quarta-feira, 5 de maio de 2010

O TEXTO, OU: A VIDA, DE MOACYR SCLIAR


Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 22 de junho de 2007 - versão online)

O texto, ou: a vida, de Moacyr Scliar - Editora Bertrand Brasil, 272 páginas. R$ 39

Aos 70 anos e pouco mais de 70 livros publicados, Moacyr Scliar nos apresenta neste perfil autobiográfico não "apenas" a história de sua vida, mas também um amplo painel que inclui discussões literárias, religiosas e filosóficas, com direito a contos e trechos de livros para ilustrar as passagens de uma trajetória que começou na Rússia, quando a família, perseguida pela intolerância e pelo preconceito contra os judeus, veio parar no Rio Grande do Sul, onde Scliar nasceu, em 23 de março de 1937.

O autor começa dedicando um bom espaço aos contos de fadas e às narrativas populares, procurando explicar, através de teóricos como Vladimir Propp, o significado psicológico e a mitologia presentes nas histórias que sua mãe contava. Nada, porém, excessivamente teórico. A construção do mito é encaixada aqui no folclore brasileiro, que tanto o entusiasmou (e assustou) na infância, com personagens como o saci pererê, a cuca e o negrinho do pastoreio.

Da mesma forma, a imaginação era estimulada pela produção de brinquedos na oficina do tio, solução da falta de dinheiro - obstáculo para as lojas mais caras. O trabalho com as mãos, ensina Scliar, é um ótimo antídoto contra a arrogância intelectual. Deve ser por isso que Paulinho da Viola, um dos artistas brasileiros que mais cultuam a simplicidade, é um exímio marceneiro.

A infância pobre é lembrada também pelos "causos" contados pelos peões gaúchos no galpão, após um dia de trabalho no campo, comendo churrasco e tomando chimarrão. "Quanto à casa propriamente dita, era precária - o assoalho cedia ao passo, ratos disputavam corridas no forro -, e minúscula". As dificuldades da vida, no entanto, em nenhum momento são vistas com amargura ou rancor. O que dá para perceber é que o garoto que se tornaria o grande escritor que é hoje soube tirar daquele primeiro momento mais difícil material para uma atividade para a qual ele nem desconfiava que tinha vocação.

A pobreza, por exemplo, não foi empecilho para uma descoberta muito especial. "Apesar disto nunca me faltou dinheiro para livros", um gosto estimulado pela mãe, que o levava à tradicional Livraria do Globo, onde Scliar conheceu os livros de seu autor preferido na época, Monteiro Lobato, e o Thesouro da juventude, uma enciclopédia infanto-juvenil que abriu a porta da literatura para muitos futuros grandes escritores.

Já o futuro do menino que, com o tempo, passou a ver o livro como a "porta para o mundo imaginário que eu habitei durante grande parte da minha infância", estava dividido entre a medicina e a literatura. Os motivos que o levaram a se tornar médico também merecem um capítulo à parte. Entre eles, o medo de ficar doente, que o levou a ler livros sobre medicina e doença desde cedo, e o papel de destaque da medicina na tradição judaica, uma profissão que "dependia de conhecimento, e conhecimento o médico levava consigo, caso tivesse de deixar precipitadamente um país, o que não era raro entre judeus".

O primeiro contato com um cadáver, ainda na faculdade, rendeu o conto repleto de ironias "Pequena história de um cadáver", publicado neste livro. Mas o que a medicina proporcionou mesmo a Scliar foi o contato com o sofrimento e a realidade social do país, "a abordagem da doença como um problema coletivo, social", fundamental na sua formação literária. "Eu entrava em lúgubres casebres que abrigavam famílias inteiras, homens e mulheres doentes, crianças famélicas. Não era de admirar que muitos de nós estivéssemos engajados politicamente".

Seu primeiro livro, "Histórias de um médico em formação" (1962), rendeu a princípio muitas caras feias na gráfica onde o livro foi impresso. "Os operários já estavam até irritados com o escritorzinho que não parava de lhes encher o saco". De lá até chegar nesta biografia, ele enumera alguns dos seus principais livros, como "O exército de um homem só" (1973), "O centauro no jardim" (1980) e "Os vendilhões do Templo (2006), além do espaço generoso da crônica na sua vida profissional e das influências, como a de Erico Verissimo, Jorge Amado e, principalmente, Clarice Lispector, cuja obra foi apresentada a ele pelo primo Carlos Scliar, um dos grandes artistas plásticos brasileiros do século XX. Clarice, também refugiada como os Scliar, o deixou boquiaberto com o conto "A galinha". "Mas aquele texto...Deus, aquele texto era algo. Eu não imaginava que alguém pudesse escrever com tamanha profundidade".

Talvez este pequeno livro não seja ainda a biografia que Moacyr Scliar merece, mas sem dúvida é um livro fundamental para se entender e conhecer este que é hoje um dos maiores escritores vivos do Brasil. Na verdade, Scliar escreve muito mais um livro sobre literatura e sobre as dificuldades de se tornar escritor, usando a si mesmo como exemplo, uma vida repleta de lances dramáticos e também bem-humorados, ou seja, um enredo excelente para um grande romance. Afinal, "para isto servem as palavras, para estabelecer laços entre pessoas - e para criar beleza".

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