A VÃ ILUSÃO DE PODER MUDAR O MUNDO
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 25 de março de 2006)
Personagem de Salim Miguel representa os anseios de toda uma geração
A vida breve de Sezefredo das Neves, poeta, de Salim Miguel. Editora Record, 354 páginas. R$ 40,90
Longe demais das grandes capitais, como na letra da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, o escritor Salim Miguel escreve de sua querida Florianópolis sobre um grande poeta criado por ele, síntese de um grupo de jovens que acreditava poder resolver “os problemas de nossa terra, de nosso estado, do nosso país, do mundo”. Uma vã ilusão, como o próprio escritor, parte fundamental desse grupo, atesta.
Salim Miguel tem uma trajetória peculiar na literatura brasileira contemporânea. Nascido no Líbano em 1924, foi ainda criança para Biguaçu, cidade da Grande Florianópolis. Na capital catarinense, para onde se mudaria e vive até hoje, participou de diversos movimentos culturais. Entre seus 25 livros publicados, um dos mais conhecidos é “Mare nostrum” (Record), finalista do prêmio Jabuti em 2005.
Em “Sezefredo das Neves”, Salim Miguel desenvolve uma estrutura narrativa que mistura memória, biografia, reportagem e romance, nunca definindo o que é realidade e ficção. Seu poeta é um poço de adjetivos: pálido, alto, magro, suave, agressivo, doentio, sonhador e infeliz, “como todos os poetas de antanho”, no caso das décadas de 40 e 50 da boemia intelectualizada de Florianópolis.
Romance foi reduzido de
450 para 350 páginas
O livro é a segunda versão do romance lançado pelo autor em 1987. Reduzido de 450 para 350 páginas, mistura personagens conhecidos dele e outros criados pelo autor, sendo que o protagonista, o frustrado Sezefredo das Neves, pura criação literária, simboliza os sonhos e ambições do aspirante a escritor que vai morar numa pensão barata, com dinheiro contado, originais engavetados em envelope pardo e muita cara de pau (que é necessária quando não se conhece ninguém) para se incluir nos grupos e panelinhas intelectuais. Um “Rimbaud caboclo” que se transforma em homem de negócios e deixa o romantismo para trás, perdido em alguma sombra do passado, lembrando uma “metamorfose aparentemente inexplicável”.
Não deixa de ser um livro nostálgico, um rito de passagem em que se percebe não apenas as marcas do tempo no rosto, no corpo e na voz, mas também nos hábitos e costumes da cidade que deixou de ser pequena. “O inevitável esbarrar-se com os conhecidos nos bairros, na rua-praça central sumira, lembrança para poucos de um tempo ido”.
Nesta turma, que admirava Mário de Andrade, Lorca, Pessoa, Drummond e o catarinense Cruz e Souza, sobraram vultos esmaecidos, “sonhos erradios entre sombras” e o medo de que todos se perderam e estão deixando um mundo ainda pior para os que viriam depois.
O nome Sezefredo das Neves ganha literalmente um corpo quando a dona da pensão onde ele se hospedara descobre uma maçaroca de papéis nas gavetas. “Pensei em jogar tudo fora”, diz ela, que resolve mudar de idéia pois gostava daquele sujeito excêntrico e inconstante, que entrega a papelada a um conhecido do poeta, que enfim a leva ao narrador desta história.
Vontade de realizar se choca
com incapacidade de fazê-lo
E, de fato, a história está quase toda contida naquela papelada velha e esquecida, mas não a história de um homem apenas, de um poeta pobre que se transformou num homem de negócios, mas sim de uma geração que poderia fazer parte da pequena Biguaçu, de Florianópolis, Rio, São Paulo ou qualquer lugar onde pessoas se reúnam com “uma vontade de realizar que se choque com uma incapacidade de fazê-lo”. A pergunta básica é: se os jovens não brigam e arriscam, o que serão quando ficarem velhos?
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