quinta-feira, 6 de maio de 2010

OS ESPAÇOS DE PODER NO RIO DE JANEIRO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em três de abril de 2010)

Finalmente editado, estudo de Rachel Sisson mostra como três pontos da cidade definiram sua feição moderna

Espaço e poder - Os três centros do Rio de Janeiro, de Rachel Sisson. Editora Arco Produções, 147 páginas. R$ 50

Estudantes e profissionais de Arquitetura, História e disciplinas afins não precisam mais tirar cópias e mais cópias da monografia de Rachel Sisson. “Espaço e poder” finalmente está sendo lançado, numa edição ricamente ilustrada, trilíngue e que traz o selo, embora tardio, dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil, comemorados em 2008. Mas o que o livro desta arquiteta tem para despertar tanto interesse desde que foi concluída, em 1983, e publicada na Revista Municipal de Engenharia do Rio de Janeiro?

Basicamente a resposta está no argumento bastante original da pesquisa de Rachel, apesar de tanto livros já terem sido escritos sobre a evolução urbana do centro do Rio de Janeiro, da descida do extinto morro do Castelo para a várzea, do enfrentamento de pântanos, lagos, mangues e mosquitos, dos desmontes de morros e dos aterros, que afastaram o mar e deram outro perfil à região, que permanece até hoje.

Marcos na Praça XV, Campo
de Santana e Praça Floriano


A autora enfatiza o desenvolvimento de três “centros” dentro do centro do Rio de Janeiro como fundamentais para a evolução da região e a consolidação do seu perfil moderno. Segundo Rachel, a Praça XV de novembro, o Campo de Santana e a Praça Floriano foram os espaços onde (cada um no seu tempo) a cidade não apenas evoluiu de forma mais consistente e articulada, como também definiu os seus marcos de poder, tanto políticos quanto religiosos, culturais, econômicos e outros, que lhe deram uma identidade e uma memória.

Os termos específicos da arquitetura e do urbanismo - aqui explicados de forma bem leve - são indispensáveis para se entender todo este processo. Além dos marcos e de outros jargões empregados nestas áreas, um que chama bastante atenção é o conceito de “nó”, ou seja, um “ponto de confluência de caminhos”, para usar uma definição bem simplificada.

Assim, a Praça XV, antigo Largo do Carmo, marcou a fase em que a cidade começou a descer o morro do Castelo, primeiro núcleo importante de ocupação da cidade, e a se expandir pela chamada várzea, com seus diversos obstáculos naturais, formando suas primeiras ruas, a da Misericórdia e a Direita (atual 1º de março), e ligando os morros do Castelo e de São Bento, que junto com os de Santo Antônio (quase totalmente desmontado) e o da Conceição, formavam o "quadrilátero dos morros", onde residia a maior parte da população. A autora mostra também como a concepção dos marcos do Largo do Carmo e a sua configuração seguiram o modelo do Terreiro do Paço de Lisboa, que também iria inspirar outras construções portuguesas nas suas muitas colônias.

Já bem depois daquele período, o Campo de Santana, também chamado de Campo da Cidade, foi o ponto culminante da expansão leste-oeste, principalmente após a chegada da família real e a sua consequente instalação no Palácio de São Cristóvão, forçando a construção de praticamente outra cidade, a "cidade nova", que mantém o seu nome até hoje e está prestes a ganhar a sua estação de metrô.

Ao falar da Praça Floriano, na área conhecida popularmente como Cinelândia (embora já quase não existam mais cinemas por lá), Rachel apresenta o terceiro ponto de expansão do centro da cidade, desta vez em direção à zona sul e marcando o desenvolvimento daquela região, principalmente através da avenida Beira-Mar, a maior avenida litorânea do mundo quando foi construída (5,2 km de extensão), mas que hoje não só teve o seu trajeto bastante encurtado como ficou bem longe do mar após sucessivos aterros. Antes, ela ia do obelisco da avenida Rio Branco ao antigo Pavilhão Mourisco, na então tranquila e limpa praia de Botafogo.

A rica ilustração do livro inclui fotos de satélites com demarcações mostrando como era o Rio de Janeiro quando a cidade era o próprio centro, como enfatiza a autora. Assim, vemos detalhadamente a extensão dos morros desmontados, a localização de lagoas aterradas e a imensa área conquistada ao mar pelos aterros. Um retrato perdido no passado de uma cidade que se reconstrói a cada dia.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

QUEM MATOU ELZA?


Elza, a garota - Sérgio Rodrigues - Editora Nova Fronteira - 240 páginas - R$ 29,90

Para quem domina a ficção, é irresistível preencher uma pesquisa histórica cheia de lacunas com os ingredientes literários de uma narrativa inventada. É o que Sérgio Rodrigues faz diante da conturbada vida de Elvira Cupello Calônio, codinome Elza, comunista morta por comunistas num período em que se dizia que eles comiam criancinhas com batata. No caso de Elza, foi quase isso.

Namorada de Antônio Maciel Bonfim, o Miranda, secretário-geral do PCB, Elza foi presa junto com vários camaradas durante a fracassada Intentona Comunista de 1935, uma tentativa de golpe que só aumentou o poder de Getúlio Vargas, dando-lhe subsídios para a criação do Estado Novo, em 1937, e considerada pelo jornalista e escritor Zuenir Ventura no prefácio do livro “um dos maiores erros políticos já praticados pela esquerda em toda a sua história”.

Algumas semanas depois de solta, Elza foi enforcada com uma corda de varal no bairro carioca de Guadalupe (na jurisdição atual) pelos próprios comunistas, que a acusavam, junto com Miranda, de traição, e enterrada dentro de um saco de aniagem no quintal da casa. “É tão fácil matar quem está na clandestinidade!”

A própria idade de Elza é um mistério, oscilando entre 16 e 21 anos. Segundo os legistas que a examinaram, ela teria “um corpo em formação”, embora o processo do Tribunal de Segurança Nacional mencione 21 anos. O mesmo tribunal condenou Luiz Carlos Prestes, o grande nome do comunismo brasileiro, denominado “cavalheiro da esperança”, e mais seis pessoas a 30 anos de prisão pela morte de Elza. Todas estas penas foram suspensas pela anistia de 1945.

Prestes não teria participado da execução, mas a ordenado da prisão, o que configura mais uma capítulo polêmico de sua biografia, assim como, ao conquistar a liberdade, passou a apoiar Getúlio Vargas, o algoz de sua esposa Olga Benário Prestes, entregue, grávida, de mãos beijadas para ser morta num campo de concentração nazista.

O maior mérito de Sérgio Rodrigues neste livro é superar a difícil tensão entre ficção e realidade, que caminham lado a lado, disputando espaço e instigando o leitor a imaginar as peças que faltam neste quebra-cabeças polêmico, confuso e cruel. Assim, o autor conta de forma harmônica duas histórias paralelas: uma, a pesquisa baseada em documentos e entrevistas, e a outra, um quase monólogo do ex-comunista Xerxes, de mais de 90 anos, que teria conhecido Elza (até chegou a trocar beijos com ela), diante do jornalista Molina, contratado por Xerxes para escrever a sua história.

Na verdade, Sérgio Rodrigues parece usar a ficção para compensar a falta de informações confiáveis sobre a vida de Elza, que o levaram a vasculhar arquivos e descobrir, por exemplo, uma carta falsa escrita pelo temido Filinto Muller, chefe de polícia de Getúlio Vargas; a viajar a Sorocaba, terra natal de Elza, e a entrevistar pessoas que viveram e conheceram bem a época, mas que não lhe deram muitas certezas. Xerxes, provavelmente, simboliza o percurso de Sérgio nesta pesquisa: “O que todo mundo sabe sobre a Intentona é necas, xongas”.

Os dois personagens criados são bem interessantes e desenvolvidos com muita habilidade, já que o autor é bastante atento ao ambiente que os cerca, a sala do apartamento de Xerxes, na zona sul carioca, e também às interrupções, como alguma tosse, a chegada de Maria, a empregada, os devaneios do interlocutor, enfim, tudo que consiga dar um ritmo mais dinâmico a um, como já foi dito, quase monólogo.

O entrevistador, que quase não dá pitaco na história, é o típico jornalista de meia-idade frustrado, duro, morador de um pequeno apartamento decadente e cheio de livros, mas que tem o seu charme, uma namorada 20 anos mais nova e que lhe dá o suporte emocional que precisa. Fã incondicional da antiga série de TV “Além da imaginação”, Molina costuma dar longos passeios pelo Rio, apesar das intempéries que encontra pelo caminho, como o busto de Getúlio Vargas no bairro da Glória, bem em frente à casa da namorada e que surge como uma metáfora da história que ele pesquisa, “o emblema definitivo de todas as desproporções, aleijões e fealdades que a intervenção humana tinha infligido à paisagem natural daquela que um dia fora a mais bela cidade do mundo”.

Para Xerxes, comunista desencantado, “o filho-da-puta de extrema direita sabe que é um filho-da-puta”, mas o de esquerda, respondendo a uma pergunta de Molina, “se acha mais puro que São Francisco de Assis”. Suas revelações típicas de quem não conseguiu se adaptar a um mundo desprovido de sonhos acabam se revelando uma grande surpresa ao final do livro enquanto Elza, a garota, continua sendo um dos muitos cadáveres insepultos da História política brasileira.

AMIZADE DE OURO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 21 de março de 2009)

Livro reúne cartas de Machado de Assis a Mário de Alencar

“Empréstimo de ouro – Cartas de Machado de Assis a Mário de Alencar” – Organização, introdução e notas: Eduardo F. Coutinho e Teresa Cristina Meireles de Oliveira – Ouro sobre azul - 128 páginas – R$ 75

Ilustres desconhecidas para a geração do e-mail, as cartas eram o meio de comunicação mais utilizado no final do século XIX, entregues rapidamente por mensageiros – que muitas vezes aguardavam pacientemente a resposta. Machado de Assis as empregou muito bem, e em grande quantidade. Este livro, que ainda pega carona nas efemérides do centenário do grande escritor no ano passado, reúne 22 cartas enviadas por Machado a Mário de Alencar, filho de seu grande amigo, o escritor José de Alencar e recebido por Machado, já no final da vida, como “empréstimo de ouro”, para justificar o título.

