sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

VISÃO PECULIAR DE UMA HISTÓRIA DE PAIS E FILHOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de dezembro de 2005)

Autora inglesa faz de um menino notável o protagonista de romance recheado de ironia

A nona vida de Louis Drax, Liz Jensen. Tradução de Vera Ribeiro. Editora Nova Fronteira, 288 páginas. R$ 29

“Não sou como a maioria das crianças. Sou Louis Drax. Comigo acontecem coisas que não deveriam acontecer, como ir a um piquenique em que a gente se afoga”. Assim a escritora inglesa Liz Jensen apresenta seu conturbado personagem, um garoto propenso a sofrer acidentes e que passa a maior parte do tempo do livro em coma por ter caído (ou ter sido jogado) de um abismo. O livro trata basicamente da relação entre pais e filhos, mas de um jeito bastante peculiar.

Liz Jensen conta sua história em dois planos, na visão de Louis e do médico que monitora o seu estado de coma. A ironia é um dos pontos fortes do estilo da autora, capaz de criar frases e situação de identificação com quem já passou por uma escola. “Os professores fazem a gente cantar músicas idiotas e, na volta, alguém vomita no ônibus”. Jensen entra com muita naturalidade no universo infantil ao desenvolver um Louis Drax bastante crítico em relação ao comportamento de seus pais.
O grande atrativo do livro gira em torno do mistério que envolve o acidente de Louis no desfiladeiro. O garoto praticamente ressuscita depois do acidente. A autora desenvolve um estado de tensão permanente, pois Louis a qualquer instante pode recuperar a lucidez e contar o que realmente aconteceu. Enquanto isso, muitas coisas estranhas acontecem.

O pai de Louis, Pierre, some inexplicavelmente após o acidente e a mãe, Natalie, passa a ter um comportamento para lá de estranho, levantando a suspeita de que os constantes problemas do garoto não são tão inexplicáveis assim.

Certos bilhetes começam a aparecer, assinados por Louis e com a grafia do garoto, o que aumenta o mistério em torno de seu estado. Com a simplicidade da visão infantil do que ocorre ao redor, o estilo das cartas é bem direto. “Caro dr. Dannachet, o senhor devia estar cuidando de mim, mas só que transar com a minha mãe”. Mas quem escreve esses textos se Louis está em coma? É uma das “cartas na manga” que a autora reserva para o final.

Falta de adaptação das
pessoas “normais” ao mundo


O personagem secundário mais interessante da trama é Perez Gordão, amigo da família de Louis, que o descreve de todas as formas pejorativas possíveis. “Perez Gordão era velho, provavelmente tinha uns quarenta anos, e tinha uma carona gorda de bebê. Se a gente tivesse um alfinete, podia estourá-la e ia espirrar uma gosma amarela”.

É através desse misterioso personagem que Louis encontra o próprio reflexo para destilar suas opiniões mais espirituosas, numa espécie de espelho distorcido, mais velho, mais gordo e sem metade da sua inteligência e senso de humor. O livro aborda muito bem este tipo de relação, pois o próprio dr. Pascal vê em Louis sua imagem quando passa a sentir por ele um carinho e uma compaixão quase de pai para filho.
A autora mostra, de forma bastante interessante, até que ponto a falta de adaptação para o mundo das pessoas ditas normais pode ser um obstáculo ao desenvolvimento de uma criança notável. Afinal, nem todos têm nove vidas como Louis Drax.

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