BAILADO TRISTE E POÉTICO
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 12 de fevereiro de 2005)
Skármeta constrói sensível romance a partir de três deserdados da sorte
O baile da vitória, de Antonio Skármeta. Tradução de Luís Reyes Gil. Editora Planeta, 344 páginas. R$ 44,90
"No mundo da malandragem só funcionam a violência ou a paciência. A primeira vai deixar você rico ou trazê-lo de volta para a prisão, a segunda vai manter você pobre, mas livre". Esta é a filosofia, a regra de conduta do submundo de Santiago do Chile, pelo menos na visão dos personagens de Antonio Skármeta, um escritor que tem como principal característica oferecer doses generosas de sensibilidade e emoção a figuras humildes, aparentemente inexpressivas, mas que se revelam carregadas de conteúdo dramático.
Personagem feminina
é forte e densa
Da mesma forma que em outros livros seus, como "As bodas do poeta" e o mais famoso deles, "O carteiro e o poeta", aqui o autor chileno também apresenta uma personagem feminina forte, densa, sensível o suficiente para estudar balé e auto-destrutiva o bastante para fazer programas de sexo oral em cinemas de baixíssimo nível. Inteligentíssima, mas expulsa da escola por rebeldia, Victoria Ponce é uma figura muito bem construída em todo o seu enigma e que concentra a trama do livro com os outros dois personagens principais, recém-saídos da cadeia após uma anistia presidencial: Ángel Santiago e Vergara Grey.
O primeiro, um jovem de boa aparência, impulsivo e revoltado por ter sido sodomizado na cadeia. O segundo, um criminoso experiente, debilitado fisicamente e que ganha um sopro de vida do jovem Santiago para juntos praticarem um tal de grande golpe. Este triângulo amoroso meio louco, meio improvável, é construído por Antonio Skármeta com tanto equilíbrio, tanto estilo e poesia que é impossível não se envolver e torcer por seus destinos.
São três deserdados da sorte, que caíram na marginalidade por culpa de uma sociedade brutal e opressora. Ángel Santiago, com “a beleza brutal de seus vinte anos”, sai da cadeia com dois projetos. Um deles, o inspetor que o atirou pelado numa “cela cheia de animais”, jura que é matá-lo. Esta dúvida atravessa todo o romance e vai aumentando a tensão da trama quando o inspetor liberta por um mês um prisioneiro cheio de escrúpulos para assassinar Santiago, considerado por ele “um pobre coitado sem antecedentes, cujo único delito ainda não aconteceu”.
Vergara Grey, cujos delitos foram considerados verdadeiras obras de arte, saiu da cadeia escoltado pelos presos e ganhou um discurso do inspetor, que o declarou “longe dessa índole de malfeitores ressentidos e inescrupulosos que enchem nossas prisões e que abundam pelas ruas”. Ele sai da prisão em busca da grana que o antigo comparsa lhe deve por ter ficado de boca fechada na prisão. Mas a coisa não sai como ele previa.
Victoria Ponce completa este trio de perdidos com uma vida onde se misturam poesia e tragédia, sensibilidade e pornografia, vontade de viver e atração pela morte. O amor pela dança e o desprezo pelas regras rígidas da escola a atraem imediatamente para Ángel e, por conseqüência, para Vergara Grey, que apesar de sua frieza e desencanto pela vida, se sensibiliza pelo drama da moça.
Resquícios da ditadura
do general Pinochet
Skármeta constrói o ambiente perfeito para contar a sua história. A Santiago que surge no romance é cinzenta, fria e chuvosa, opressiva como a vida dos três protagonistas. Ao mesmo tempo, surgem aqui e ali seqüelas da brutal ditadura do general Pinochet nas torturas, violações de todo tipo e histórias de presos políticos. Mas o autor, apesar de ser considerado um dos mais importantes da literatura latino-americana, não foge da visão estereotipada que se tem das mulheres brasileiras, ao descrever Victoria Ponce como dona de “maravilhosas nádegas disciplinadas com os exercícios de balé que evocavam sem esforço uma nativa do Brasil”.
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