quinta-feira, 8 de abril de 2010

NA LITERATURA, ARTE E MÉTODO PARA A DESORIENTAÇÃO UNIVERSAL


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 21 de outubro de 2006)

Escritores e intelectuais falam sobre livros que abalaram seus mundos

10 livros que abalaram meu mundo, de vários autores. Org: Julio Silveira e Martha Ribas. Editora Casa da Palavra, 144 páginas. R$ 28

Para comemorar seus dez anos de atividades, a editora carioca Casa da Palavra escolheu uma forma interessante de homenagear a si mesma e aos seus leitores. Fez a proposta, que resultou neste livro, de convidar dez autores ligados à editora para escreverem sobre o livro que "abalou" o seu mundo. "A vida nunca mais é a mesma depois que se penetra no reino das palavras", constata Ruy Castro, que escolheu "Alice no país das maravilhas", de Lewis Caroll - com o qual foi presenteado em seu aniversário de cinco anos.

Se a tarefa já é difícil para leitores comuns, o que dizer de José Mindlin, o bibliófilo que leu uma média de cem livros por ano durante 70 a 80 anos. Sua escolha recai sobre "Pai Goriot", de Balzac, uma das dezenas de obras que compõem a gigantesca "Comédia humana" do autor francês, e que o impressionou justamente porque Balzac, apesar de não ter tido filhos, conseguiu exprimir de maneira realista o sentimento paterno. "Parecia um pai descrevendo seu próprio drama. Aliás, todos os romances de Balzac dão ao leitor uma sensação de realidade e não de ficção".

Outro francês genial abalou o mundo de Milton Hatoum. O conto "Um coração simples", de Gustave Flaubert, entrou na vida do escritor amazonense quando ele tinha 12 anos, lido por Madame Liberalina, a senhora de 83 anos que lhe ensinava francês e morava numa casa repleta de livros. A cada releitura, "encontrava na vida das personagens uma elaboração complexa das relações humanas". Mas um dos motivos do fascínio de se relembrar um livro marcante é que sua primeira leitura é única, caso de "O primo Basílio", de Eça de Queirós, lido por Heloisa Seixas no período de férias entediantes e chuvosas na Bahia. "Pronto. Dera-se a mágica".

Gustave Flaubert e sua "Educação sentimental" deram a Sérgio Augusto, com apenas 18 anos, identificação plena com o protagonista Frédéric Moureau (da mesma idade), que se apaixona por uma mulher mais velha, “fantasia de qualquer jovem com um mínimo de sensibilidade e um excesso de moças imaturas e idiotas à sua volta”. Sérgio Augusto aproveita para dar informações interessantes sobre a vida de Flaubert (riquíssima de contratempos) e detalhes sobre a publicação do livro e a repercussão que ele teve.

Essa mesma afinidade entre leitor e escritor surgiu para Beatriz Resende no primeiro contato com Jean-Paul Sartre, ainda no segundo grau do Colégio de Aplicação da UFRJ, às vésperas do golpe de 64. Seu dilema era comum aos jovens dos anos 60 viciados em leitura, como ela: a literatura soava muito exclusiva de uma espécie de mundo adulto, “um universo meio esquisito, com uísque demais”. A estudante queria conhecer um autor que se preocupasse com o mundo mas também com os desejos de uma garota que queria ser dona de seu destino.

"A idade da razão", livro de Sartre e uma das bases do existencialismo, deu a Beatriz e a toda uma geração de jovens no mundo inteiro "a possibilidade de a literatura tratar de forma muito próxima questões para as quais dificilmente encontrávamos interlocutores". A liberdade e a tolerância, temas básicos da literatura e da vida de Sartre, um filósofo que realmente praticou a sua teoria, estavam presentes naquele livro que abriu o mundo da jovem estudante para caminhos e possibilidades até então completamente desconhecidos.

O livreiro Rui Campos opta, ao invés de escolher "o livro", por fazer um ensaio sobre a emoção de entrar numa livraria pela primeira vez, uma experiência que pode mudar a sua vida, diz. Já Lúcia Riff, embora também comece seu texto enumerando vários livros, escolhe "O deserto dos tártaros", de Dino Buzzati, lido por ela aos 30 anos e repleto de metáforas sobre as escolhas que fazemos de nossas vidas, um tema fundamental em qualquer idade.

O paraibano Braulio Tavares coloca a literatura de ficção-científica num patamar mais elevado do que o usual ao falar do livro "The encyclopedia of science fiction", avalizado por Isaac Asimov como a bíblia dos fãs do gênero. Seu artigo é praticamente um ensaio sobre o tema e com certeza vai surpreender muita gente que já leu ficção-científica sem saber.

O exercício de memória afetiva proposto neste livro dominou os próprios editores, que dedicam um espaço a seus livros mais marcantes: "Profession" é o conto de Isaac Asimov que abalou o mundo de Martha Ribas, e "O caso da borboleta Atíria", de Lúcia Machado de Almeida, o de Julio Silveira, fascinado pela história de um crime no mundo dos insetos.

Nina Schipper, que foi sócia fundadora da Casa da Palavra, mas já se desligou da editora, e o autor David Toscana, escolhem "A metamorfose", de Kafka, uma das histórias mais estranhas do século XX, sem dúvida, e que se encaixa perfeitamente neste livro. A história do sujeito que vira um inseto e percebe que sua transformação não modifica nada em sua volta é a própria "história de um aniquilamento", como diz Nina, marcada pelo livro já na primeira linha: "Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto." Um inseto, sem dúvida, cada vez mais presente no mundo competitivo em que vivemos hoje, cheio dos funcionários burocráticos infernais que tanto abalaram o mundo (num outro sentido) do autor tcheco.

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