sexta-feira, 28 de agosto de 2009

DE ALLAN POE A MARK TWAIN, A BOA QUALIDADE DOS CONTOS AMERICANOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 19 de maio de 2001)

Clássicos trazem tramas diversas no estilo condensado que exige muita técnica

América - Clássicos do conto norte-americano
, de vários autores. Tradução e introdução: Celso M. Paciornik. Editora Iluminura, 256 pgs. R$ 39

Do sinistro Edgar Allan Poe ao sarcástico Mark Twain, passando pelos “aventureiros” Herman Melville e Jack London, os clássicos do conto norte-americano primam não apenas pela qualidade e concisão dos textos, mas também pela diversidade. Se há histórias passadas em fazendas do Kentucky ou nos campos minados da Guerra Civil, contos como “O gato preto”, de Poe, poderiam ser escritos em qualquer língua ou lugar. E causar o mesmo impacto.

“Tirei um canivete do bolso do colete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e deliberadamente arranquei-lhe um dos olhos de sua órbita!” Além do conto, Poe é citado também na ótima introdução de Celso M. Paciornik como o primeiro a desenvolver uma importante teoria sobre a estrutura do conto, estilo surgido numa época em que o homem era forçado a escolher “o curto, o condensado, o resumido em lugar do volumoso”.

Textos vão do século
XIX ao início do XX


A época citada: o início do século XIX, quando a expansão econômica americana trazia embutida os valores burgueses do incentivo ao consumo e do crescimento industrial. O livro trata dos autores dessa fase até o início do século XX, um período no qual não apenas o padrão de vida americano se impõe, mas também a literatura do país ganha a maioridade e reduz a influência inglesa através de autores como Mark Twain, Nathaniel Hawthorne, Herman Melville e Sherwood Anderson, cujo conto “Quero saber por que” traz a frase que melhor resume o que é a criação de uma literatura com a “cara do país”: “Nada cheira melhor do que café, e esterco, e cavalos, e negros, e bacon fritando, e cachimbos sendo fumados numa manhã daquelas”.

Melville, um dos autores mais injustiçados da literatura, já que seu épico “Moby Dick” só ganhou fama bem depois de sua morte, surge aqui com o maior conto do livro, “Benito Cereno”, o impressionante perfil psicológico do atormentado capitão espanhol de um navio que perde mais da metade da tripulação após uma tempestade. O texto sofisticado, a luta contra as forças da natureza e a própria constatação de como o homem é inferior diante delas vêm acompanhadas de uma profunda compaixão pelo destino humano, que se revela em observações sutis sobre a solidariedade e o companheirismo dos homens do mar, dos quais o próprio autor era um. “Em exércitos, navios, cidades ou família – na própria natureza – nada enfraquece mais a boa ordem do que a miséria”.

A leitura deste livro pode ser útil também para aqueles que consideram o conto um estilo interior, talvez pela concisão e tamanho do texto ou alguma outra razão. Basta ler “A volta do soldado”, de Hamlin Garland, para constatar que suas 16 páginas deram uma contribuição à literatura americana muito maior do que, por exemplo, as milhares escritas pela prolífica romancista Danielle Steel.

Ótimas notas biográficas,
mas uma revisão malfeita


O livro, que também conta com oportunas notas biográficas no final, poderia ter uma revisão mais cuidadosa, não apenas pela qualidade do texto como também pelo capricho na edição. Há diversas palavras truncadas, erros de concordância e a ausência de algumas preposições. Já a escolha dos autores, como é ressaltado pela introdução, teve como premissa básica a diversidade. E neste ponto foi bem feliz, já que além dos escritores citados, traz gente do porte de Edith Warthon e Henry James.

Mas como toda escolha é arbitrária, talvez houvesse espaço para algum dos contos de O. Henry, escritor surgido no final do século XIX e que se envolveu em vários escândalos, chegando a ficar preso três anos. Seus contos, que começaram a ser escritos na prisão e na maioria se passam na cosmopolita Nova York, poderiam contribuir para a diversidade do livro. Aliás, um outro volume seria bem-vindo, agora com contistas do século XX, entre eles Hemingway e Fitzgerald. Afinal, em publicações deste nível, qualidade e quantidade podem andar de mãos dadas sem se estranharem.