As 22 cartas, escritas entre 1902 e 1908, ano de sua morte, não trazem lá muita coisa de interessante. São considerações banais, cumprimentos às famílias, encontros e desencontros e recomendações mútuas de saúde (“Se um enfermo pode mostrar a outro o espelho do seu próprio mal conseguirá alguma cousa”). Mas, levando-se em conta que estamos falando de uma pessoa que fez da rigorosa discrição um estilo de vida, não há como negar que a publicação destas missivas se justifica por encontrarmos, aqui e ali, pequenas pistas e detalhes da rotina de Machado na sua então solitária casa do Cosme Velho após a morte da esposa Carolina, em 1904, após quase 35 anos de um casamento feliz.

Assim, descobrimos que para disfarçar a solidão e a melancolia provocadas pela ausência da esposa e pelos problemas de saúde, o maior escritor brasileiro passava algumas noites a jogar paciência no seu sobrado da então silenciosa rua do Cosme Velho, trabalhava em excesso em casa (inclusive aos domingos) e sofria com alguns males, descritos ao amigo de forma detalhada, mas sem esquecer a ironia, sua marca registrada. “Falta de apetite, amargor de boca e recrudescimento do corisa. Um hospital, meu querido!”. Ou então algumas considerações sobre fatos determinantes de sua própria existência, como a ausência de filhos, que poderiam diminuir a solidão. “É o que sucede a quem os possui, para compensar a felicidade de os ter”, sobre um filho de Mário que estava doente.

Organizada pelos professores de Literatura Comparada da UFRJ Eduardo F. Coutinho e Teresa Cristina Meireles de Oliveira, a edição é ricamente ilustrada, com fotos raras do Rio Antigo, reproduções em fac-símile das cartas e uma produção gráfica impecável. Pela publicação das cartas originais, notamos que, à medida que o estado de saúde de Machado piorava, as cartas vão diminuindo consideravelmente de tamanho, abreviaturas surgem aqui e ali e a letra fica bem menos legível. “Vá relevando esta letra execrável, cada vez pior que a de costume”.

Sua preocupação com a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 e presidida por ele até a morte, era constante. Ainda sem sede própria, Machado ficava a par de tudo o que acontecia, dos novos candidatos, das atas, palestras, reivindicações etc. “A Academia pegou, como dizem alguns, e parece que sim.” Todos os nomes citados nas cartas merecem notas explicativas bem detalhadas, assim como ruas e logradouros do Rio, sempre citados por um escritor que amou sua cidade como poucos e adorava passear por ela. As últimas cartas revelam de forma profunda a tristeza de Machado, que já não tinha forças para “ir à cidade”, expressão que até hoje é usada por quem se dirige ao centro do Rio.

Machado viveu e morreu cercado de amigos, inclusive os da Academia. E não deixa de ser curioso notar que o escritor que criou personagens em sua grande maioria dissimulados, interesseiros e muitas vezes cruéis, tenha sido exatamente o oposto disso tudo, sempre solícito e gentil, incapaz de uma grosseria ou de incomodar os outros com seus problemas (como os de saúde, por exemplo, sempre um transtorno em sua vida). Nestas cartas, nas quais o carinho e a gentileza são as tônicas, como em toda a sua vasta correspondência, isto fica mais do que evidente. Apesar da grande tristeza pela morte de Carolina, “a dor que o dilacerou não o fez encerrar-se em si mesmo”, como diz Antonio Candido na apresentação.

Nas cartas, descobrimos também que Machado confiou a Mário a leitura de seu último livro, “Memorial de Aires”, antes da publicação. O livro é um diário do Conselheiro Aires, espécie de alter-ego do autor, e não faltou ao amigo mais novo a perspicaz observação de que Machado empregava todo o seu talento em pintar com cores belas e saudosistas sua Carolina na figura doce e honestíssima de Dona Carmo. Sem ter como recriar na realidade a felicidade da vida doméstica que viveu por quase 35 anos com sua amada mulher, Machado, como artista genial que era, a reviveu na ficção em seu último e comovente suspiro literário.

GUARDIÃO DE UMA UTOPIA PARTICULAR


Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura - Luciana Hidalgo - editora Annablume - 252 páginas - R$ 30,00

Afonso Henriques de Lima Barreto pagou um preço alto por viver deslocado numa sociedade de convenções, formalismos e fingimentos. Pagou com a própria vida, pode-se dizer assim, uma vida marcada por percalços de todo tipo e que culminaram com a pobreza, o alcoolismo, a internação como louco e, por fim, a morte prematura, em 1922, aos 41 anos de idade. O que a jornalista Luciana Hidalgo faz neste livro, conseqüência de uma tese de doutorado defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é mergulhar no deslocamento vivido por um escritor incompreendido no seu tempo e cuja obra permanece atualíssima exatamente porque as mazelas políticas e sociais denunciadas por ele, com coragem e sinceridade radicais, infelizmente continuam todas aí.

O ponto de partida do livro é o “Diário do hospício”, escrito por Lima Barreto quando ele esteve internado no Hospital Nacional dos Alienados, o primeiro hospício do país, inaugurado em 1852 por D. Pedro II e que hoje é a sede do campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Zona Sul do Rio de Janeiro. Lima esteve internado lá duas vezes. A primeira, em 1914, e a segunda em 1919/20, quando escreveu o diário. O motivo: delírios provocados pelo alcoolismo e que cessavam imediatamente assim que o escritor recuperava a sobriedade.

Era uma época em que os diagnósticos de insanidade primavam por argumentos para lá de bizarros, como comprova um estudo feito por Francisco Carlos da Fonseca Elia citado por Luciana: “(...) tanto a menstruação na mulher e as hemorróidas no homem seriam causas que muito teriam contribuído para a perda da razão na cidade do Rio de Janeiro”. O pesquisador também cita as causas morais, como emoções vivas, o terror ou o amor levado ao excesso ou contrariado.

No diário, que gerou o livro “Cemitério dos vivos”, Lima Barreto faz observações sobre a rotina do hospício, para ele muito mais um espaço onde o Estado abrigava parte do refugo social excluído da sociedade elegante da Belle Epoque carioca do que um local de tratamento. Ele expõe a sua revolta contra o Estado, a sociedade e contra si mesmo, frustrado, revoltado por não ter tido o reconhecimento literário que julgava (e merecia) ter recebido. “Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”.

A partir daí, Luciana desenvolve um profundo estudo teórico baseado em dois conceitos fundamentais, a escrita de si e a literatura de si, fundamentais para se entender não apenas a obra de Lima Barreto, este “guardião de uma utopia particular”, mas também a de autores de estilos bem diferentes, como Antonin Artaud, Fernando Pessoa e dos personagens já estudados por ela em livros anteriores, como o poeta curitibano Loriel (“A arte da urgência”, com Mônica Drummond. Cultural Office, Curitiba, 2006), e o artista plástico (mesmo sem o saber) Arthur Bispo do Rosário (“Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto”. Rocco, Rio de Janeiro, 1996), que lhe valeu o prêmio Jabuti.

Dona de um excelente texto, fugindo como pode dos habituais jargões acadêmicos, Luciana Hidalgo passeia por teorias literárias, artigos sobre a loucura, considerações sobre a política brasileira e a evolução urbana do Rio de Janeiro do início do século XX, além de outros temas, fazendo de seu livro (e aí sim, um jargão acadêmico) uma obra multidisciplinar. Lima Barreto, o personagem principal, é definido aqui como um a-intelectual/a-social, ou seja, um sujeito que não se enquadrou nos rígidos padrões vigentes no meio intelectual e social da época. Também por isso, ele sempre esteve em busca do a-lugar, o espaço onde poderia conseguir, talvez, a alforria do eu, para usar uma expressão da autora.

Infelizmente, como explica Luciana, este espaço Lima Barreto nunca encontrou. E o deslocamento que o acompanhou desde a infância, quando ele, um menino negro, pobre e morador do subúrbio, se interessava por literatura, se radicalizou a partir do primeiro livro, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, quando desancou toda a grande imprensa e passou a ser evitado nas rodinhas intelectuais.

Desta forma, a grande frustração de Lima Barreto, frustração esta intransponível e que o levaria ao alcoolismo e à decadência física, foi mesmo a falta de reconhecimento ao seu imenso talento literário, tanto da sociedade que ele tanto criticava (o que seria mais ou menos óbvio) quanto dos seus pares, negros ou mulatos, pobres e suburbanos como ele, que não liam (ou não sabiam ler) e permaneciam numa apatia e submissão revoltantes para o escritor diante da corrupção, dos problemas sociais e das arbitrariedades que ele tanto denunciava.

Ao usar conceitos como a escrita de si e a literatura de si, Luciana Hidalgo abriu um outro olhar sobre Lima Barreto, o “escritor do povo”, assim como a literatura da urgência, termo que dá título ao livro, foi a defesa e o ataque do escritor no seu momento mais crítico, o da internação, quando seu corpo passou a ser propiedade do Estado e ele só pôde contar com a pena e o papel para se manter “en garde”, como ela diz, contra tudo o que sofria.

Luciana demonstra, de forma clara, como a loucura, que também acometeu o pai de Lima Barreto, esteve sempre presente em sua obras, e em como o escritor misturou vida e ficção em personagens como Policarpo Quaresma, Leonardo Flores, Gonzaga de Sá e Vicente Mascarenhas, de “O cemitério dos vivos”. Na época, este tipo de literatura não foi absorvida, ou entendida, ainda mais exposta até as vísceras por um sujeito radical nas opiniões e que vivia bêbado e maltrapilho. Mas agora, com esta obra singular, Lima Barreto pode, ainda que tardiamente, ter encontrado um espaço singular, talvez o seu tão desejado a-lugar na literatura brasileira.

Luciana Hidalgo nasceu em 1965, no Rio de Janeiro . É doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), atualmente com Bolsa de Pós-Doutorado da Faperj, dando aula no curso de Letras da mesma universidade . É autora do livro Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto (Rocco, 1996/ Prêmio Jabuti , 1997), que foi recentemente adaptado para o cinema ( com roteiro de Luciana Hidalgo, Geraldo Motta e José Joffily) e será lançado em 2009. Formada em Comunicação Social , trabalhou como jornalista no suplemento literário Prosa & Verso , do jornal O Globo , e no Jornal do Brasil ( revista Programa e Caderno B), entre outros veículos . Dirigiu e editou a revista Gesto , publicação de ensaios sobre o tema corpo nas áreas de literatura , filosofia etc.

PODER PITORESCO NO CATETE


Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em nove de agosto de 2008)

Livro de Isabel Lustosa sobre episódios divertidos de presidentes ganha reedição

“Histórias de presidentes – A república no Catete (1897-1960) – Isabel Lustosa – Editora Agir – 296 páginas – R$ 39,90

Uma das recomendações da esposa do presidente Campos Sales, que estava saindo do poder, para a filha mais velha do novo presidente Rodrigues Alves era sobre a lavagem de roupa suja (literalmente) no Palácio do Catete, então sede do poder. D. Catita deveria “começar lavando a roupa fora até poder ajuizar por si mesma se convém fazer esse serviço em casa” e recebia a indicação de uma lavadeira muito séria, pontual e que “lava e engoma bem”.

O que parece uma amena conversa de comadres no distante ano de 1902 era, na verdade, uma importante recomendação na passagem do mais alto cargo do Brasil republicano, que de 1897 a 1960 foi representado no Palácio do Catete, na Zona Sul do Rio, tema do primeiro livro da historiadora Isabel Lustosa, lançado em 1989 para marcar os cem anos da república no país e que é relançado agora.

O que torna o texto leve e bastante espirituoso, apesar de a autora não descuidar do conteúdo, é que há bastante espaço para o acervo de revistas como “O Malho”, “D. Quixote”, “A bruxa” e “O tagarela”, nas quais nomes como Angelo Agostini, J. Carlos e Raul Pederneiras usaram seus inspirados bicos de pena para traduzir de forma divertida, criativa e muitas vezes acompanhada de rebuscamento literário a situação política do país. “O atual presidente é Prudente de Morais...uma pergunta ´prudente´: Demorais?”

No retrato que faz dos governantes que passaram pelo Catete, todos adornados com seus respectivos, e nem sempre respeitosos, apelidos, Isabel Lustosa, que também se valeu de muitos livros, jornais, marchinhas de Carnaval e depoimentos de outros historiadores, ressalta também o aspecto rigoroso de muitos desses presidentes no trato com o dinheiro público. O serviço doméstico, no palácio, durante um bom tempo foi custeado pelo presidente. Venceslau Brás, que governou o país de 1914 a 1918, pediu um corte de 50% no seu salário e conseguiu 20%. O mesmo Venceslau que tinha uma notória fama de pão-duro, tanto que ganhou do poeta Emílio de Meneses este “epitáfio em vida”: Morrendo verificou estarem dez velas acesas/Levantou-se, reclamou: Parcimônia nas despesas!”

O Palácio do Catete, que teria no suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, descrito com detalhes pela autora, seu momento mais trágico, vai deixar de ser o principal cenário do Brasil republicano em 21 de abril de 1960, quando Juscelino Kubitschek inaugura a nova capital, Brasília, e o Palácio do Planalto. JK, aliás, rompe o aspecto meio que provinciano de se governar do Palácio do Catete, já que inaugurou o “estilo aéreo” de governar e passou boa parte do seu mandato viajando pelo Brasil. Mas mesmo assim, quando estava no Catete, na hora do almoço, não deixava de pedir sua marmitinha da d. Etelvina com a simples e tradicional comida mineira. Mais caseiro que isso, impossível.

A autora acerta ao enfatizar situações que vão causar uma inevitável comparação com os dias atuais, em que o poder presidencial está longe demais do povo, tanto física quanto emocionalmente. “Não se juntarão mais diante dos portões os manifestantes, não sofrerá mais a ameaça dos canhões quando estourarem as revoltas”. Naquela época, o chefe de Estado ficava mesmo era no palácio despachando, de onde muitas vezes o povo podia vê-lo numa das suas muitas janelas e aos domingos encontrá-lo num passeio com a família pela Praia do Flamengo – ainda bem antes do aterro.

Desta forma, o livro acaba provando que, apesar das roupagens e dos cenários diferentes, o poder e seus representantes acabam se manifestando sempre da mesma forma. A maior prova disso é o lema do presidente Nilo Peçanha, em 1909? “Paz e amor”. Qualquer semelhança com o “lulinha paz e amor” do atual presidente, com certeza, não será mera coincidência.

ABBOTT, O MAIS BAIANO DOS INGLESES


(Publicado no caderno ´Prosa & Verso´, do jornal "O Globo", em 26 de abril de 2008)

A história do homem que se tornou figura central para a medicina no Brasil

O diário de Jonathas Abbott,
de Fernando Abbott Galvão. Editora Francisco Alves, 528 páginas. R$ 44

Jonatthas Abbott foi um personagem incomum no Brasil do século XIX. Inglês, de família pobre, chegou à Bahia com 16 anos fazendo o papel de groom (uma mistura de discípulo e serviçal) do cirurgião brasileiro José Álvares do Amaral, que logo percebeu a vocação do rapaz e lhe incentivou os estudos. Ao morrer em 1868, com 72 anos incompletos, na sua amada Bahia, após 32 anos como professor na Faculdade de Medicina e depois de ter recebido todos os títulos e honrarias possíveis, Abott foi considerado uma figura central no desenvolvimento da medicina brasileira.

O livro vai na contramão dos diários dos viajantes europeus que estiveram no Brasil do início do século XIX e retrataram a vida aqui de forma precisa, porém muitas vezes baseada apenas no pitoresco de um terra primitiva em relação à Europa. Abbot assume o papel contrário. Inglês apenas de nascença, adota o Brasil como sua verdadeira pátria e traça um retrato fiel dos países europeus que visita em 1930, quando vai fazer um curso de especialização cirúrgica. Da Inglaterra, por exemplo, suas observações não são nem um pouco elogiosas, com destaque para a epidemia de cólera-morbo e a falta de educação. "Que povo! Que gente! Que canalha desbocada! A bebedeira, miséria e a sem-vergonha andam aqui de mãos dadas".

A descrição precisa de procedimentos cirúrgicos numa época em que não havia a anestesia como conhecemos hoje e as sanguessugas ainda eram utilizadas normalmente para sangria dos pacientes - isto sem contar a quantidade de procedimentos que terminavam com a morte do paciente, como um parto – pode embrulhar alguns estômagos mais sensíveis, mas a narrativa de Abbott é tão natural e rica de observações inteligentes, trazendo muitas vezes considerações bem-humoradas do cotidiano, que acabamos nos envolvendo. Não nos esqueçamos de que ele era um médico e muitas vezes misturava a rotina do seu trabalho com atividades de lazer. "Morreu o meu amputado; vi dois amantes beijando-se no caminho do Unhão".

O livro foi organizado pelo trineto de Abott, o embaixador Fernando Abbott Galvão, que enriquece com notas explicativas as anotações da viagem à Europa no começo dos anos de 1830, inclusive tendo o cuidado de explicar os anglicismos utilizados por ele. Na outra parte do livro, Galvão parte para uma biografia bastante fluente de seu trisavô, inclusive citando o momento mais dramático de sua vida, o suicídio da filha Leopoldina, em 1835, fato que talvez explique o sumiço de muitas folhas do seu diário, “pois é forçoso admitir que o bem intencionado violador, em virtude de um preconceito hoje superado, tivesse pretendido escamotear um fato que lhe parecia desonroso”, como menciona no prefácio o também diplomata Rubens Ricupero. Também está ali mencionada a Revolta dos Malês, rebelião de escravos muçulmanos na Bahia, em 1835, na qual Abbott tratou de muitos feridos.

As viagens de navio, outro tormento para a época, são também descritas por Abott com realismo, embora muitas vezes ceda a voz à leveza de espírito. “A manteiga está dura, a carne de porco fresca já dura cinco dias sem sal e os percevejos morreram todos por não trazerem capotes: bem feito!” Dá para perceber que para um europeu já devidamente adaptado à vida baiana, o frio e a chuva europeus são uma tortura sem fim, principalmente quando há pouco dinheiro para a lenha e é preciso acordar cedo para aulas de anatomia.

Além das saudades do Brasil (“Já não sou infeliz, recebi doze cartas hoje”), Abbott lamenta profundamente as rebeliões de escravos na Bahia e as batalhas entre portugueses e brasileiros no período que antecedeu a renúncia de D. Pedro I, contemporâneas das revoluções de 1830 na Europa, das quais ele foi testemunha pessoal de algumas escaramuças.

Gosto pela cultura incomum para o seu tempo

Apesar de ter nascido em profunda pobreza, desenvolveu um gosto pela cultura incomum para o seu tempo. Entre uma amputação e uma dissecação, não deixava de assistir a peças e concertos, mas sua grande paixão realmente foi a pintura, tanto que sua valiosa pinacoteca, talvez a maior do Império, acabou constituindo o núcleo do Museu de Arte Sacra da Bahia. Sem dúvida, um homem incomum, que deixou marcada sua passagem pelo Brasil e pela cidade que tanto amou.

- FOTO: Faculdade de Medicina da Bahia

ZÉ LINS E O APRENDIZADO DA ESCRITA


Ligeiros traços - Escritos da juventude, de José Lins do Rego. Organização de César Braga-Pinto. Editora José Olympuo, 304 páginas. R$ 35

(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 12 de janeiro de 2008)

Obra com textos da juventude do autor mostra a evolução de seu estilo

Livros póstumos de escritos da juventude costumam ter duas características básicas: são úteis para se entender o processo de formação do escritor, mas ao mesmo tempo trazem muitos textos de pouco valor literário. É o que acontece neste livro organizado por César Braga-Pinto sobre os primeiros escritos de José Luis do Rego publicados entre 1919 e 1924, época em que o futuro autor de “Menino de engenho”, que em setembro completou 50 anos de morto, tinha entre 18 e 23 anos.

O livro é dividido em três blocos. No primeiro, são os artigos escritos por Zé Lins (que também está sendo homenageado no excelente documentário “O engenho de Zé Lins”, de Vladimir Carvalho) com 18 anos em jornais como a “Folha de Recife” e o “Diário do Estado”. Depois, quando já estava na Faculdade de Direito de Recife, entre 1920 e 1923, e por fim os artigos para a revista paraibana “Era Nova”, estes bem mais amadurecidos.

