quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

VIAGEM MELANCÓLICA PELA MEMÓRIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de março de 2005)

Engenheiro nascido em Moscou retorna ao país onde se sente um estrangeiro

Transeuropa
, de Rafael Argullol. Tradução de Márcia Cavalcanti. Editora Rocco, 172 pgs. R$ 26

De Barcelona a Moscou, uma viagem não apenas por toda a Europa, mas também pela memória de um homem que volta à infância bem distante, tão distante quanto o desconhecido, “o princípio para qualquer aventura interior”. Escrito numa linguagem cheia de licenças poéticas e lúcidas observações, este livro mostra como a Europa pós-queda do Muro de Berlim ainda é um continente dividido, apesar da moeda única e da abertura das fronteiras.

Victor, engenheiro nascido em Moscou, mas que bem cedo foi levado para Barcelona, onde vive e trabalha até hoje, recebe a missão de voltar ao seu país natal para comandar a construção de uma ponte sobre o rio Volga, que “a tudo nutria com seu sangue: a cidade arruinada, as imensas pradarias, os bosques que o escoltavam como intermináveis cortejos”. A viagem já começa complicada, por causa de uma greve de controladores de vôo na Polônia, e prossegue de trem, direto “a uma ignorada franja do mapa onde a Europa ia se esfumando na Ásia”.

Relação fria e distante
com a família


Em direção à infância e à cidade perdidas, e a uma família que mal o reconhecia, o personagem descreve tudo o que encontra, numa linguagem cheia de detalhes criativos e dramáticos. Assim, a Moscou que se lhe apresenta aos olhos é “uma cidade que a tudo invade, olhos e consciências, até chegar a invadir a si mesma, numa cerimônia de canibalismo urbano totalmente única”. Na família, para a qual ele era um parente “que só existia por meio de palavras extraviadas no tempo”, a relação é fria e distante, com exceção da prima Vera, exímia violinista e que se revela como sua única fonte de afeto por todo o livro.

Embora a princípio possa parecer mais um livro mostrando o choque de culturas entre o leste e o oeste da Europa, o romance deste escritor espanhol, mais conhecido por seus ensaios sobre arte e filosofia, é bem mais do que isso. Afinal, a missão do engenheiro pode se traduzir num reencontro do personagem consigo mesmo, uma espécie de catarse emocional impossível de se viver se ele continuasse em Barcelona, onde tudo funciona direito e a rotina sem sobressaltos o mantém afastado deste caminho muitas vezes complicado chamado memória.

Sentindo-se um estrangeiro em seu próprio país, Victor se vê às vezes em um ambiente nitidamente kafkaniano, com funcionários de ternos cinzas e muita burocracia. O ambiente em volta também é cinzento, frio, assim como as pessoas que o cercam. O cenário é perfeito para reflexões angustiosas nesta “noite de terras desconhecidas”. Restam então os inevitáveis prazeres da noite, prostitutas, bebidas e inferninhos.
A beleza das descrições e da linguagem usada pelo autor, no entanto, suaviza a frieza e a melancolia da história, cujo fato menos importante é justamente a tal construção da ponte, mero pretexto para o regresso do personagem. Como ele próprio diz, a ponte sobre o Volga não iria apenas unir duas margens que a natureza mantinha separadas, mas também, e principalmente, juntar duas margens tão distantes de sua vida.

Volga, um confidente
do personagem


A relutância em aceitar o projeto ganha um outro contexto quando Victor tem contato com o Volga, o mítico rio cercado de imensas pradarias, atravessado por tantos exércitos no passado, e que se tornou um confidente do personagem, que conversava com ele principalmente nos longos silêncios do amanhecer. Preferia, assim, essa insólita conversa com a natureza a dialogar com a família, numa casa repleta de intimidade forçada e ícones religiosos opressores.

O passeio por Moscou se revela perturbador, principalmente pela repetição de portas, janelas e edifícios e da ausência de um centro preciso. A falta de referências só encontra alguma espécie de refúgio seguro, mais uma vez, na companhia da prima Vera, que se movimentava "com insólita graça entre as ruínas da memória".

Se o personagem vai sair bem desta viagem, tanto do ponto de vista interno quanto externo, só mesmo lendo o livro para saber. Mas o que se pode adiantar é que o romance é daqueles que não precisam de tramas complicadas e cheias de personagens para se impor, e sim de uma riqueza descritiva e de uma reflexão franca, e muitas vezes melancólica, sobre a vida e as pessoas que nos fizeram felizes de algum modo no passado. Neste ponto, Rafael Argullol foi muito feliz.

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