AGRADÁVEL MERGULHO NO DELÍRIO POÉTICO DE UM CASAL
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de janeiro de 2007)
Autora de ´No shopping´adota agora narrativa nada convencional para falar de personagens sempre na contramão
A feia noite, de Simone Campos. 7Letras, 104 páginas. R$ 23
Se no seu livro de estréia (“No shopping”), aos 17 anos, Simone Campos se deu ao luxo de algumas liberdades formais, ela agora adota por inteiro uma narrativa nada convencional em seu novo romance. Passado o inevitável estranhamento, o livro é um agradável mergulho no delírio poético vivido por Francisco e Maria Luiza, “menina que, ao completar dezesseis anos, espetou o dedo num fuso horário e nunca mais viu a cor do dia”.
Maria Luiza e Francisco, os protagonistas, tentam viver com o seu desamparo, melancolia e obsessões, cada um farejando o outro, como dois cães. “Era uma anomalia. Precisava gozar. Queimar sua ficha de catarse. Secar o óleo. E acordar de volta na própria pele.” O estilo é quase uma prosa poética, muito descritivo, muito reflexivo, construções que fazem pensar. Uma autora bastante sintonizada com o meio urbano e seus espigões monocromáticos, poeira fina, ausência de plantas e cigarras que sirenam nas transversais.
Debochada, boca sedutora, cabelos tosados a cinco reais, Maria Luiza é um jogo de referências modernas e embriagadoras, personagem que poderia ir para o palco ou as telas, mulher que não quer mais aceitar doces de estranhos ou entrar em seus carros com destino desconhecido, que curtia gordos mórbidos, tipos de ray-ban mascando chicletes e mulheres, “não as doces, mas mulheres más, de lábios apertados”, maduras e crianças ao mesmo tempo.
Personagem que não quer mudar o mundo, mas, por outro lado, uma incrível observadora, que tudo constata nos detalhes mais deprimentes, da fila de namoradas imprensadas no chapisco ao carro impregnado de bexigas amarelas e moças rindo escandalosamente. Maria Luiza só quer andar sem rumo, “sem projeto, sem eira nem beira como se diz”, fugindo da tristeza que se aproxima como um demônio, “especialmente à noite, às vezes em dias nublados”.
Neste ambiente sutil, impreciso entre ilusão e realidade, há uma busca constante e ao mesmo tempo uma vontade de se perder. Sempre na contramão, os personagens passam por cima de uma terra arrasada e flutuam por endorfinas, serotoninas. A proposital falta de objetividade da narrativa às vezes pode cansar um pouco, mas nada que atrapalhe muito este fluxo de consciência intermitente, porém muito bem escrito, amparado na indefinição da personalidade de Maria Luiza. Ela e Francisco talvez nada mais sejam do que dois alienados da realidade, ou dois cavaleiros errantes demais para entrarem em sintonia com o que os rodeia. "Você não sabe o que anda acontecendo porque você é o que anda acontecendo".
Talvez seja esta a intenção da autora, criar personagens meio sem rumo para viver todos os riscos com toda a liberdade de errar. Os dois temem as perspectivas, a família, tudo o que soa convencional demais, como as pessoas (pequenas e irreais vistas de cima) que riem como se as coisas fossem tranqüilas e certas. Querem ficar limpos de pensamentos, andar a esmo por uma cidade não deserta, mas desertada, e dormir por nocaute.
Caminhos de renovação e
originalidade
Aos que não querem se refugiar apenas nos medalhões e sim conhecer os bons valores da literatura brasileira anos 90 em diante, Simone Campos é uma boa pedida, assim como Marcelo Moutinho, Marcelo Mirisola, Antonia Pellegrino, Nelson de Oliveira, Daniel Galera e muitos outros. Um pessoal que, se não forma um movimento, trilha caminhos muito parecidos de renovação, originalidade e criatividade.
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