A linguagem empolada do primeiro bloco contrasta fortemente com a dos outros dois, e principalmente com as suas obras da fase adulta, quando o autor desenvolveu uma prosa simples e envolvente, baseada na memória e bastante descritiva de personagens típicos do nordeste do ciclo da cana de açúcar. Apesar dos temas não ajudarem muito, já que muitas vezes são bastante locais ou enfadonhos, já dá para perceber, aqui e ali, um pouco da dimensão que aquele garoto, ainda um pouco panfletário e virulento nas suas críticas, alcançaria.

A virulência, aliás, é freqüente nos textos. Entre as vítimas de Zé Lins está uma turma que faz parte do cânone literário deste país, como Euclides da Cunha, Aluísio de Azevedo e o grupo da Semana de arte moderna, de 1922, para ele um conjunto de “originalidades fáceis a custo de escândalo e ignorância”, responsável pela fundação do “pedantismo intelectual brasileiro”.

É interessante notar que em comparação aos paulistas de 1922, José Lins do Rego ressalta a importância do movimento modernista do Rio de Janeiro, que ultimamente vem sendo lembrado por pesquisadores e que nas crônicas do autor paraibano aparece muito bem representado no movimento “Árvore nova”, liderado por Tasso da Silveira e Rocha de Andrade.

Por outro lado, não há como negar o excesso de conservadorismo da maioria dos textos, traduzido na busca constante pela ordem e no apego à tradição, características que seriam ampliadas na amizade com o seu mestre Gilberto Freyre, e também um certo tom reacionário, como na crônica “A Paraíba e seus problemas”, quando escreve que Castro Alves “se gastou em apiedar-se de negros robustos que estavam tão bem nos servindo na escravidão”.

Quando diminui os excessos, Zé Lins é capaz de revelar-se um cronista em fase de amadurecimento, defendendo teses interessantes e passeando por temas distantes mas bem alinhavados num texto enxuto. Embora haja às vezes excesso de citações, comum em quem está começando a publicar em jornais, o autor desenvolve suas próprias opiniões com autoridade e bastante segurança, não hesitando em mudar de opinião com o tempo, como acontece com Coelho Neto e Rui Barbosa, que passa de “Davi imaginoso que tece hinos de glória ao trabalho nobilitante” (ainda no tom rebuscado dos 18 anos) ao homem que “pecara demais para um arrependimento fácil”, logo após a morte da “Águia de Haia”, em março de 1923.

O que se percebe também, mesmo nos primeiros textos, é uma característica fundamental do futuro escritor: o amor pela poesia popular. Basta ler o artigo “Morte de um trovador”, bastante saudosista, no qual o garoto de 18 anos lembra com a melancolia de um homem maduro, “despido da roupagem branca dos inocentes”, a vida de “João Passarinho”, personagem que vivia no engenho de seu avô que cantava e tocava no violão “notas artísticas de um sentimentalismo sublime”. João Passarinho perdeu o juízo, “dizem as más línguas que fôra a ingratidão de uma mulher”, e morreu de gripe espanhola, mas foi resgatado por Zé Lins não apenas nesta crônica como no seu romance “Fogo morto”.

Um dos melhores textos é o que ele dedica a Lima Barreto, em 1922, definindo o autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma” como “a maior vocação do nosso romance”, só inferior a Machado de Assis. Embora curto, o artigo é duro em relação aos opositores de Lima Barreto, um autor que combateu a hipocrisia e as formalidades de seu tempo, e que por isso não teve uma projeção à altura da sua obra. Como diria o então ainda muito jovem cronista José Lins do Rego, mas neste artigo já revelando boas doses de ironia, “os grandes escritores têm sua língua e os medíocres, a sua gramática” – comentário bastante atual, como a própria obra de Lima Barreto.

FÁBULA SOBRE O COTIDIANO



(Publicado no caderno ´Prosa & Verso´, do jornal ´O Globo´, em 24 de novembro de 2007)

Zusak conquista leitor com a história de um sujeito comum, entediado e boa praça

Eu sou o mensageiro , de Markus Zusak – Editora Intrínseca – 320 páginas – Tradução de Antônio E. de Moura Filho - R$ 39,90

Depois de “A menina que roubava livros”, sucesso estrondoso no mundo inteiro, o australiano Markus Zusak, que esteve presente na Bienal do Livro, volta às livrarias brasileiras com “Eu sou o mensageiro”, seu terceiro livro e escrito quatro anos antes de “A menina...”. Quem gostou de seu best-seller, não vai se decepcionar com esta fábula urbana sobre um sujeito que não consegue fazer nada direito e que recebe uma missão que vai mudar sua vida.

Ed Harris é um taxista, um sujeito comum, que tem “uma televisão que precisa de um tempinho para aquecer, um telefone que quase nunca toca e uma geladeira que fica fazendo um chiado que parece rádio fora de estação”. Além disso, na descrição minuciosa que o autor faz de seu protagonista, sabemos que ele se atrapalha com as mulheres, vive com um cachorro velho que adora tomar café, seu pai morreu de alcoolismo, a mãe o detesta e seu maior prazer é se reunir com os amigos para jogar baralho. Até que um dia ele dá uma de herói (ou anti-herói) num assalto a banco e logo em seguida recebe uma mensagem, escrita numa carta de baralho. E é aí que tudo muda.

Zusak pontua seu texto com frases curtas, que dão uma dinâmica à narrativa bem construída em torno do suspense das mensagens misteriosas e de quem as teria enviado. No início, o excesso de acontecimentos e de diálogos inusitados causa uma certa estranheza, mas com o tempo a fábula vai dominando a história e envolvendo o leitor. O autor mistura humor com momentos de sensibilidade e solidariedade, o que faz deste livro uma obra de um otimismo contido e agradável, embora a melancolia esteja sempre à espreita. “Ali está minha mãe, 50 anos na cara, andando pela cidade com um cara – enquanto eu estou aqui sentado, na flor de minha juventude, completamente sozinho.

Mas a empatia que Zusak consegue criar entre leitor e personagem é o seu maior mérito. Ed Harris é um homem comum, um personagem urbano solitário e entediado, mas gente boa, daquelas pessoas que não querem fazer mal a ninguém e que nunca conseguem dar a guinada, o passo à frente em suas vidas, acabando por se entregar à rotina. “Fiquei meio deprê ao pensar que um ser humano pudesse ser tão solitário a ponto de se consolar com a companhia de utensílios domésticos que apitam e de se sentar sozinho pra comer”.

Já deu para perceber que, assim como em “A menina que roubava livros”, por trás do humor, do inusitado e de uma certa leveza há profundos questionamentos nos livros deste autor. Se lá era a Morte que contava a História, aqui o protagonista não apenas muda a vida das pessoas, mas ele próprio vai se transformando em algo melhor, mesmo que de uma forma confusa. Sem querer passar nenhuma mensagem do tipo “moral da história”, Zusak nos faz enxergar o óbvio de que o auto-conhecimento é a primeira condição para darmos um passo à frente. E muitas vezes esse auto-conhecimento só surge quando buscamos um outro tipo de relação com o outro, quando saímos da poltrona em frente à TV, da comida artificial requentada no microondas e da rotina enfadonha.

No caso de Ed Harris, sua vida depende muito dos amigos fiéis, pessoas como ele, que se refugiam em pequenos prazeres, não têm muito dinheiro nem planos mirabolantes para a vida, que está “toda estruturada neste beco sem saída e sem futuro”. Mas as cartas mostram que está na hora de enfrentar tudo, mesmo sem saber o quê nem como. Oportunidade é a palavra-chave desta história, o momento em que ela passa, espera um pouco e se não for aproveitada vai embora sem bilhete de despedida nem promessa de voltar.

As mensagens nas cartas trazem missões para ele cumprir e adiantar o teor delas seria tirar um dos grandes prazeres deste livro. Não há nada, no entanto, próximo daquelas tramas mirabolantes repletas de um suspense artificial e de final previsível. Como disse, é uma fábula, e portanto é bom estar preparado para o inusitado. Afinal, não há quem não queira uma pequena ajuda externa para dar um rumo em suas vidas, seja de uma fada madrinha ou de um anjo torto como Ed Harris.

MALDIÇÃO IMPERIAL



(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo" de três de novembro 2007)


Mary Del Priore conta a vida trágica do príncipe que tentou ser Dom Pedro III

O príncipe maldito, de Mary Del Priore. Editora Objetiva, 312 páginas. R$ 36,90.

Uma das teorias mais interessantes no estudo da História é a especulação baseada na teoria do ´se´. Entre as mais divulgadas está a de como seria o mundo se Hitler tivesse vencido a guerra. Aqui no Brasil, muitos imaginam também como seria o país se os comunistas tivessem tomado o poder nos anos 60, em vez dos militares. Este livro trata de um outro ´se´ cheio de significados simbólicos dentro da História do Brasil: e se, em vez da república, D. Pedro III assumisse e desse continuidade ao Império brasileiro?

Muitas tramas para suceder o avô como imperador

A pesquisadora Mary Del Priore já deu grande contribuição ao estudo da História e da formação da sociedade brasileira com a sua coleção “História da vida privada no Brasil”, indispensável a quem quiser ao menos começar a tentar entender hábitos e costumes seculares do nosso povo. Aqui, ela descreve a vida do “príncipe maldito” utilizando a narrativa do romance histórico, o que torna a leitura bastante agradável, mesmo com tantos nomes, datas e informações e, o que é muito importante para situar o leitor, contextualizações históricas.

Mas quem era D. Pedro III e por que a alcunha de maldito? Na verdade, como se sabe, Pedro Augusto jamais chegou a ser D. Pedro III e mesmo que o império ainda existisse quando seu avô D. Pedro II morreu, em 1891, exilado em Paris, a primeira da linha sucessória seria sua tia, a princesa Isabel, e depois seus dois filhos. Pedro Augusto era o filho de Leopoldina, irmã mais nova de Isabel e já falecida. Mas Pedro tramou, e tramou muito para assumir o poder quando o avô, já debilitado há muitos anos, morresse. E é desta trama repleta de intrigas que trata a maior parte deste livro.

Por ter nascido antes dos filhos da tia Isabel e do seu marido, o Conde d´Eu, Pedro Augusto, descendente da dinastia dos Saxe e Coburgo, da Bélgica, sempre foi visto como aquele que iria chegar lá. Recebeu uma educação privilegiada, da mesma forma que o avô, e realmente era visto, pelos amigos do império mas também por abolicionistas e republicanos, como a pessoa talhada para assumir o império quando o avô morresse. A princesa Isabel era considerada uma pessoa sem preparo para assumir o poder e o Conde d´Eu era detestado, principalmente pelos militares.

Nos intervalos entre os dramas familiares e as crises políticas, a autora nos entretém com detalhadas descrições da geografia carioca da época, bem diferente da atual após tantos aterros e desmontes de morros, e também com detalhes pitorescos e por isso mesmo mais próximos da vida comum e que nunca encontramos nos livros didáticos. “Foi a primeira a demonstrar que não se provava virgindade em mulher enfiando um ovo vagina adentro”. A linguagem íntima retratando o que acontecia dentro dos aposentos imperiais passa longe do tom formal dos documentos oficiais, como na correspondência trocada entre as princesas Isabel e Leopoldina, ainda muito jovens, e que continham expressões como “Almirante de merda”, referindo-se ao vice-almirante Joaquim Raimundo, ou a perguntas do tipo: “Você se borrou com as pastilhas de chocolate”?, este “borrou” no sentido escatológico mesmo.

Se D. Pedro II às vezes é criticado por uma indecisão na hora em que é preciso tomar uma atitude, a autora enaltece outras qualidades do monarca já mencionadas por outros pesquisadores, como o completo respeito à liberdade de imprensa, a honestidade e a lisura em relação ao dinheiro público e, principalmente, o amor ao Brasil e ao seu povo, que por sua vez adorava o imperador e a princesa Isabel. A cena do exílio da família real, embarcada em plena madrugada, “lembrava um cortejo fúnebre” e é descrita de forma extremamente emocionante.

Dom Pedro II nunca quis um banho de sangue em seu nome

Se a corrida sucessória e as intrigas que a cercavam tomam a maior parte do livro, Mary Del Priore também dedica um generoso espaço ao momento seguinte à Proclamação da República, feita à revelia do povo (“...a rua do Ouvidor não se banhou em sangue, não se cobriu de barricadas, não se envolveu no fumo das batalhas!”) e que propiciou o surgimento do movimento monarquista, já que muita gente importante que apoiou a república agora se arrependia diante dos desmandos do novo governo. Se (novamente ele) D. Pedro II tivesse resistido, é bem provável que o povo e também os militares que apoiavam o imperador tivesse reagido. Mas D. Pedro II nunca quis um banho de sangue em seu nome.

E o príncipe Pedro Augusto, personagem principal de um livro repleto de personagens importantes? Seu destino, obviamente, não pode nem deve ser revelado aqui, mas o leitor já vai imaginando um desenlace trágico através de diversas pistas deixadas pela autora ao longo do texto. E fica a certeza de que aqueles momentos dramáticos e cruciais da História do Brasil, como a abolição, de papel fundamental no desfecho dramático da narrativa, repercutem até os dias de hoje.

LEDA, DE ROBERTO POMPEU DE TOLEDO



“Leda” – Roberto Pompeu de Toledo – Editora Objetiva – 184 páginas – R$ 27,90

A obsessão do professor de literatura Adolfo Lemoleme é escrever a biografia do escritor Bernardo Dopolobo, autor de obra extensa e original, aclamado pela crítica e querido pelo público. Mas o que a princípio parecia ser apenas o resultado da admiração do leitor pelo seu autor preferido toma outros rumos e entra pela estrada da obsessão, pontuada por atalhos nada éticos e louváveis.

“Tão importante quanto a obra, para conhecimento pleno de um artista, é entender-lhe a vida”. Esta é a grande questão do primeiro romance do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, articulista da revista “Veja” e que teve a idéia desta trama após ler uma reportagem em que um biógrafo dizia, após tanto trabalho de pesquisa, que conhecia o biografado (um autor inglês) mais do que o próprio.

O personagem de Roberto, Adolfo Lemoleme, leva a sério sua missão durante sete anos e resolve não apenas estudar a vida do biografado, mas também percorrer seus mesmos caminhos para tornar o trabalho cada vez mais próximo da realidade. Chega a ir ao Afeganistão, cenário de um dos livros de Dopolobo, e tenta recriar uma batalha testemunhada pelo escritor, mas a partir do ponto em que suas personalidades começam a se confundir é que o biografado, até então levando tudo num tom bem-humorado, vai perceber que algo mais sério vem pela frente.

Nos momentos de dúvida, Lemoleme recorria às sessões de análise com o doutor Carlos Nochebuena, que só existia na sua fantasia e funcionava como uma segunda voz, a interpelá-lo e muitas vezes lhe dirigir severas críticas. Da mesma forma seu orientador, o professor Spielverderber, que também só existe na imaginação de Lemoleme, promove com ele discussões muito interessantes sobre o valor da biografia como forma de se entender os pensamentos e sensações do biografado. “Escrever uma biografia equivale a cultivar uma horta no deserto. Não há como duplicar um ser humano. Toda biografia é uma fraude”.

Quando a biografia é, enfim, lançada, todo esse processo de mistura de personalidades atinge o auge. Os papéis se invertem e o biografado começa a estudar a vida do biógrafo, mas seria tirar muito do prazer da leitura antecipar o que acontece. Digo apenas que a ironia passa a ditar a história a partir daí, numa narrativa bastante crativa e original, mas que indica um possível conflito à medida em que o biógrafo começa a receber louros maiores do que o biografado, incorporando para si fatos que pertencem à vida de Bernardo Dopolobo, entre eles o de namorar sua ex-mulher.

A vida de Adolfo Lemoleme acaba se tornando tão interessante quando à de Bernardo Dopolobo, mostrando que mesmo a trajetória das pessoas mais comuns têm o seu valor literário, dependendo de quem a conta e da forma como ela é narrada. O seu interesse em estudar os grandes mestres é uma verdadeira lição de esforço e humildade. Lemoleme, que era carteiro, retardava a entrega dos livros encomendados pelo intelectual local, um farmacêutico, para poder entrar “num universo que o arrebatou de modo intenso e definitivo”. Foi assim que ele descobriu os livros de Bernardo Dopolobo e se envolveu definitivamente na obra e depois na vida do autor.

Outro detalhe interessante na vida de Adolfo Lemoleme é a sua fase como dublador de filmes indianos, quando a sincronia dos lábios dos atores com os do dublador não era lá um detalhe muito importante para o distribuidor. “Às vezes o ator já fechara a boca e a voz ainda soava, deixando sensação igual à de um automóvel que avançasse sozinho, e só depois seguissem as rodas”. Isso sem contar os erros de tradução, como no caso de um personagem que se dizia o próprio sogro. Após a reclamação de Lemoleme, sempre cioso de seu ofício, o distribuidor coça a cabeça, olha o relógio e diz: “Vai assim mesmo”.

São detalhes como estes, singelos e bem-humorados, que dão a leveza deste livro, que trata de um tema porém bem mais denso: a liberdade que uma pessoa tem de entrar na vida de um ídolo e até que ponto a história de uma vida realmente contém a essência da pessoa “investigada”. E é através de Leda, tão querida do público, “a mais pura personagem da galeria de Bernardo Dopolobo”, que este dilema terá seu símbolo máximo e um trágico desenlace.

UMA MURALHA NO MEIO DO CAMINHO



(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 22 de setembro de 2007)

Ressentimentos e incompreensões definem personagens de Menalton Braff

A muralha de Adriano, de Menalton Braff. Editora Bertrand Brasil, 368 páginas. R$ 49

André Luis Mansur


É bem provável que “As muralhas de Adriano” acabe parando em prateleiras de História Geral de muitas livrarias (as muralhas de Adriano foram construídas no século II pelo imperador romano Adriano para proteger a Inglaterra dos escoceses e são citadas num momento crucial do livro). O título realmente engana, mas, como o próprio autor diz, “é história em que as personagens envolvem-se em conflitos quase sempre originados por algum tipo de muralha”, seja ela individual ou social.

Vencedor do Jabuti em 2000 com o livro de contos “À sombra do Cipreste”, o gaúcho Menalton Braff concentra a trama de seu romance em torno de poderosa rede de supermercados Boacompra, dirigida pelo autoritário Tiago da Cunha Medeiros, “conhecido por suas imoralidades públicas e privadas”.

Braff constrói sua trama sem seguir ordem cronológica, dando aos personagens principais a chance de contar a história sob os seus próprios ângulos. É um mosaico de execução arriscada, mas o autor o faz tão bem que a narrativa acaba ganhando uma vitalidade que se mantém até o final, ainda mais que ele trata a língua portuguesa com profundo respeito: “Minha mãe, com olhos disfarçados em doçura, atravessou a cortina e adivinhou-me, sem dúvida portadora de mágoa me maior do que eu mesma”.

Tiago, Mateus, Lúcia, Anselmo e Verônica são os personagens principais de uma trama basicamente familiar, repleta de preconceitos, inveja, amor reprimido, ambição e saudade. O autor, como um artesão dedicado e detalhista, vai dosando os sentimentos entre eles, centralizando tudo na relação entre os irmãos Tiago e Mateus, um estudante de História que não quer assumir sua parte nos negócios da rede de supermercados e prefere ir estudar na Inglaterra.

Há necessidades constantes de acertos de contas entre os personagens, nem sempre realizáveis, o que gera frustrações irremediáveis. “Ninguém se revela inteiro e de uma só vez”. A falta de comunicação, a vontade de dizer e engolir as palavras, tudo vai se acumulando num ambiente de ressentimentos mal-disfarçados, o quase-silêncio constrangedor em que “só se ouviam os ruídos de maxilares em movimento e talheres tilintando contra porcelana”.

A ambição de Anselmo, “uma dessa pessoas é cuja existência é em permanente expansão”, torna-se a mola-mestra da história. Sujeito pobre, vai ganhar espaço de poder e riqueza, primeiro como líder estudantil na época do impeachment do Collor, depois como parlamentar e em seguida como alto funcionário do Boacompra. “Meus tios não eram ricos, mas nossa pobreza insultava a família, que muitas vezes tivera de socorrer a mim e mamãe”. O amor pela mãe e a compreensão de seu esforço em melhorar de vida são os atenuantes sentimentais, e talvez atenuantes, de uma vida completamente direcionada para a ambição.

