segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A BUSCA PELA HISTÓRIA DA INFÂNCIA PERDIDA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de dezembro de 2005)

Contos de Saturnino Braga realizam viagem repleta de saudosismo pelo passado do país

Contos de réis, de Roberto Saturnino Braga. Editora Record. 272 páginas. R$ 32,90

Cada período histórico tem a frase que merece. “Abra essa merda” foi a da proclamação da República, ou como se chamou a quartelada comanda pelo marechal Deodoro, seguido por tenentes e cadetes que tentavam atravessar o portão do quartel-general do Campo de Santana. O tenente, “que tinha ordens superiores de não abrir o portão” do quartel, acabou deixando passar a trupe que iria depor o imperador D. Pedro II e instalar a República que já nasceu velha.

O caso está relatado em “O tenente”, uma das histórias narradas pelo senador Roberto Saturnino Braga em “Contos de réis” numa prosa leve e agradável que mais parece saída de uma roda de amigos do interior, na qual o que menos importa é a verdade e sim aquilo que desperta a imaginação.

Pois se a frase dita no dia 15 de novembro de 1889 por um Deodoro aprumado na sela e de queixo esticado é verídica ou não, o que importa? Importa é que seu simbolismo perdure até hoje, jogada de vez em quando no ventilador quando os políticos brigam entre si na hora de repartir o butim do dinheiro público.

Da mesma forma, o político ingênuo do conto “O deputado”, que anseia por uma vaga na ambicionada Comissão de Orçamento do governo JK, ilustra bem o estrago que pode causar uma conversa entre políticos e jornalistas após algumas doses de uísque. “(...) mas sabia que palavras como irresponsável, leviano, inconfiável tinham sido ditas pelos chefes. Talvez bobo, ingênuo, deslumbrado. Deprimente”.

Boa parte da narrativa de Saturnino se passa no fim do século XIX, época em que a fé cega na ciência se manifestava de forma delirante, principalmente entre os adeptos do positivismo de Augusto Comte. É como pensa o doutor Lauro de “O médico”, que começa a prestar assistência às prostitutas da Lapa e leva tão a sério o rigor do método científico que desenvolve uma curiosa teoria sobre o saudável aspecto das polacas em relação às outras prostitutas. A ironia se concentra no comportamento sarcástico do colega Nelson ao ler seu relatório. “Essa, aliás, era uma das razões da sua hesitação, o medo do abagunçamento brasileiro das coisas sérias”.

Não há como negar o tom saudosista dos textos, não apenas por referências como a da babá de “A mãe”, que lê “O Cruzeiro” e a “Revista da Semana”, ouve o programa de calouros do Ari Barroso e leva os filhos da patroa para um passeio na praça em Copacabana, cujo único e raríssimo risco é ser atropelado por um bonde. O autor deixa bem claro que o passado não deixa de ser um confortável e seguro refúgio quando o presente se torna insuportável.

É o que sente o personagem de “O poeta”, mutilado por um acidente, que despeja sua irritação contra os hábitos modernos. “Hoje o traço é o imediato, eu quero agora, preciso agora mesmo, o narcisismo e o arrivismo, o estrelado, sobretudo na televisão (...)”. O poeta sente falta do tempo em que os meninos jogavam futebol de botão e colecionavam selos, instigavam a imaginação a brincar de realidade com toques de lirismo e fantasia.

No fundo é a própria busca da infância perdida, como está bem claro no último conto, “No que creio; no que não creio”, do adulto que lembra os passeios no canavial quando criança em Campos. “Muita coisa se aprende também pelo sentimento, a intuição que baixa sobre cada um”. Nem sempre a literatura exige a reflexão, às vezes ela só diverte, noutras nem isso, mas se ela tiver a capacidade de emocionar, já se justifica.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial