VIAGEM MELANCÓLICA PELA MEMÓRIA
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de março de 2005)
Engenheiro nascido em Moscou retorna ao país onde se sente um estrangeiro
Transeuropa, de Rafael Argullol. Tradução de Márcia Cavalcanti. Editora Rocco, 172 pgs. R$ 26
De Barcelona a Moscou, uma viagem não apenas por toda a Europa, mas também pela memória de um homem que volta à infância bem distante, tão distante quanto o desconhecido, “o princípio para qualquer aventura interior”. Escrito numa linguagem cheia de licenças poéticas e lúcidas observações, este livro mostra como a Europa pós-queda do Muro de Berlim ainda é um continente dividido, apesar da moeda única e da abertura das fronteiras.
Victor, engenheiro nascido em Moscou, mas que bem cedo foi levado para Barcelona, onde vive e trabalha até hoje, recebe a missão de voltar ao seu país natal para comandar a construção de uma ponte sobre o rio Volga, que “a tudo nutria com seu sangue: a cidade arruinada, as imensas pradarias, os bosques que o escoltavam como intermináveis cortejos”. A viagem já começa complicada, por causa de uma greve de controladores de vôo na Polônia, e prossegue de trem, direto “a uma ignorada franja do mapa onde a Europa ia se esfumando na Ásia”.
Relação fria e distante
com a família
Em direção à infância e à cidade perdidas, e a uma família que mal o reconhecia, o personagem descreve tudo o que encontra, numa linguagem cheia de detalhes criativos e dramáticos. Assim, a Moscou que se lhe apresenta aos olhos é “uma cidade que a tudo invade, olhos e consciências, até chegar a invadir a si mesma, numa cerimônia de canibalismo urbano totalmente única”. Na família, para a qual ele era um parente “que só existia por meio de palavras extraviadas no tempo”, a relação é fria e distante, com exceção da prima Vera, exímia violinista e que se revela como sua única fonte de afeto por todo o livro.
Embora a princípio possa parecer mais um livro mostrando o choque de culturas entre o leste e o oeste da Europa, o romance deste escritor espanhol, mais conhecido por seus ensaios sobre arte e filosofia, é bem mais do que isso. Afinal, a missão do engenheiro pode se traduzir num reencontro do personagem consigo mesmo, uma espécie de catarse emocional impossível de se viver se ele continuasse em Barcelona, onde tudo funciona direito e a rotina sem sobressaltos o mantém afastado deste caminho muitas vezes complicado chamado memória.
Sentindo-se um estrangeiro em seu próprio país, Victor se vê às vezes em um ambiente nitidamente kafkaniano, com funcionários de ternos cinzas e muita burocracia. O ambiente em volta também é cinzento, frio, assim como as pessoas que o cercam. O cenário é perfeito para reflexões angustiosas nesta “noite de terras desconhecidas”. Restam então os inevitáveis prazeres da noite, prostitutas, bebidas e inferninhos.
A beleza das descrições e da linguagem usada pelo autor, no entanto, suaviza a frieza e a melancolia da história, cujo fato menos importante é justamente a tal construção da ponte, mero pretexto para o regresso do personagem. Como ele próprio diz, a ponte sobre o Volga não iria apenas unir duas margens que a natureza mantinha separadas, mas também, e principalmente, juntar duas margens tão distantes de sua vida.
Volga, um confidente
do personagem
A relutância em aceitar o projeto ganha um outro contexto quando Victor tem contato com o Volga, o mítico rio cercado de imensas pradarias, atravessado por tantos exércitos no passado, e que se tornou um confidente do personagem, que conversava com ele principalmente nos longos silêncios do amanhecer. Preferia, assim, essa insólita conversa com a natureza a dialogar com a família, numa casa repleta de intimidade forçada e ícones religiosos opressores.
O passeio por Moscou se revela perturbador, principalmente pela repetição de portas, janelas e edifícios e da ausência de um centro preciso. A falta de referências só encontra alguma espécie de refúgio seguro, mais uma vez, na companhia da prima Vera, que se movimentava "com insólita graça entre as ruínas da memória".
Se o personagem vai sair bem desta viagem, tanto do ponto de vista interno quanto externo, só mesmo lendo o livro para saber. Mas o que se pode adiantar é que o romance é daqueles que não precisam de tramas complicadas e cheias de personagens para se impor, e sim de uma riqueza descritiva e de uma reflexão franca, e muitas vezes melancólica, sobre a vida e as pessoas que nos fizeram felizes de algum modo no passado. Neste ponto, Rafael Argullol foi muito feliz.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial