terça-feira, 23 de março de 2010

CONVIVÊNCIA E SENSIBILIDADE NO LIMITE DA SOLIDÃO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 10 de junho de 2006)

Best-seller francês sobre o sentido da vida e a arte do encontro

Enfim, juntos, de Anna Gavalda. Tradução de Alcida Brant. Editora Rocco, 528 páginas. R$ 58

Best-seller na França, onde vendeu mais de 700 mil exemplares, “Enfim, juntos” foi traduzido no mundo inteiro e confirma o talento de Anna Gavalda, francesa de 35 anos que fez mestrado em letras na Sorbonne e já lançou outros cinco livros de ficção, inéditos no Brasil.

Engana-se quem torce o nariz quando ouve falar em romances de grande sucesso, imaginando uma trama açucarada e de emoções fáceis. O livro sustenta uma história bastante interessante por mais de 500 páginas, em torno de uma reunião bastante inusitada de quatro pessoas num apartamento, expondo os problemas sociais franceses. “Eis que chega o inverno, matador dos pobres”.

Camille Fauque, a protagonista, é uma pintora amadora de talento que, porém, trabalha como faxineira. Vive num apartamento sem aquecedor no mesmo prédio que Philibert, um tímido apaixonado pela História da França, e Franck, cozinheiro arrogante e grosseiro que precisa visitar a avó doente às vezes. Os quatro, tão diferentes, se juntam no apartamento de Franck e Philibert, numa experiência que tem tudo para dar errado.

Como o leitor já deve ter percebido, é um livro sobre a convivência, palavrinha mágica que se fosse levada a sério poderia evitar desde brigas no trânsito à invasão de um país. O constrangimento é o primeiro obstáculo num país onde as relações humanas são tão frias quanto a temperatura no inverno. “Camille tentou não reparar nos sapatos furados e Philibert fez o mesmo em relação às manchas de umidade nas paredes”.

Idealista que torna viáveis
possibilidades remotíssimas


Franck é o elemento desagregador, que aparentemente só pensa em si e sempre se mostra crítico em relação a Camille, idealista que torna viáveis possibilidades remotíssimas. Philibert, encabulado e indeciso mas de bom coração, acaba aceitando as decisões de Camille. Mas é com Paulette, senhora que leva um tombo no início do livro e pára no hospital, que a autora explora a sensibilidade dos personagens. Quando Camille e Paulette se encontram, trata-se de um reencontro. Camille sai do trabalho e volta a pintar e Paulette, acostumada à frieza do neto e das enfermeiras, ganha ânimo novo. “O que as duas estavam vivendo, as trocas de olhares e as mãos entre as mãos enquanto a vida se esfarelava à menor lembrança, isso ninguém lhes tiraria”.

Para Camille, era a chance de dar sentido à sua vida, de se encontrar num lugar. “Ia fazer 27 e ainda não tinha feito nada que prestasse. Não tinha amigos nem lembranças e nenhuma razão de ter pena de si”. Uma mulher que não sabia fazer nada “normalmente, serenamente”, e que percebia pela primeira vez o dia lhe parecer suportável. No fundo, os quatro enfrentam tipos diferentes de solidão, cada um no seu mundo de ansiedade e melancolia. “Para que servem emoções não compartilhadas?”

Gavalda também tempera o livro com observações sobre o universo masculino, mas sem cair no estilo de autoras que abusam dos chavões sobre homens. Pelo contrário, ela abusa, sim, da ironia e da inteligência com sua protagonista. “É assim que se reconhece um cara legal: os rapazes que são gentis sem pensar em levá-la pra cama...” Camille enxerga através da máscara de machismo que muitos homens usam para se defender de mulheres observadoras e inteligentes. É seu maior mérito.

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