quinta-feira, 12 de março de 2009

A FALTA DE DISTINÇÃO ENTRE REALIDADE E FANTASIA, FEITA COM NOTÁVEL EQUILÍBRIO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 19 de fevereiro de 2000)

Nos contos de João Batista Melo, metáfora e saudade são os fios condutores

Um pouco mais de swing
, de João Batista Melo. Editora Rocco. 140 pg. R$ 19

Pode parecer incrível, mas entre toneladas de livros de auto-ajuda e best-sellers americanos, a literatura brasileira de qualidade ainda encontra espaço e se renova. “Um pouco mais de swing” é o quarto livro do mineiro João Batista Melo, premiado por outros dois de contos e pelo romance “Patagônia”. Em suas 15 pequenas histórias (sete inéditas e oito já publicadas em “O inventor de estrelas”, de 1991), o que sobressai é o texto altamente sofisticado e uma fértil imaginação, que não se prende a datas e nomes de lugares e sim aos personagens, quase todos melancólicos, alguns otimistas e muitos, com certeza, sintonizados com os leitores.

A valorização do lado bom do ser humano

Um deles, por exemplo, é a velha que faz miniaturas em barro em “Arquitetura dos sonhos”, conto que abre o livro. É difícil não se harmonizar com a tristeza e lirismo da mulher empenhada em criar na fantasia um mundo diferente da opressiva realidade em que vive. O pai e filho de “A reprodução das abelhas”, dois órfãos, “irmãos no desconhecimento de nossas origens”, valorizam o lado bom do ser humano (sim, ele ainda existe!). João Batista, aqui, como na maioria dos textos, utiliza como fios condutores a metáfora bem empregada e a saudade, algumas vezes válvula de escape das tristezas humanas, e em outras imersa num indefinido limite com a melancolia.

O autor só exagera nas metáforas justamente no conto que dá título ao livro e que se passa às margens do lendário rio Mississipi. “Bastaria localizar a terra por onde mares se inflariam, enquanto dos furos que se espalham na superfície do globo exalaria o trinado de um tema musical”. A beleza do final, no entanto, compensa o exagero e, mesmo num tema tão batido quanto o do velho músico que vai ensinar tudo a um garoto, o autor consegue criar imagens originais.

A passagem do tempo, aliás, e a inevitável saudade, que a acompanha como um algoz, são temas recorrentes em quase todos os textos de João Batista. A senhora que passa o resto da vida na praia, numa busca absurda por resquícios de uma mensagem que o filho enviou, mensagem que naufragou com um navio, representa o próprio enigma da morte, a eterna busca por traços físicos de quem já se foi, “como se em algum lugar fosse possível encontrar a escrita do tempo, reconstruindo o passado através das letras e dos sonhos”.

O nível de excelência só decai em alguns contos da segunda parte, talvez por serem de uma lavra bem anterior, de oito anos atrás. Assim, o fraco "Fale ao motorista somente o necessário" e o incompreensível "Com todo amor" só encontram paralelo no personagem Wagner, de "Casinha de bambu-ê". Justamente o forte do autor, a construção dos personagens, tem aí um deslize, principalmente ao falar sobre o caráter mulherengo em questão: "Tantos homens desatentos de proteger as mulheres que tinham, abrindo brechas para os mil braços de Wagner".

Mesmo assim, nesta segunda parte, o ótimo "Sedimentação", que fala do tédio e da imobilidade da vida, tem um final tão insólito que lembra a antiga e brilhante série de TV "Além da imaginação", da mesma forma que em "A superfície" o casarão de uma tradicional família mineira esconde um mórbido segredo, descoberto por um inocente e solitário menino. E, guardadas as devidas comparações, o conto "O inventor de estrelas" possui uma referência clara ao clássico "1984", de George Orwell. Num futuro de muita burocracia e controle da sociedade, o sujeito com uma doença fatal tenta o último desejo, mas percebe como a poderosa máquina estatal o considera desprezível. Até a onipresente tela de Orwell encontra aqui o seu paralelo (o videofone) e o pessimismo de um futuro sombrio ocupa todos os espaços.

Possíveis saídas para a redenção ou o infortúnio

Talvez a maior característica dos contos de João Batista Melo seja a oportunidade que dá ao leitor de completá-los com suas próprias vidas, tão fragmentadas e cheias de incertezas quanto as dos personagens. Diferentemente das histórias hermeticamente fechadas, há aqui possíveis saídas, seja para a redenção ou o infortúnio, dependendo de quem lê. A falta de distinção entre realidade e fantasia, feita com notável equilíbrio pelo autor, remete a um trecho de "Sweet Home", um dos mais belos poemas do também mineiro Carlos Drummond de Andrade: "Ora, afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber".



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quinta-feira, 5 de março de 2009

BRINCADEIRA QUE CARECE DE RITMO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de junho de 1999)

Jogos com clichês emperram a narrativa de ´Modelo para morrer´

Modelo para morrer
, de Flávio Moreira da Costa. Editora Record, 190 páginas.

Dizem que uma das melhores coisas da vida é unir trabalho e prazer. Para o escritor, é óbvio que isto se traduz em escrever sobre o que se gosta. A fórmula, no entanto, nem sempre é bem sucedida. Quando idealizou e coordenou o ótimo "Crime à brasileira", com textos que iam de Lima Barreto a Machado de Assis, Flávio Moreira da Costa provou que é apaixonado pelo gênero policial e entende do assunto, como já havia demonstrado também ao aplicar as gírias da bandidagem em "Malvadeza durão". Mas em "Modelo para morrer", ele alterna os capítulos da trama com dispensáveis reflexões sobre o que está escrevendo. Para o gênero no qual o ritmo anda de mãos dadas com o suspense e a surpresa, é um erro.

Flávio abusa da metalinguagem, este bate-papo com o leitor que só funciona de forma sutil e original, evitanto frases feitas ("Para morrer, basta estar vivo") ou de estilo duvidoso ("Eu sou o jóquei e a história é o cavalo ou será o contrário?"). Tudo isso se amontoa no caminho do jornalista Dick Holmes, que se depara com uma modelo morta em seus braços.

Com a bagagem de Flávio, acumulada não só nos bons livros do gênero que escreveu, como também na experiência em jornais e revistas, dá para perceber que os clichês são propositais. Nenhum autor de qualidade escreve "o negócio é o seguinte, dezenove não é vinte" impunemente. O grande enigma do romance, portanto, é descobrir qual o motivo dessas inserções, já que não acrescentam nada à trama.

O alter-ego de Flávio é Wallace Jones. É ele quem escolhe o nome do protagonista: Dick Holmes, não muito original, porém menos estranho do que o fato de o livro que abre a coleção de romances policiais brasileiros se passar em Nova York. E é lá, no coração do mundo (pelo menos financeiro), que o nosso intrépido Dick mistura citações sofisticadas que vão de Scott Fitzgerald a Cole Porter com frases do tipo: "Apenas constato, e não me venham chamar de alienado que o buraco é mais embaixo".

Já perto do final, o próprio Jones promete dar uma melhorada na trama. E A história até poderia tomar um rumo melhor quando entram em cena personagens como o traficante Brother Jam, que some de repente, após tanto suspense criado em torno dele.

A trama se centraliza em Dick Holmes, um personagem confuso e com uma motivação exagerada para desvendar o crime. O diálogo dele com os policiais que vão recolher o corpo é uma mistura de piadas de "A praça é nossa" com "Loucademia de polícia". A única pista concreta que possui é fornecida por Eve DeForrest, colega da modelo. O final, como não poderia ser de outro jeito, é previsível.

Como a história se passa em 1986, Wallace Jones faz diversas referências à época, como, por exemplo, ao fio dental: "Nádegas à direita, nádegas à esquerda, nádegas na frente e atrás da gente - bundinhas e bundões para todos os gostos". Diante desta descrição, não é exagero dizer que as letras de pagodaxé se assemelham a pequenas obras-primas.

