quarta-feira, 5 de maio de 2010

SOMOS TODOS IGUAIS NESTA NOITE, DE MARCELO MOUTINHO


"Somos todos iguais nesta noite" - Marcelo Moutinho - Editora Rocco - 128 páginas - R$ 19,00

“Não sei porque vivo com essa mania de recordação, recordação...lembrança até quando é boa, dói”, afirma a personagem de “Desfile”, um dos contos do ótimo livro do jovem escritor Marcelo Moutinho, uma das boas revelações da literatura feita no Rio de Janeiro nos últimos anos.

Marcelo já havia publicado “Memórias dos barcos” (“7Letras”, em 2001) e organizado e participado de algumas coletâneas. Criado no subúrbio carioca de Madureira, “entre a Carvalho de Souza e a Dagmar da Fonseca”, coração do bairro, o autor, que hoje mora no Jardim Botânico, zona sul do Rio, faz da saudade do subúrbio um dos seus temas preferidos nos dois livros. Sem ser piegas, ele mostra o que a região tem de melhor, mesmo nos tempos violentos e estressantes de hoje.

Sua visão, quase sempre, é a da criança, e neste caso ele desenvolve ao máximo o lado lúdico da infância, o mundo todo próprio que as crianças constroem e que hoje, com tanto apelo à falta de ingenuidade, vai se perdendo. Isso acontece em “Jujuba verde”, “Dia de festa”, “Noites” e no conto que abre o livro, “Passeio em família”, quando a estréia do carro novo do pai vira uma grande festa. Um pequeno trauma dá o toque dramático à história, recheada de observações singulares sobre o pai. “Eu não podia entender como podia preferir cerveja, aquela bebida amarga, a churros.”

“Dedicatórias” traz uma estrutura toda especial, na qual um relacionamento amoroso é contado através das dedicatórias dos livros que os namorados trocam entre si. Mário Quintana, Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e outros escritores acabam assumindo o papel de coadjuvantes neste conto em que o autor mostra que para ser criativo e original não é preciso desenvolver “inovações” de caráter altamente duvidoso, como escrever parágrafos inteiros sem pontuação ou apenas com letras minúsculas. Outra estrutura interessante se encontra no conto “Desfile”, em que os prazos apertados de uma costureira de escola de samba são narrados em capítulo nomeados pelas alas de uma escola.

O conto que dá título ao livro (que também é uma música de Ivan Lins e Vitor Martins) se passa numa mesa de bar, este ambiente perfeito para se observar caracteres e criar personagens. “Quem senta nos bancos ao redor do balcão de um bar é sempre a solidão”. Entre figuras decadentes e solitárias, está o Rapaz, que quase não fala, toma oito long-necks todas as noites e desperta a curiosidade dos freqüentadores, que um dia resolvem segui-lo após a saída do bar. O que eles descobrem não tem nada de extravagante, mas é profundamente revelador – como nos demais contos do autor, que em nenhum momento seguem a linha da grande revelação no final.

“Rosa noturna”, que mostra a rotina de um travesti no bairro da Glória, destoa um pouco dos outros contos, mas nem por isso perde a qualidade. A ânsia de Teresa em “ganhar a noite” e pagar as dívidas é o mergulho numa vida de imprevistos arriscados. A linguagem é explícita, porém longe de ser chula, mesmo quando entra em detalhes impregnados nos quartos de hotel. “Faço de tudo, amor. Menos beijar na boca”. A surpresa positiva com um cliente dá o toque redentor àquela vida difícil. “Hora de ir para casa: a noite estava ganha”.

Entre diversos minicontos que sempre trazem algum momento de reflexão (“Ignoravam que chorar é um fato, não uma opção”), a história que melhor sintetiza o estilo de Marcelo Moutinho, a meu ver, é “Da profundeza do azul”, em que o autor narra a despedida do trabalho de um funcionário prestes a se aposentar. “A velhice chega assim, sem aviso, sem fanfarras, sem eventos, num olhar banal lançado ao espelho do banheiro para conferir a barba antes de sair”. A euforia do início dá lugar à melancolia do final, quando um pequeno espelho no meio de uma selva de pedra cheia de antenas parabólicas, roupas dependuras e aparelhos de ar-refrigerado reflete um mínimo de vida.

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