quinta-feira, 4 de março de 2010

ESCRITORES SEM ROSTO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 15 de abril de 2006)

Contos autobiográficos de JT Leroy perdem a força depois da revelação da farsa em torno do autor

Maldito coração
, de JT Leroy. Tradução de Santiago Nazarian. Geração Editorial, 216 pgs. R$ 29

A enganação durou cinco anos. Em 2000 o escritor JT Leroy ganhou fama mundial ao
publicar o romance “Sarah” e a coletânea de conto autobiográficos “Maldito coração”, que chega agora ao leitor brasileiro (“Sarah” já havia sido lançado pela mesma Geração Editorial). O que chamou a atenção nesse autor foi a forma realista e cruel com que ele narrou sua infância e adolescência, filho de uma prostituta que se oferecia e oferecia o filho vestido e mulher nas estradas americanas. Recentemente “descobriu-se” que JT Leroy nunca existiu e que tudo que ele narrou não passa de ficção. E a pergunta que se faz é: quem vai assumir a farsa?

Sim, porque não dá para usar outro termo ao definir esta reles jogada de marketing. Há uma grande diferença entre ler uma história de um personagem sofrido e vítima de bizarrices sexuais sabendo que ele existiu e ler isso tudo sabendo que é pura ficção. JT Lerou, segundo se divulgou, é criação de uma roqueira fracassada, Laura Albert, que na verdade é representada mundo afora (inclusive no Brasil) por Savannah Knopp, meio-irmão do companheiro de Laura. Entendeu? Pois é, melhor deixar esta história sórdida e confusa para trás e ir ao livro, que é o que interessa.

São dez contos, episódios da infância e adolescência de Jeremiah, filho da tal prostituta, Sarah, e o que mais impressiona é a lúcida resignação com que o garoto aceita seu destino das mãos, cintos e outros objetos punitivos da mãe e de seus muitos amantes, pais de ocasião que de vez em quando alimentam desejos nada paternais pelo garoto.

“Sempre é mais fácil convencer as pessoas de que está tudo bem, porque se não estiver, elas terão de se envolver. Assim, Jeremiah acaba aceitando sua dura realidade como um martírio pelo qual terá de passar. A culpa e o pecado aparecem em diversas circunstâncias de sua vida, o que pode fazer de uma inoportuna ereção motivo pra uma punição carregada de falsos moralismos.

Protagonista tem uma relação neurótica e
de amarga cumplicidade com a mãe


A relação que se estabelece com a mãe é de uma amarga cumplicidade e o conto que dá título ao livro ilustra bem isso, quando Sarah ensina o garoto a roubar produtos no supermercado. Os raros momentos de carinho e ternura dela por ele são conseqüência de um amor neurótico, motivado muito mais pela excitação das bebidas e dos antidepressivos – ou pela falta deles.

Num mundo sem referências saudáveis, sem ter onde se apoiar, nem ter com quem contar, Jeremiah nasce como um anjo torto, que se veste de menina para agradar aos clientes da mãe, que desconhece qualquer tipo de amor verdadeiro, que sabe que tudo está errado com ele mas não tem forças para mudar sua vida.

O problema é que lá pelo quinto conto o tema já soa bastante cansativo, pois não sai do trinômio culpa/perda da inocência/mundo cão, com direito a todo tipo de perversidade sexual. Por mais que bons livros sejam escritos, bons filmes e músicas feitos, o tema já soa por demais batido e dá até para compreender que este autor, ou autora, precisasse de uma mentira para chamar a atenção. Vivemos a época dos escândalos, infelizmente, e se não fosse por isso seus livros, apesar de bem escritos, seriam mais uns na multidão.

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