PATRICIA CORNWELL ESCORREGA NOS CLICHÊS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em cinco de junho de 1999)

Apesar dos estereótipos, novo romance policial da autora mantém o leitor atento

Post-Mortem
, de Patricia Cornwell. Tradução de Celso Nogueira. Editora Companhia das Letras, 34 páginas, R$ 27


Há um crime que mesmo bons autores de histórias policiais costumam deixar impune: o estereótipo, vulgo lugar-comum. Por mais que se esforcem em criar tramas envolventes, personagens enigmáticos e uma linguagem original, há sempre o risco do previsível. Autora consagrada no gênero, Patrícia Cornwell até que sabe disso, e bem. Mas em “Post-Mortem” ela abre generoso espaço para o policial durão e cínico de sempre, que menospreza a eficiência profissional feminina, e a médica dedicada e fria, que vive para o trabalho, não tem muito jeito para homens e não suporta policiais durões e cínicos.

Um brinde se você adivinhou que os dois terão de trabalhar juntos. E outro se você descobriu que eles procuram um serial-killer, este personagem tão popular no cotidiano americano e infelizmente tão banal quanto o hambúrguer e a torta de maçã.

A obsessão pela pesquisa e pelos detalhes

A história, que se passa em Richmond, na Virgínia, tem bons momentos quando a autora dá prioridade aos encontros e desencontros da investigação policial, em vez dos excessivos detalhes da legista Kay Scarpetta, que não vão assustar um público acostumado a programas de TV escatológicos. Entre cortes incisivos, crânios expostos, secreções e suturas, a preocupação de Cornwell em mostrar que foi a fundo na rotina de trabalho de um necrotério revela uma obsessão semelhante a escritores como Michael Crichton, que se debruçam em exaustivas pesquisas para seus best-sellers e que podem variar tanto sobre dinossauros quanto bactérias espaciais.

A dificuldade em se obter pistas do homicida em série, que mata a quarta mulher em dois meses logo no início do livro, leva a doutora Scarpetta a um desencanto e pessimismo profundos em relação às pessoas – exceto sua sobrinha Lucy, uma complexada menina de 10 anos – e uma dificuldade em entender as incongruências da condição humana: “Mortes violentas são um espetáculo público”.

O único legista sentimental da história é homossexual. O procurador de que a doutora Scarpetta gosta é bruto na cama e cheio de mistérios. Isso sem falar em Pete Marino, o policial cínico e durão, que faz piadas com os corpos de mulheres mutiladas. Resta o maníaco, que é visto pela doutora com um misto de ódio e fascínio, já que, ao mesmo tempo em que analisa os estragos feitos nas vítimas, admira a forma como ele ludibria a polícia e estabelece um método para sua loucura: “Os psicopatas são os Rembrandts do homicídio”.

Com pessoas lidando com a morte e o medo o tempo todo, Patrícia Cornwell não aprofunda os perfis psicológicos que esboça tão bem e prefere optar pela praticidade óbvia das descrições técnicas. À medida que o livro se aproxima do final, no entanto, as pistas não se revelam nada previsíveis e os personagens ganham dinamismo, como se estivessem saindo de uma preguiçosa manhã de segunda-feira. A escritora mostra sua habilidade em resgatar fatos e suposições deixados lá para trás e que ganham agora um sentido no desfecho.

Psicopatas divididos em dois grupos

Há reflexões no livro que, se lidas com atenção, podem reformular conceitos e definições sobre criminosos. Como a do especialista em perfis psicológicos, Benton Wesley, que separa os psicopatas em dois grupos, o do mal, do qual fazem parte os “Neros e Hitlers”, e o do bem, que inclui “espiões formidáveis, heróis de guerra, generais de cinco estrelas, bilionários no comando de grandes corporações e James Bonds”.