terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

XADREZ DA VIDA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em sete de janeiro de 2006)

A trajetória de Edward Bunker, de bandido autodidata a escritor autodidata

Educação de um bandido, de Edward Bunker. Tradução de Francisco S. Inoccêncio. Editora Barracauda, 384 páginas. R$ 43

Ele tinha tudo para morrer na prisão, ambiente que freqüentou durante 18 anos divididos em três períodos. Mas Edward Bunker, americano até a alma, acabou se tornando um caso difícil de explicar, um homem que parecia fadado a se tornar mais um número na contabilidade dos fracassados e que foi salvo por uma turma que incluía Dostoievski, Jack London, Hesse e Camus – enfim, pela literatura.

“Há dois mundos onde os homens são despidos de todas as máscaras e se pode ver seu íntimo. Um deles é o campo de batalha; o outro é a prisão”, explica ele, que aos 17 anos tornou-se o detento mais jovem de San Quentin, uma das mais famosas e rígidas prisões dos EUA. Nascido em Hollywood, filho de uma corista e de um ajudante de palco, Bunker foi parar num internato aos cinco anos, após o divórcio dos pais. Lá começou sua “educação de um bandido”, quando um garoto o levou para saquear biscoitos e sorvetes no refeitório.

Dali em diante, Bunker foi apenas desenvolvendo seu “aprendizado”, roubando carros, usando e vendendo drogas, tornando-se gigolô e se impondo entre os bandidos mais durões, para isso aprendendo a lutar boxe. São muito interessantes suas divagações sobre como as habilidades com os punhos o ajudaram a ganhar respeito e ao mesmo tempo a se meter em encrencas, como quando sua rebeldia impulsiva o levava a ser surrado pelos guardas. “Senti o gosto de sangue do lábio cortado por meus dentes, e de minha mandíbula partiu um relâmpago de dor anunciando que ela fora deslocada”.

O mais curioso deste livro de memórias é que se perde a conta de quantas vezes Bunker entrou e saiu de prisões e reformatórios, com direito a solitárias e a punições severas, mas ao mesmo tempo pôde deixar esse mundo como um escritor importante no seu país, autor de bons livros como “Cão come cão” e “Nem os mais ferozes”. E engana-se quem espera encontrar apenas um estilo seco e direto, influência do meio em que viveu. O autor demonstra em boa parte do livro uma sofisticação e uma habilidade narrativas típicas de quem leu os clássicos, principalmente Dostoievski, que talvez por também ter levado uma vida atribulada e mergulhado nos complexos de culpa do ser humano seja o autor com quem mais se identifique. “Dostoievski faz com que você entenda os pensamentos de jogadores, assassinos e outros melhor que qualquer psiquiatra, incluindo Freud”.

Observador atento ao que se passava em sua volta, Bunker percebeu como a segregação racial de seu país acendeu o rastilho de pólvora que iria explodir nos anos 50, inclusive nas penitenciárias, onde antes havia uma certa irmandade racial (afinal, todos estavam no mesmo barco) e a partir daquele momento qualquer esbarrão entre um negro e um branco podia gerar um tumulto generalizado.

A proximidade com os condenados do corredor da morte também é testemunhada por ele com grande carga dramática, tendo como base teórica as “Reflexões sobre a guilhotina”, de Albert Camus, “talvez o mais pungente e certamente o mais belo ensaio escrito sobre a pena capital”. O autor presta atenção em peculiaridades como a última refeição dos condenados, geralmente um prato muito melhor do que a média mas que provavelmente não teria tempo de ser digerido. “Qual seria a sensação de ser atado a uma cadeira e deixado para morrer?”

O interesse do autor por cultura não se resumia à literatura. Há referências constantes ao jazz de Ella Fitzgerald e Billie Holiday e aos filmes das décadas de 40 e 50, época de ouro para o cinema americano, além de referências a pinturas e a obras de arte em geral. Boa parte de seus livros foi escrita na prisão e talvez por isso mesmo sejam carregados de intensidade e sofrimento, mas também de beleza.

Bunker, que participou do filme “Cães de aluguel”, de Quentin Tarantino, no papel de Mr. Blue, não esconde o orgulho por ter sido autodidata, extraindo conhecimento de onde pudesse, desde um jornalista bêbado que conhecera numa enfermaria até o livro “O diário de um escritor”, de W. Somerset Maughan. Se os métodos que o levaram à cadeia tantas vezes não são exemplo para ninguém, a perseverança em viver e a fé na arte são um modelo.

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