terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NO BONDE, NOTÍCIAS DA GUERRA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de julho de 2004)

Jornais brasileiros ficaram imparciais diante da carnificina do conflito de 14-18

A Primeira Guerra Mundial e a imprensa brasileira, de Sidney Garambone. Ed. Mauad, 112 pgs. R$ 26,50

Encontrar aspectos originais em assuntos já exaustivamente discutidos é sempre um privilégio. E Sidney Garambone consegue isto, ao pesquisar o noticiário da imprensa brasileira durante a primeira guerra mundial e descobrir detalhes tão interessantes que é incrível terem ficado ausentes dos livros de História. O texto se originou da dissertação de mestrado defendida pelo autor na PUC-Rio e logo na apresentação a jornalista Ana Paula Padrão justifica um dos motivos pelos quais aquele conflito, tão distante nestes tempos de guerras vistas da poltrona de casa, ainda desperta tanto fascínio: “Ver a História acontecer é um privilégio. Mas entendê-la, talvez seja tarefa que só o tempo pode cumprir com rigor”.

Brasil declarou guerra à
Alemanha em outubro de 1917


Garambone compara as duas guerras mundiais — a segunda, uma conseqüência quase natural da primeira — ressaltando as diferenças de cobertura jornalística dos dois conflitos. Sobre a segunda, ele lembra que há vasto material de pesquisa, inclusive da participação brasileira através da Feb, mas sobre a primeira, chamada de A Grande Guerra, o autor afirma que há muita gente que até hoje sequer sabe que o Brasil declarou guerra à Alemanha em outubro de 1917 e enviou navios repletos de soldados à Europa. Soldados estes que não chegaram a lutar por causa do término dos combates, em novembro de 1918. Mas muitos morreram de gripe espanhola, “o mal do século” na época.

O autor analisa dois jornais do Rio, então capital da República e com uma população de cerca de 1,5 milhão de habitantes: o sisudo “Jornal do Commercio” e o popular e oposicionista “Correio da Manhã”, veículos de comunicação de uma época em que não havia vídeo, TV e Internet. “Quem não sabia ler pedia explicações ao vizinho do bonde”, escreveu Garambone. Os jornais começavam a se transformar em grandes empresas e os jornalistas se tornavam mais críticos, independentes e profissionais, uma postura bem diferente do jornalismo boêmio e romântico do século anterior. A mudança foi descrita com ironia e profundidade por Lima Barreto em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”.

Faltava, porém, aos jornais da época, uma análise mais profunda do noticiário internacional e suas diversas implicações, como acontece hoje, quando qualquer jornalista bem informado sabe que um atentado na Palestina pode resultar num conflito de grandes proporções. Em 30 de junho de 1914, por exemplo, dois dias depois do assassinato de Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, fato que desencadearia a guerra, a notícia saiu sem destaque, ao lado de notas como esta: “Foi vítima de um acidente de automóvel o padeiro Bernardino da Silva”.

O livro também destaca o desenvolvimento da diplomacia brasileira, ainda se recuperando da morte do Barão do Rio Branco, o chanceler imortal, em 1912. Após a crise da Guiana com os ingleses, no início do século, o Brasil deixava seu antigo parceiro de lado e iniciava um alinhamento duradouro com os EUA. Apesar disso, Garambone destaca que o Brasil só declarou guerra à Alemanha seis meses depois da entrada dos americanos no conflito, e mesmo assim porque os submarinos germânicos afundaram navios mercantes brasileiros. O autor enfatiza que, “dos países sul-americanos, o Brasil foi o único a mobilizar tropas para o conflito, flertando já aí com o papel de liderança no continente".

Outra prova de que com a pesquisa em jornais é possível pôr em dúvida afirmações históricas é a notícia sobre Santos-Dumont no “Jornal do Commercio”. O pai da aviação, que segundo consta na História, teria cometido suicídio por não concordar com a utilização bélica do avião, diz o autor, visitou o presidente da República, Venceslau Brás, em novembro de 1917, com propósitos nada pacifistas, oferecendo “seus préstimos técnicos para o caso de a nação precisar de conhecimentos aeronáuticos de um especialista”. Verdade seja dita também, e este fato não está no livro, é que Santos-Dumont sofria de uma dolorosa esclerose múltipla quando morreu e seu suicídio teria sido motivado pela utilização de aviões por brasileiros contra brasileiros na São Paulo que ele tanto amava, durante a Revolução Constitucionalista de 1932.

Só em 1917 o país começou a
ver os alemães como inimigos


O livro mostra que os jornais brasileiros, assim como o governo, se mantiveram imparciais na maior parte da guerra e só começaram a ver os alemães como inimigos a partir de 1917. “A Alemanha acaba definitiva e finalmente de deixar cair a máscara”, dizia o “Correio da Manhã”. Bem diferente do que ocorreu na segunda guerra, quando alemães e italianos foram perseguidos por todo o país e muitos tiveram que mudar os nomes de seus estabelecimentos, como ocorreu com o Bar Luiz (antigo Bar Adolf), no Rio, e o clube de futebol Palmeiras (antigo Palestra Itália), em São Paulo.

Apesar de se originar de uma dissertação de mestrado, Garambone conseguiu dar uma leveza ao texto que desperta a curiosidade para mais informações sobre o tema. Ler o livro dá a impressão de que hoje, apesar do neurótico bombardeio de informações que recebemos de todas as frentes, ou até por isso, seríamos bem mais informados se tivéssemos apenas que ler o jornal do vizinho do bonde e debatermos as notícias nos cafés da Rua do Ouvidor. Na época, ainda sem batalhas entre camelôs e guardas municipais.

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