O romance se articula principalmente no dilema entre buscar o sonho ou se adaptar à vida prática, personificados na rivalidade entre os irmãos. Tiago, o comerciante ríspido e autoritário, que detesta o irmão porque ele preferiu seguir o seu sonho de estudar História na Inglaterra e abrir mão de tudo, simboliza a vida competitiva, o estresse diário com as contas, os impostos e as preocupações e acaba se identificando muito mais com Anselmo, marido de sua filha Verônica e um “nobre deputado” que pode ajudá-lo nos meandros do poder.

A muralha de Adriano que dá título ao livro é um artigo de Mateus, o primeiro dele a ser publicado em jornal, e é um primor de avaliação da falta de liberdade e de um mundo que teoricamente quer romper as barreiras, as muralhas. “Globalização para quem? Estamos enredados em barreiras diáfanas, que sentimos sem ver (...)”. No meio disso tudo, o prazer, “um caminho em ziguezague”, da mesma forma que a narrativa deste livro, que no entanto parece atingir o seu objetivo como uma linha reta sem nenhum tipo de obstáculo.

NOVO ROTH NÃO VAI ALÉM DA RANHETICE



(Publicado no caderno "Prosa & Verso", no dia oito de setembro de 2007)

Falta profundidade a “Homem comum”, narrativa marcada pelo desespero

Homem comum, de Philip Roth. Tradução de Paulo Henriques Britto. Editora Companhia das Letras, 131 pgs. R$ 31

André Luis Mansur

Um dos principais escritores americanos da atualidade, Philip Roth mergulha, em seu novo livro, num ambiente melancólico e depressivo, com idas e vidas entre passado e presente dentro de uma narrativa na qual a única ordem parece existir apenas na incapacidade de ser feliz do tal “homem comum” do título.

Depois de Zuckerman e Portnoy, Roth agora recorre a um alter-ego sem nome. Assim como o autor, seu protagonista não-nomeado nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1933, e colocou cinco pontes de safena. O personagem é obcecado por doença e morte esde que foi operado de apendicite aguda na infância e viu um menino morrer ao seu lado. Materialista ferrenho, publicitário de sucesso e pintor nas horas vagas, ele teme a morte de forma tão obsessiva que acaba travando a narrativa com suas excessivas referências a ela. Durante o livro acabamos aprendendo os pormenores de stents, estenores, pontes de safena e angiogramas, todos presentes nas cirurgias cardíacas a que o personagem é submetido, que talvez tivessem mais interesse num livro de medicina.

Roth acerta a mão ao enfatizar a profundidade do amor entre alguns membros da família. No caso, o seu pai, o irmão (Howie) e a filha Nancy, estes últimos os dois verdadeiros amigos de toda a vida. Mas o autor, infelizmente, prefere não se aprofundar nesses momentos. Quando seu protagonista, por exemplo, resolve chamar a filha com seus gêmeos para morar com ele, já temos três tragédias na página seguinte: a mãe de Nancy tem um derrame; o ex-chefe morre de ataque cardíaco e dois amigos estão doentes, um de câncer e outro internado com depressão.

Nancy e Howie são personagens de potencial não explorado. A capacidade dos dois extrair da vida algo de bom, mesmo diante do sofrimento, contrasta com o pessimismo do “homem comum”. Os momentos em que Howie relata a infância dos dois irmãos na joalheria do pai são de um lirismo profundo, reflexões que provocam identificação e afinidade, duas palavrinhas que conquistam qualquer leitor. “Mas por que não lembrar? O que é que tem derramar mais um litro de lágrimas, entre familiares e amigos?”

Por outro lado, os dois filhos do primeiro casamento do “homem comum” eram tão unidos “quanto irremediavelmente rompidos com o pai”, um personagem que vai deixando pela vida amores perdidos, afetos incompletos e amizades esquecidas, entrando num isolamento que o faz sentir medo até daquilo que para os artistas é sinônimo de inspiração. “A abundância de estrelas lhe dizia de modo inequívoco que ele estava fadado a morrer”.

Roth cria assim uma narrativa na qual o único objetivo da vida, segundo uma reflexão de seu personagem, é “encontrar coisas para dizer que pudessem animar os desesperançados e fazê-los recuar da beira do abismo”. Nos momentos de desespero mais profundo, o personagem chega a invejar o irmão por nunca ter tido uma doença séria e estar sempre pronto a ajudar os outros a saírem de situações difíceis. As frases pessimistas estão por todos os lados, pontuando um livro de “auto-derrota”, se existisse tal segmento literário: “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre”.

É claro que Philip Roth tem todo o direito de escrever um livro neste tom, com um personagem que só vê tristeza e sofrimento por todos os lugares. Grande obras-primas já foram escritas dentro da mesma temática, mas todas tinham uma profundidade emocional e às vezes um embasamento filosófico que davam uma qualidade essencial a essas obras. Não é o que acontece aqui. O “homem comum” contagia o livro de tal forma com sua falta de interesse pela vida que o enredo também se torna comum, um mero exercício de mau-humor e desespero de um sujeito que chega à velhice sem encontrar nada que tenha realmente valido a pena.

UM RIO DE CORAÇÃO JUDEU



(Publicado no caderno ´Prosa & Verso´, do jornal "O Globo", edição de 11 de agosto de 2007)

Obra conta história de imigrantes na Praça Onze em época de mudanças

Paisagem estrangeira - Memórias de um bairro judeu no Rio de Janeiro, de Fania Fridman. Editora Casa da Palavra, 144 páginas. R$ 29,00

André Luis Mansur

Autora de um dos melhores livros sobre a ocupação do espaço físico no Rio de Janeiro e o desenvolvimento da cidade (“Donos do Rio em nome do Rei”, Jorge Zahar Editor), a pesquisadora Fania Fridman apresenta agora um retrato extremamente minucioso da imigração judia no Rio, concentrada principalmente em um bairro da famosa Praça Onze, no coração da cidade.

O texto didático, porém de grande leveza, começa por uma breve história dos judeus, desde bem antes de Cristo até a perseguição sofrida no leste da Europa na virada do século XIX para o XX, quando grandes massas de judeus imigraram para o Brasil. Depois, Fania Fridman faz um panorama da transformação urbanística sofrida pelo centro do Rio neste período, quando a inauguração da avenida Presidente Vargas deu praticamente o contorno atual da região. Num livro ricamente ilustrado, uma das fotos que mais impressionam é a que mostra a área densamente povoada do trecho onde ficaria a avenida. Tudo demolido e sem nenhuma indenização para os moradores.

O incentivo à imigração em geral foi muito forte após a abolição da escravidão, em 1888, e num dos gráficos do livro vemos que em 1904 o Rio tinha 30% de estrangeiros, a maioria portugueses, mas havia também grande número de espanhóis, italianos, turcos, sírios e libaneses, que se concentravam na “Turquia Pequena”, região situada nos arredores da rua da Alfândega. Até hoje aquela área, conhecida como Saara, é dominada por descendentes desses imigrantes e constitui uma das principais concentrações do comércio varejista da cidade. É importante ressaltar que sírios e libaneses eram invarialmente chamados de turcos porque seus países faziam parte do Império turco-otomano na época da imigração.

O interessante deste livro é que a autora, sem descuidar da parte técnica e mais acadêmica, reserva generosos espaços a detalhes que poderiam passar despercebidos mas que para ela simbolizam aspectos marcantes, não apenas da vida daquela comunidade, mas também da paisagem urbana da cidade. Um desses aspectos narrados por ela é o da venda de porta em porta, “klienteltshik” na língua ídiche, atividade que empregava 30% dos judeus sem ocupação definida e que ainda permanece bem atual (não mais com predomínio deles), principalmente nos subúrbios da cidade.

A prostituição também é outro tema abordado com profundidade por Fania. Afinal quem não ouviu falar nas famosas polacas, prostitutas do leste europeu, na maioria de origem judia? “Com a falsa promessa de casamento, muitas foram trazidas para as Américas e já prostituídas durante a viagem de navio”. Os próprios judeus formaram associações de amparo às jovens pobres para evitar que elas se tornassem vítimas dos aliciadores, mas mesmo assim a prostituição se expandiu numa área que ia da Praça Tiradentes até depois da Marquês de Sapucaí.

As leis se tornaram mais rígidas contra este tipo de prática, como a Lei do Gordo, de 1907, que combatia a figura do agenciador e dono de prostíbulos, e a Lei de 1927, que tornava o explorador de prostitutas passível de expulsão sumária. Caso famoso foi a deportação do polonês B.Goldberg, conhecido como o “rei dos cáftens”.

Mas se até então o bairro judeu pôde se desenvolver de forma relativamente livre, a política, naquele período em que ideologias e “ismos” de diversos tipos ainda eram capazes de provocar guerras mundiais, iria mudar a situação. A presença cada vez maior de comunistas e anarquistas entre os imigrantes mudou o olhar das autoridades, culminando com o Estado Novo de Getúlio Vargas, quando a perseguição da polícia política e a restrição da imigração tornariam a vida no bairro judeu um inferno.

Nunca é demais lembrar que antes da aproximação com os norte-americanos o governo Vargas era extremamente simpático à Alemanha nazista, vide a deportação de Olga Prestes em 1936. “O anti-semitismo recebeu, por parte dos órgãos de repressão, uma faceta política, pois a correlação entre comunismo e judaísmo tornou-se recorrente para eles.”

Com o fim do bairro, atropelado pela avenida Presidente Vargas, começaria a peregrinação dos judeus pela cidade, com grande concentração em bairros da Zona Sul e também em alguns do subúrbio, como em Madureira. Hoje, os judeus, assim como os demais imigrantes, não estão mais confinados a um bairro e sim totalmente integrados a uma cidade que enfim percebeu sua natureza cosmopolita.

SOMOS TODOS IGUAIS NESTA NOITE, DE MARCELO MOUTINHO


"Somos todos iguais nesta noite" - Marcelo Moutinho - Editora Rocco - 128 páginas - R$ 19,00

“Não sei porque vivo com essa mania de recordação, recordação...lembrança até quando é boa, dói”, afirma a personagem de “Desfile”, um dos contos do ótimo livro do jovem escritor Marcelo Moutinho, uma das boas revelações da literatura feita no Rio de Janeiro nos últimos anos.

