RESGATE DE UMA DÍVIDA COM O PASSADO
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de maio de 2006)
Galera chega onde autores de sua geração não conseguem: o lado humano dos personagens
Mãos de cavalo, de Daniel Galera. Editora Companhia das Letras, 192 páginas. R$ 34
O gaúcho Daniel Galera fez parte da extinta editora Livros do Mal, de Porto Alegre, que lançou autores que dificilmente teriam espaço nas “grandes casas do ramo”, muito mais preocupadas (com raríssimas exceções) em traduzir best-sellers e repetir os mesmos nomes de sempre. Agora ele lança seu terceiro livro, desta vez por uma grande editora, e mostra que longe do vicioso círculo Rio-São Paulo, com seus temas muitas vezes repetitivos, há uma galera (sem trocadilhos, por favor) nova produzindo literatura de grande qualidade.
Daniel Galera não retira os pontos e parágrafos do seu texto e também não começa frases com letras minúsculas, todos ingredientes vistos ultimamente como “inovações formais” de gosto bastante duvidoso. Seu texto é simples, assim como a estrutura narrativa. Mas o autor consegue extrair aquilo que é uma das matérias-primas dos clássicos literários: o lado humano dos personagens.
Descrições técnicas são importantes em certos momentos de uma história, mas acabam se tornando extremamente entediantes quando exageradas. Autores americanos, principalmente de best-sellers, gostam muito disso, gastando páginas e mais páginas para mostrar como funciona o motor de um trator ou o efeito de certa substância química. Enquanto isso, ficamos sem saber o que o personagem sente, pensa, ama, odeia, despreza etc.
Momento de reflexão
sobre a infância perdida
Não é o caso de “Mãos de cavalo”, em que o protagonista, Hermano, cujo apelido na infância é o título deste livro, é um cirurgião de sucesso, casado, com uma filha, e que vive praticando alpinismo com o amigo Renan. O casamento não vai lá muito bem, é verdade, mas o que poderia ser mais uma história sobre um sujeito angustiado que perdeu o sentido da vida e busca compensações em outras partes, acaba se transformando num interessante momento de reflexão sobre a infância perdida e todas as conseqüências que isso provoca no futuro.
“Viver, todavia, não tinha nada de heróico. Aos trinta anos, lhe parecia antes de tudo um constante ensaio para um heroísmo que nunca chega”. Hermano acaba se refugiando naquele garoto que gostava de andar de bicicleta a toda, sem se preocupar em cair e se arrebentar todo, como constantemente acontecia (“Não há terreno impossível para o Ciclista Urbano”). Revê, na memória, os amigos, os primeiros amores, as brigas, os jogos de videogame e filmes dos anos 80, as notas nas escolas, a relação com os pais e, principalmente, o dilema entre conceitos tão antagônicos como coragem e covardia. No fim, acaba percebendo que está diante de um desafio tão grande quanto o cume dos quase sete mil metros do Cerro Bonete, no Aconcágua, para onde tinha prometido ir com Renan.
Frustração por não ter
assumido uma atitude digna
Descrições bem feitas e sem exagero da paisagem gaúcha, com o pôr-do-sol do Guaíba e o vento frio batendo forte na cara, são o ambiente perfeito para os perfis humanos, principalmente o de Bonobo, “cuja cabeça parecia um feijão gigante equilibrado sobre um torso triangular embasado por uma pochete de banha” e que vai se tornar o personagem mais intrigante desta história, assumindo um papel fundamental no grande dilema de Hermano: a frustração por não ter assumido uma atitude digna na hora certa.
Daniel Galera não utiliza em nenhum momento uma linguagem melodramática, risco constante de quem lida com temas sentimentais. Seu humor é leve, extremamente agradável, longe do sarcasmo e da ironia que marcam muitos dos autores jovens dos anos 90 para cá. Não há, por exemplo, quem não se lembre da própria infância ao ler uma frase tão simbólica deste período da vida quanto esta: “Mesmo nas férias de verão, chega o dia em que um homem precisa tomar banho”.
Um amigo que vai ser pai, outro que morre, mais um que sai do bairro e ainda há aquele que muda de comportamento. As peças do quebra-cabeça da adolescência vão assumindo outras feições e não se encaixam mais. Hermano precisa encontrar “a pista definitiva para a sua identidade, a síntese de quem ele era, quem imaginava ser e quem todos os outros enxergavam”. Já numa fase em que rompeu praticamente todos os laços com essa fase da vida, numa fase em que todos, a mãe, a filha, os amigos, os pacientes, todos imaginam saber exatamente o que ele vai fazer, é que “Mãos de cavalo” resgata uma dívida com o passado. Uma dívida com ele mesmo e que é a própria síntese deste livro. “Faz muito tempo que não se entrega à fantasia com tanta vontade”.
Trecho do livro "Mãos de cavalo":
"A VELHA PASSA A MÃO NO cabelo dele e sorri. Ele olha mais uma vez para o joelho e vê que o sangue é mesmo bem escuro. Imagina como seria a cor do sangue bom, que era quase rosa de tão limpo. (...)
Mas o que escorre agora é definitivamente o sangue ruim, cheio de impurezas, como que sujo de carvão, desenhando linhas sobre sua canela quase sem pêlos.
Quanto mais pensa nisso, menos intenso é seu mal-estar diante dos machucados. Em sua imaginação há uma imagem elaborada de todas as veias e artérias percorrendo seu interior como uma rede de encanamento, mas tudo feito de músculos, de uma carne mole sustentada e articulada por ossos. (...) O suor cessa, e já não se sente mais tonto. Pelo contrátio, sua energia está restabelecida. As dores aumentam, mas há agora um certo prazer em suportá-las."
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