DICKENS: PERCEPÇÃO AGUDA E IRONIA
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 1º de maio de 2004)
Escritor inglês começou a afiar a sua pena escrevendo crônicas em jornal
Retratos londrinos, de Charles Dickens. Tradução de Marcello Rollemberg. Editora Record, 306 páginas. R$ 35,90
Da mesma forma que muitos grandes escritores, incluindo aí o nosso Machado de Assis, Charles Dickens também iniciou sua carreira pelas páginas dos jornais. Nas 32 crônicas reunidas nestes "Retratos londrinos", publicadas em 1836 e pela primeira vez traduzidas no Brasil, o autor inglês já ensaiava o que viria pela frente. Tanto que um ano depois, ele publicaria, também nos jornais, sua primeira obra-prima, “As aventuras do Sr. Pickwick”.
Machado de Assis também pode ser citado por outras curiosas coincidências em relação a Dickens: os dois escritores nasceram paupérrimos, foram autodidatas, trabalharam como repórteres nos respectivos parlamentos e em suas crônicas mostraram boas doses de ironia, humor e uma grande capacidade de observação. Mas a grande diferença em relação ao autor brasileiro é que Dickens, mesmo em figuras rudes e grosseiras, encontrava algo de bom. Seu otimismo é fundamentado por um grande amor pela natureza humana, que aprofundaria nas obras mais conhecidas, como Oliver Twist e David Copperfield. Suas descrições fisionômicas nada têm de cansativo e se relacionam com alguma intenção ou sentimento, como no caso do líder do partido oficial (“A eleição do bedel”), um homem de “nariz interrogativo e olhos pequenos, incansáveis e vivazes, que parecem estar ali com o único propósito de ajudá-lo a se meter nos negócios alheios”.
Há um estilo ainda indefinido, é verdade, que se verifica principalmente quando o autor, só com 24 anos, descreve cenas de ação ou assume um tom meio panfletário ao fazer críticas sociais. Mas ele mesmo reconhece isso quando diz, no prefácio da edição de 1850, que, apesar da precipitação e da inexperiência em alguns momentos, manteve o texto quase todo integral, já que o livro foi um sucesso quando lançado. As crônicas foram publicadas em jornais como o “Evening Chronicle” e o “Morning Chronicle” e os assuntos são variados, mas o que sobressai é o contraste entre as condições de vida das classes trabalhadoras do início da industrialização e o fortalecimento da burguesia.
A primeira parte, “Cinco retratos da nossa paróquia”, traz bons momentos, como na crônica “As quatro irmãs”, mas é nas outras duas séries, “Cenas” e “Personagens”, que Dickens revela o seu lado de profundo observador dos aspectos prosaicos do cotidiano. Vendedores de peixes, limpadores de chaminés, jantares beneficentes, a novidade trazida pelos ônibus, nada escapa ao seu olhar, nem mesmo o sofá-cama, que “não possui a respeitabilidade de um sofá nem as virtudes de uma cama”.
O universo retratado aqui tanto pode ser a paróquia, este “mundinho à parte” com suas disputas religiosas, as tavernas, o parlamento, jardins como o Scotland Yard (antes que a polícia instalasse sua sede lá), as regatas do Tâmisa e as ruas de Londres numa “escura, sombria e triste noite de inverno”, seu momento mais glorioso, segundo o autor.
O tradutor Marcello Rollemberg, que baseou seu trabalho na edição de 1839, também é responsável pela boa introdução e pelas notas de pé de página, indispensáveis, já que muitos nomes e lugares da Inglaterra pré-vitoriana já não existem, como a velha ponte de Londres e a Monmouth Street, uma das mais populares ruas de lojas de roupas de segunda mão da época. Nesta notas, há curiosos detalhes, como a origem da palavra bus e o incrível imposto que havia na Inglaterra sobre o número de janelas de cada residência.
O mais interessante ao ler cronistas de outros países é perceber como nas pequenas situações do cotidiano todo mundo se parece. Os homens de meia-idade, “cujos salários não aumentaram na mesma proporção de suas famílias”, o passageiro irritado do ônibus cheio e o parente inconveniente que pergunta quando você vai casar podem até falar outros idiomas, torcer para times diferentes ou acreditar no que quiserem, mas nada mais são do que instituições universais. Talvez por isto, e também pelo imenso talento de Dickens, é que livros assim não envelhecem e seus personagens (com nomes e roupas diferentes) podem estar ao nosso lado agora.
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