sábado, 23 de janeiro de 2010

NOTURNOS E OUTROS CONTOS FANTÁSTICOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 30 de abril de 2005)

Gianni Ratto revela que tem fôlego criativo em seu segundo livro de contos

Noturnos e outros contos fantásticos, de Gianni Ratto. Editora Códex, 108 pgs. R$ 22

O título pode até sugerir, mas os “contos fantásticos” deste livro nada têm de sobrenatural ou de ficção científica e se justificam mais pelo noturno, a forma musical imortalizada pelo gênio de Chopin e que sugere uma mistura de lirismo, melancolia, beleza e poesia. Não é à toa que a noite, a madrinha de todos os poetas, surge com freqüência nos 13 contos do livro, servindo como referência das narrativas nada convencionais, nas quais as imagens líricas e as descrições bem detalhadas muitas vezes atraem mais do que a própria trama. “E a noite descobriu tudo como antes, com seu silêncio e suas propostas indecorosas”.

O uso intenso de cores e imagens se justifica, já que Gianni Ratto, italiano radicado no Brasil desde 1954, é cenógrafo, além de diretor, ator e iluminador — imagens como as das “mãos de Escher”, o conto que abre o livro e no qual duas mãos representam “uma rotina diária cujo sabor já não estimula apetites nem memórias”. Ou em “Noturno n 5”, quando o autor enfatiza a relação com o abstrato, que o “leva por sendas mal iluminadas, por atalhos soturnos na direção de novas plagas”. Apesar das muitas abstrações diluídas no livro, o autor, por trabalhar no teatro há tantos anos, sabe que uma história não resiste muito tempo sem os argumentos e personagens “velhos de guerra”.

Personagens como o do conto “A ilha”, que mantêm uma relação incestuosa sem pormenores explícitos, baseada apenas nas sutilezas de um leve esbarrão, de uma troca sem graça de olhares ou de sombras mal definidas. Ou dos namorados cegos de “Uma história de amor”, conto que fecha o livro e que apesar do final meio exagerado mantém o tom das outras histórias, principalmente no cenário noturno. “A noite era a única amiga: a bengala branca o conduzia a um parque onde passava horas sentado num banco, dialogando com o silêncio”.

“Presépio ou Conto de Natal” é uma inusitada versão do nascimento de Jesus, que apesar de bem escrito soa um pouco fora do contexto do livro, parecendo mais uma provocação gratuita. “Um por um, os homens possuem Maria que levantou a saia (...)”, “José continua rindo estupidamente, enquanto uma baba amarronzada coa de sua boca e molha suas vestes ensopadas de mijo”.

Os relacionamentos amorosos são apresentados pelo autor em doses agradáveis de ternura e melancolia, como em “Dezoitomilduzentasecinqüentanoites”, quando uma mulher faz da lembrança do marido, morto misteriosamente, a única companhia no meio da noite. “O passado tinha-se diluído com o tempo, como a poeira na tampa de um piano hoje silencioso. Mas permanecia uma presença cruel, inequívoca e bela”. Neste conto, a história de amor que se transformou em cinzas, como está no texto, é contada com profunda sensibilidade, um retrato triste, porém belo e que permanece vivo na memória “desta última noite amada pela beleza do que foi e do que seria, eterna”.

Outra característica de seus contos, e aí entra novamente a influência da cenografia, é que Gianni Ratto descreve com profundo detalhismo e muitas cores o ambiente de suas histórias, sem no entanto exagerar. Embora haja sempre o risco de se tornar cansativo, o recurso se integra bem aos dramas dos personagens, ganha uma identificação em que folhas secas, capelas de pedra calcária, colchas de brocado e jardins de flores artificiais jamais roubam a cena e funcionam como figurantes de luxo.

"Noturnos" é o segundo livro de contos de Gianni Ratto (o primeiro foi "Crônicas improváveis", de 2002, também pela Códex) e comprova que o autor domina um estilo difícil, de personagens que falam pouco e que não se envolvem em muita ação. Há diversos trechos que lembram a linguagem poética, de tão líricos, mas que ainda permanecem presos ao conto, mesmo que por correntes meio frouxas. Para permanecer nesse equilíbrio de estilos, é preciso muito fôlego criativo e o autor, pelo menos nos 13 noturnos deste livro, mostra que tem.

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