Marcelo já havia publicado “Memórias dos barcos” (“7Letras”, em 2001) e organizado e participado de algumas coletâneas. Criado no subúrbio carioca de Madureira, “entre a Carvalho de Souza e a Dagmar da Fonseca”, coração do bairro, o autor, que hoje mora no Jardim Botânico, zona sul do Rio, faz da saudade do subúrbio um dos seus temas preferidos nos dois livros. Sem ser piegas, ele mostra o que a região tem de melhor, mesmo nos tempos violentos e estressantes de hoje.

Sua visão, quase sempre, é a da criança, e neste caso ele desenvolve ao máximo o lado lúdico da infância, o mundo todo próprio que as crianças constroem e que hoje, com tanto apelo à falta de ingenuidade, vai se perdendo. Isso acontece em “Jujuba verde”, “Dia de festa”, “Noites” e no conto que abre o livro, “Passeio em família”, quando a estréia do carro novo do pai vira uma grande festa. Um pequeno trauma dá o toque dramático à história, recheada de observações singulares sobre o pai. “Eu não podia entender como podia preferir cerveja, aquela bebida amarga, a churros.”

“Dedicatórias” traz uma estrutura toda especial, na qual um relacionamento amoroso é contado através das dedicatórias dos livros que os namorados trocam entre si. Mário Quintana, Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e outros escritores acabam assumindo o papel de coadjuvantes neste conto em que o autor mostra que para ser criativo e original não é preciso desenvolver “inovações” de caráter altamente duvidoso, como escrever parágrafos inteiros sem pontuação ou apenas com letras minúsculas. Outra estrutura interessante se encontra no conto “Desfile”, em que os prazos apertados de uma costureira de escola de samba são narrados em capítulo nomeados pelas alas de uma escola.

O conto que dá título ao livro (que também é uma música de Ivan Lins e Vitor Martins) se passa numa mesa de bar, este ambiente perfeito para se observar caracteres e criar personagens. “Quem senta nos bancos ao redor do balcão de um bar é sempre a solidão”. Entre figuras decadentes e solitárias, está o Rapaz, que quase não fala, toma oito long-necks todas as noites e desperta a curiosidade dos freqüentadores, que um dia resolvem segui-lo após a saída do bar. O que eles descobrem não tem nada de extravagante, mas é profundamente revelador – como nos demais contos do autor, que em nenhum momento seguem a linha da grande revelação no final.

“Rosa noturna”, que mostra a rotina de um travesti no bairro da Glória, destoa um pouco dos outros contos, mas nem por isso perde a qualidade. A ânsia de Teresa em “ganhar a noite” e pagar as dívidas é o mergulho numa vida de imprevistos arriscados. A linguagem é explícita, porém longe de ser chula, mesmo quando entra em detalhes impregnados nos quartos de hotel. “Faço de tudo, amor. Menos beijar na boca”. A surpresa positiva com um cliente dá o toque redentor àquela vida difícil. “Hora de ir para casa: a noite estava ganha”.

Entre diversos minicontos que sempre trazem algum momento de reflexão (“Ignoravam que chorar é um fato, não uma opção”), a história que melhor sintetiza o estilo de Marcelo Moutinho, a meu ver, é “Da profundeza do azul”, em que o autor narra a despedida do trabalho de um funcionário prestes a se aposentar. “A velhice chega assim, sem aviso, sem fanfarras, sem eventos, num olhar banal lançado ao espelho do banheiro para conferir a barba antes de sair”. A euforia do início dá lugar à melancolia do final, quando um pequeno espelho no meio de uma selva de pedra cheia de antenas parabólicas, roupas dependuras e aparelhos de ar-refrigerado reflete um mínimo de vida.

O TEXTO, OU: A VIDA, DE MOACYR SCLIAR


Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 22 de junho de 2007 - versão online)

O texto, ou: a vida, de Moacyr Scliar - Editora Bertrand Brasil, 272 páginas. R$ 39

Aos 70 anos e pouco mais de 70 livros publicados, Moacyr Scliar nos apresenta neste perfil autobiográfico não "apenas" a história de sua vida, mas também um amplo painel que inclui discussões literárias, religiosas e filosóficas, com direito a contos e trechos de livros para ilustrar as passagens de uma trajetória que começou na Rússia, quando a família, perseguida pela intolerância e pelo preconceito contra os judeus, veio parar no Rio Grande do Sul, onde Scliar nasceu, em 23 de março de 1937.

O autor começa dedicando um bom espaço aos contos de fadas e às narrativas populares, procurando explicar, através de teóricos como Vladimir Propp, o significado psicológico e a mitologia presentes nas histórias que sua mãe contava. Nada, porém, excessivamente teórico. A construção do mito é encaixada aqui no folclore brasileiro, que tanto o entusiasmou (e assustou) na infância, com personagens como o saci pererê, a cuca e o negrinho do pastoreio.

Da mesma forma, a imaginação era estimulada pela produção de brinquedos na oficina do tio, solução da falta de dinheiro - obstáculo para as lojas mais caras. O trabalho com as mãos, ensina Scliar, é um ótimo antídoto contra a arrogância intelectual. Deve ser por isso que Paulinho da Viola, um dos artistas brasileiros que mais cultuam a simplicidade, é um exímio marceneiro.

A infância pobre é lembrada também pelos "causos" contados pelos peões gaúchos no galpão, após um dia de trabalho no campo, comendo churrasco e tomando chimarrão. "Quanto à casa propriamente dita, era precária - o assoalho cedia ao passo, ratos disputavam corridas no forro -, e minúscula". As dificuldades da vida, no entanto, em nenhum momento são vistas com amargura ou rancor. O que dá para perceber é que o garoto que se tornaria o grande escritor que é hoje soube tirar daquele primeiro momento mais difícil material para uma atividade para a qual ele nem desconfiava que tinha vocação.

A pobreza, por exemplo, não foi empecilho para uma descoberta muito especial. "Apesar disto nunca me faltou dinheiro para livros", um gosto estimulado pela mãe, que o levava à tradicional Livraria do Globo, onde Scliar conheceu os livros de seu autor preferido na época, Monteiro Lobato, e o Thesouro da juventude, uma enciclopédia infanto-juvenil que abriu a porta da literatura para muitos futuros grandes escritores.

Já o futuro do menino que, com o tempo, passou a ver o livro como a "porta para o mundo imaginário que eu habitei durante grande parte da minha infância", estava dividido entre a medicina e a literatura. Os motivos que o levaram a se tornar médico também merecem um capítulo à parte. Entre eles, o medo de ficar doente, que o levou a ler livros sobre medicina e doença desde cedo, e o papel de destaque da medicina na tradição judaica, uma profissão que "dependia de conhecimento, e conhecimento o médico levava consigo, caso tivesse de deixar precipitadamente um país, o que não era raro entre judeus".

O primeiro contato com um cadáver, ainda na faculdade, rendeu o conto repleto de ironias "Pequena história de um cadáver", publicado neste livro. Mas o que a medicina proporcionou mesmo a Scliar foi o contato com o sofrimento e a realidade social do país, "a abordagem da doença como um problema coletivo, social", fundamental na sua formação literária. "Eu entrava em lúgubres casebres que abrigavam famílias inteiras, homens e mulheres doentes, crianças famélicas. Não era de admirar que muitos de nós estivéssemos engajados politicamente".

Seu primeiro livro, "Histórias de um médico em formação" (1962), rendeu a princípio muitas caras feias na gráfica onde o livro foi impresso. "Os operários já estavam até irritados com o escritorzinho que não parava de lhes encher o saco". De lá até chegar nesta biografia, ele enumera alguns dos seus principais livros, como "O exército de um homem só" (1973), "O centauro no jardim" (1980) e "Os vendilhões do Templo (2006), além do espaço generoso da crônica na sua vida profissional e das influências, como a de Erico Verissimo, Jorge Amado e, principalmente, Clarice Lispector, cuja obra foi apresentada a ele pelo primo Carlos Scliar, um dos grandes artistas plásticos brasileiros do século XX. Clarice, também refugiada como os Scliar, o deixou boquiaberto com o conto "A galinha". "Mas aquele texto...Deus, aquele texto era algo. Eu não imaginava que alguém pudesse escrever com tamanha profundidade".

Talvez este pequeno livro não seja ainda a biografia que Moacyr Scliar merece, mas sem dúvida é um livro fundamental para se entender e conhecer este que é hoje um dos maiores escritores vivos do Brasil. Na verdade, Scliar escreve muito mais um livro sobre literatura e sobre as dificuldades de se tornar escritor, usando a si mesmo como exemplo, uma vida repleta de lances dramáticos e também bem-humorados, ou seja, um enredo excelente para um grande romance. Afinal, "para isto servem as palavras, para estabelecer laços entre pessoas - e para criar beleza".

O MENINO AMERICANO, DE ANDREW TAYLOR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 25 de maio de 2007)

O menino americano, de Andrew Taylor. Tradução de Fabiano Morais. Editora Objetiva, 504 páginas. R$ 54,90

O inglês Andrew Taylor constrói em torno da infância do escritor americano Edgar Allan Poe uma envolvente trama de mistério e suspense. Mas Poe não é apenas um personagem do livro de Taylor, o tal "menino americano" do título. Ele é o próprio livro, pois o autor mergulha no sombrio universo do escritor que sabia lidar com o medo e as emoções humanas de forma bastante profunda e fez da sua própria vida um grande mistério, que se acentuou mais ainda com o seu desaparecimento perto da morte.

O personagem principal, no entanto, não é o menino americano, e sim o seu professor, Tom Shield, um sujeito sem muitas ambições, ferido na guerra. Ele vai dar aulas na prestigiada escola do sr. Bransby, perto de Londres no início do século XIX. Além de Poe, ele será preceptor de Charles Frant (um menino estranhamente parecido com Poe), porta de entrada para uma família na qual vai se envolver de forma definitiva "em direção ao coração negro de um labirinto, até o lar de segredos terríveis e do pior dos crimes".

