki, o líder da revolta, é definido apenas como um traidor cruel da Nação. Assim, as mortes violentas, as torturas por empalamento, os esquartejamentos feitos pelos cossacos são condenados, enquanto as mesmas atitudes tomadas pelos poloneses são vistas com uma parcialidade só explicável devido à situação de esfacelamento que a Polônia passava na época em que o livro foi escrito, com a auto-estima espremida entre os apetites insaciáveis de alemães, austríacos e russos. Os bárbaros cossacos são retratados como se fossem personagens de um filme de terror, com direito inclusive a feiticeiras. "Os algozes disputuavam entre si pedaços dos corpos esquartejados, deliciavam-se lambuzando o rosto e o peito com sangue e enrolando as tripas ainda quentes no pescoço".

Tradução mantém termos
da língua original


A tradução, feita diretamente do polonês por Tomasz Barcinski, mantém muitos termos e expressões da língua original, técnica que, se no início do livro soa um pouco estranha, logo depois facilita o mergulho do leitor numa cultura tão diferente da nossa. O final traz um glossário detalhado e o próprio tradutor explica, no prefácio, como foi feito o seu trabalho, além de situar o contexto histórico do romance. A lamentar na caprichada edição os muitos erros de revisão verificados no segundo livro, embora o volume traga um interessante posfácio escrito por Barcinski, mostrando o que aconteceu na vida real com alguns dos principais personagens.

Mas o romance possui tantas qualidades que merece ser classificado como uma obra-prima sem nenhum exagero. É impossível, por exemplo, não se envolver nas peripécias do tenente Skrzetuski, o mais valente guerreiro da Polônia, que vai em busca de sua amada Helena por todo o livro enquanto enfrenta batalhas e o ódio do rival Bohun, um guerreiro tão temido quando ele e também apaixonado por Helena. A maioria segue esta linha de “os brutos também amam”, capazes de matar com extrema brutalidade e de chorar como uma criança diante do drama de algum amigo. São muitos os personagens interessantes, sendo que o autor concentrou em Zagloba todo o lado cômico do livro. Ele reúne em doses iguais coragem e covardia, vigarice e dignidade, verdade e mentira, sendo por isso uma das melhores criações do livro.

Praticamente não há um capítulo monótono na narrativa repleta de situações de clímax e ótimos diálogos. A iminência de batalhas é descrita em um tom dramático, acentuado pela minuciosa descrição da natureza das estepes. “Certos rumores, como os que prenunciavam a chegada de uma tempestade, começaram a esvoaçar sobre toda a Ucrânia e ambas as margens do Dnieper”. O risco de ser atacado a qualquer momento mantém o tom de apreensão, principalmente nas fugas, e Sienkiewicz sabe dosar bem esta característica do texto, terminando os capítulos sempre com um “gancho” que só será retomado mais adiante. Não há quem não chegue final do primeiro livro, por exemplo, e não fique ansioso para saber como a trama prossegue.

O bom do romance histórico, esta categoria literária consagrada por Walter Scott, é que desperta o interesse para o fato narrado (muita gente, com certeza, vai se interessar pela História da Polônia), mas também dá ao autor a liberdade de criar personagens muitas vezes mais fascinantes do que os da vida real. E apesar dos exageros, como no episódio em que 15 mil poloneses enfrentam 500 mil cossacos e tártaros, Sienkiewicz conseguiu incutir o enredo da trilogia nos corações e mentes poloneses de tal forma que durante a ocupação nazista na Polônia, ou seja, 60 anos após a sua primeira edição, os corajosos combatentes da guerrilha usavam os nomes dos personagens da trilogia.

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