Shield acaba se vendo envolvido por duas mulheres, Sophie Frant, mãe de Charles, e sua prima, Flora Carswall, numa relação de sensualidade bastante velada e sutil. A aparição de Flora numa janela tem a força de um strip-tease para Shield, um homem completamente deslocado de seu meio: "Não há nada pior do que ficar escutando sozinho o som das outras pessoas se divertindo reunidas". A suposta morte de Henry Frant, marido de Sophie, abre o leque de muitos mistérios da trama, tendo como parâmetro o autoritário Stephen Carswall, um homem que apesar de velho e doente, segundo a descrição de Shield, tinha o poder de fazer uma pessoa se sentir menos importante do que de fato era.

A vida de Shield vai sendo conduzida como se fizesse realmente parte de um plano traçado. "Um homem acredita na Providência porque, de outra forma, teria de ver a vida como uma coisa arbitrária, conduzida pelas regras caprichosas do acaso, tão fora do seu controle quanto o rolar dos dados ou a composição de uma mão de cartas". Sua resignação, apesar de irritante em alguns momentos, é um elemento de tensão fundamental para se entender a ruptura que acontece em sua vida a partir da metade do livro.

Taylor consegue ambientar muito bem o seu romance, fruto de longas e exaustivas pesquisas de época. Aliás, uma época de palmatórias, rapés, perucas empoeiradas, muita formalidade, nevoeiros espessos e heranças, como a que Shield recebe da tia. Pouca coisa, mas suficiente para lhe dar o mínimo de estabilidade num mundo em que o trabalho era visto como algo desonroso para quem não tinha sangue azul. "A riqueza pode não trazer felicidade, mas ao menos tem o poder de afastar algumas das causas da tristeza. E faz um homem sentir que ele tem um lugar no mundo".

O estilo de Taylor é um caso à parte. Ele fez uma ampla pesquisa sobre a sociedade britânica da época e sobre a vida de Edgar Allan Poe, que realmente estudou numa escola britânica quando criança. Vários fatos narrados no livro remetem a dados biográficos do escritor e à sua obra, como a referência ao corvo do famoso poema. Taylor sempre termina seus capítulos com uma pontinha de suspense, o que o assemelha muito a alguns autores best-sellers americanos, embora com muito mais profundidade na descrição de ambientes e caracteres e nas profundas observações sobre o comportamento humano.

Se até a metade do livro sua trama se assemelha muito aos romances de Jane Austen, autora de clássicos como "Emma" e "Razão e sensibilidade" (já adaptados com sucesso para o cinema), no segundo o estilo varia para uma trama policial americana, com o detalhamento das tramóias financeiras de Carswall e uma série de reviravoltas cheias de suspense e violência.

Detalhes mórbidos, para entrar no clima de Poe, acabam roubando a cena e deixam de lado todo o clima que Taylor criou para seu Tom Shield, que tentava se equilibrar entre tantas convenções e no amor contido pelas duas mulheres que o envolviam cada vez mais. Mas se não fosse assim, não seria uma homenagem à altura de Edgar Allan Poe, que foi para muitos o verdadeiro fundador da literatura norte-americana.

SEM PROMESSAS VAGAS DE FELICIDADE


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 21 de abril de 2007)

Romance faz auto-ajuda pelo avesso com protagonista que enfrenta a solidão

Este livro vai salvar sua vida, de A.M. Homes. Tradução de Santiago Nazarian. Editora Nova Fronteira, 445 pgs. R$ 39,90

O filão dos livros de auto-­ajuda parece inesgotá­vel, com livros e auto­res (na maioria ameri­canos) cada vez mais numero­sos. A julgar pelo título, "Este livro vai salvar sua vida" pode­ria se enquadrar neste grupo. Mas o que a autora americana A. H. Homes faz é exatamente ironizar este tipo de literatura, de uma forma bem sutil.

Um dos melhores persona­gens do filme "Pequena Miss Sunshine" é vivido por Greg Kin­near através do seu personagem Richard, que dá palestras sobre auto-ajuda num tal método dos nove passos, que não con­vence nem sua própria família. É uma temática parecida com a deste livro, ou seja, a familia de­sagregada se une de forma atabalhoada, mas baseada simples­mente no carinho que desco­brem sentir uns pelo outros.

O que A. M. Homes mostra, através de um ricaço (também chamado Richard) que se des­cobre completamente solitário, é que para se ajudar não são precisos métodos, regras, pas­sos, mas simplesmente dar atenção às pessoas por perto. Quando ele vai parar num hospital, logo no inicio do livro, cheio de dores, e a enfermeira pergunta para quem pode ligar, Richard simplesmente não sabe. "Não precisava de ninguém, não conhecia nin­guém, não era parte da vida de ninguém".

Sua ex-mulher, de quem também está com­pletamente dis­tante, dirige uma editora de livros de auto-ajuda, "li­vros que ensi­nam a viver, o que fazer de acordo com seu signo, tipo san­güíneo ou cor". É o gancho da autora para criti­car a dependência que os americanos têm de tentar encon­trar a felicidade de forma prag­mática e objetiva.

O mais interessante é que não há nenhum rancor ou ironia agressiva - a autora simples­mente mostra a transformação de Richard em direção a uma vi­da que deveria ter levado e nun­ca levou. No final, o leitor per­cebe que as coisas podem ser realmente mais simples, como o receituário dos livros de auto-­ajuda ensina, mas sem a necessidade da parafernália quase re­ligiosa deles.

Um humor contido domina a história, pois Ri­chard, como um calouro em felicidade, começa a fazer tudo de forma exagerada e provoca situa­ções hilárias, co­mo sua relação com o Anhil, o sujeito da loja de donuts, ou Cynthia, que conhe­ce no mercado. Sua busca por um retiro para meditar e assistir a palestras, quase que uma obsessão em Los Angeles, tam­bém é recheada de momentos espirituosos.

Mesmo situações simples tra­zem uma grande carga de com­plexidade, como no momento em que Richard, que trabalha com investimentos financeiros, se vê diante dos quatro jornais diários que costuma ler e se pergunta - "Talvez devesse cancelar dois; o que alguém faz com quatro jornais?". Richard se vê num mundo de excesso de informação inútil, de alimentos saudáveis sem sabor e de relações frias e distantes.

A relação com a família é um caso à parte. Richard descobre que o filho, os pais, a ex-mulher e o irmão e sua família se encontram freqüentemente, um mundo do qual nunca participou. A cratera que se forma em frente a sua casa e que o obriga a se mudar é a metáfora perfeita da sue situação - ou muda seu estilo de vida ou será engolido pela angústia e pela depressão.

Por mais leve e bem-humorado que seja, o livro traz a amargura e a tristeza dos anos perdidos, do abismo entre Richard e as pessoas próximas. O caminho para superar tudo isso, como a autora demonstra, é complica­do e cheio de contratempos. Se­ria muito bom se os livros de auto-ajuda fossem como este, sem promessas vagas de felici­dade, frases de efeito ou méto­dos pragmáticos.

FORMAÇÃO DE UM BANDIDO NA PROSA DE BUNKER


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em três de março de 2007)

Escritor que viveu 18 anos atrás das grades escrever sobre o crime

O menino, de Edward Bunker. Tradução de Francisco R.S. Inocêncio. Editora Barracuda, 432 páginas. R$ 45

Edward Bunker mostra em "O Menino" como se forma um autêntico ban­dido, com todos os seus inevitáveis ritos de passagem. Apesar de a história se passar nos anos 30, o tema permanece atual no complexo equilíbrio en­tre reeducar e punir. "A instituição era ao mesmo tempo circo e zoológico, uma multidão de insanos atirados na luz do dia por dois acres emparedados".

Quem leu "Educação de um bandido", autobiografia de Bunker lançada pela mesma editora, vai perceber que a ficção de "O menino" tem tudo a ver com a vida real de Bunker, um escritor que conheceu de perto a rotina das instituições punitivas. Lançado em 1980 nos Estados Uni­dos, é o terceiro romance deste escritor nascido em Hollywood em 1933 e morto em 2005. Viveu 18 anos (divididos em três pe­ríodos) atrás das grades.

Embora fora de moda em muitos lugares, o estudo ainda é, tanto para o menino Alex Hammond quanto para Edward Bunker, a grande chance de redenção para quem acabou enve­redando por caminhos para lá de enviesados. "Eu prefiro ler a qualquer outra coisa. É como se eu estivesse em outro mundo", afirma Alex, dono de um Q.I. altíssimo, num dos raros momen­tos do livro em que não está brigando ou envolvido em alguma confusão. Bunker também leu muito, especialmente Dostoiévski, influência marcante em sua obra. Seu personagem apro­veita qualquer momento para ler, mesmo nos buracos fétidos das solitárias, para onde constantemente era levado.

Solidão é o tema
principal do livro


O autor descreve de forma bem detalhada os ambientes e perfis físicos e psicológicos, fun­damentais para se entender a trajetória de Alex, que em mui­tos momentos quer realmente endireitar sua vida, mas a primeira injustiça (e foram muitas) dentro das instituições faz ex­plodir o seu temperamento. Com o tempo ele aprende a bo­xear, a usar facas e a desferir ataques de surpresa, quase um manual de sobrevivência dentro daqueles ambientes.

Bunker é um autor realista, ele escreve sobre o que viveu e consegue passar de uma forma artística toda a dureza de sua vi­da - uma tradição da literatura de seu país. Nomes como Ernest Hemingway, John Steinbeck e Norman Mailer, por exemplo, souberam traduzir para a ficção a realidade de momentos dra­máticos como a Grande Depres­são e a Segunda Guerra Mundial e acaba­ram influenciando de forma decisiva outros escritores.

"O menino" é, essencialmen­te, um livro sobre a solidão. Alex tem apenas o magro e desgasta­do pai, com a pele avermelhada e curtida pelo álcool e o traba­lho sob o sol. O único parente do qual ele se lembra é de uma tia com a qual não tem nenhuma afinidade. Resta a amizade das ruas, dos desajustados iguais a ele, com seus códigos de ética muito próprios, que proíbem a delação e recomendam o "olho por olho" diante de provo­cações e ataques físicos.

Este livro deve ser lido não apenas como entretenimento. Educadores, psicólogos ou qual­quer pessoa que lide com jo­vens em situações de risco com certeza vão entender um pouco melhor o modo de vida deles, mesmo a trama se passando na sociedade americana dos anos 30, tão distante no tempo e no espaço da nossa realidade. Pois nos bons livros, como são os de Edward Bunker, a única coisa que envelhece é o papel.