terça-feira, 14 de outubro de 2008

AS HISTÓRIAS DA HISTÓRIA REFLETIDAS NA MEMÓRIA DE UM REPÓRTER À MODA ANTIGA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em três de abril de 1999)

Em livro póstumo, Edmar Morel conta em sua vida a trajetória da imprensa

Histórias de um repórter
, de Edmar Morel. Editora Record. 290 páginas. R$ 26

Há um outro Brasil, surpreendente e quase desconhecido, residindo nas entrelinhas históricas, naquele espaço que nunca é preenchido pelos livros didáticos. Para saber que país é este, tão injusto e cheio de desigualdades quanto o oficial, é preciso conhecer histórias como as que o repórter cearense Edmar Morel contou alguns anos antes de morrer, em 1989, um dia antes das eleições diretas pelas quais ele tanto lutou. Nascido em 1912, numa Fortaleza com “o pior serviço de bondes do mundo”, Morel esteve perto de tudo e de quase todos que foram notícia neste tumultuado século, não só no Brasil, mas em cenários dramáticos como a Europa devastada do pós-guerra, o barril de pólvora do Oriente Médio e...os campos de concentração do Paraguai.

A Segunda Guerra Mundial
vista pelos brasileiros


Para quem ainda acha que as práticas nazistas eram exclusivas de algumas bestas humanas, o último item incomoda. Tanto quanto a “beliscada”, situação em que homens, mulheres, velhos e crianças disputavam com cães e porcos os restos de comida na base aérea norte-americana em Pernambuco, durante a Segunda Guerra Mundial. Assim como o voto de cabresto, a truculência policial, o clientelismo e muita, mas muita corrupção – tudo narrado com a autoridade de quem esteve lá – a procura do almoço no lixo é mais uma prova de que a História neste país se repete com a regularidade dos chavões, tipo “celeiro do mundo”, “país do futuro” e outros menos votados.

Falando em Segunda Guerra Mundial, é curioso saber como repercutiu por aqui o famoso dia D, carnificina tão bem registrada no filme “O resgate do soldado Ryan” e que foi anunciada pela rádio Tupi, na madrugada do dia 6 de junho de 1944, com o chamado: “Brasileiros! Atenção!” A Tupi, na época, fazia parte dos “Diários Associados”, do poderoso Assis Chateaubriand e onde Morel trabalhava, nos jornais do grupo. Ele fala desse período, iniciado ainda no primeiro governo Vargas, em 1930, com muita amargura, e não esconde sua aversão ao caudilho gaúcho e aos crimes cometidos em sua ditadura. “Falam de 1964 e esquecem 1935”, referindo-se aos presos políticos. Morel lembra que os simpatizantes do nazismo tinham presença forte no Estado Novo, citando, entre outros, o general Góis Monteiro e o violento Filinto Muller, o chefe da Polícia Especial, uma versão tropical da famigerada SS de Hitler.

Morel, é claro, também fala de jornais, e muito. Quem não consegue imaginar uma grande redação hoje sem internet, notícias em tempo real e toneladas de releases, vai se deliciar com o método “pré-histórico” de se divulgar uma notícia importante até que saísse a próxima edição do jornal. Uma forte sirene tocava, atraindo a atenção das pessoas para um quadro-negro, afixado à porta do jornal, e onde se lia a notícia. Era este o método utilizado pelo “Jornal do Brasil”, primeiro emprego de Morel ao chegar ao Rio, em 1932, após uma viagem na terceira classe de um navio, entre bodes, vacas e um chão repleto de urina e vômito. Durou pouco tempo no jornal, cuidando de uma seção de obituários e demitido após uma briga em frente ao prédio em que trabalhava.

Texto conciso reflete a melhor
forma do estilo jornalístico


A partir daí, ele passou pelos principais jornais do país e conta como se desenvolveu a imprensa brasileira, em veículos como os já citados “Diários Associados”, “Última Hora”, “Tribuna da Imprensa”, uma série de jornais alternativos, sempre atacados pela repressão, e o GLOBO, jornal no qual Morel afirmou ter “aprendido a importância do furo, notícia de primeira mão”.

Ilustrado com fotos de Orson Welles, Getúlio Vargas (com cara de poucos amigos), coronel Valério (o guerrilheiro que fuzilou Mussolini), e outras figuras históricas, o livro tem um texto “enxuto”, para utilizar um jargão jornalístico, ou seja, claro, objetivo, com parágrafos curtos e sem firulas, apenas um ou outro superlativo, como “o maior chefe de reportagem do mundo” ou o “imbatível coronel Euclides Figueiredo”. A história narrada pelo jornalista Edmar Morel se confunde com a de todos os migrantes que chegam à cidade grande, munidos apenas com a esperança e tão bem retratados no livro pelo jornalista Barbosa Lima Sobrinho: “É sempre um cordão umbilical que se corta e uma saudade que nasce, para nunca mais morrer”.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

A COMPLEXA VIAGEM DE GORE VIDAL PELOS VASTOS CORREDORES DA HISTÓRIA AMERICANA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em seis de março de 1999)

´Fundação Smithsonian´ exibe a habitual ironia do escritor ao tratar de política

Fundação Smithsonian
, de Gore Vidal. Tradução de Roberto Grey. Editora Rocco, 272 páginas. R$ 25

Em seu 24º romance, o escritor americano Gore Vidal viaja mais uma vez pela História de seu país, um terreno que conhece como poucos. O percurso, que se revela bastante acidentado, tem início na Fundação Smithsonian, o maior conjunto de museus do mundo. É lá, no coração de Washington D.C., que o estudante T., de 13 anos, mergulha num universo para lá de sobrenatural, com bonecos de cera ganhando vida e a possibilidade de se voltar no tempo. Vidal esbanja ironia ao dar vida a antigos presidentes, quase todos retratados como energúmenos, e suas assanhadas primeiras-damas, num cotidiano que faria Bill Clinton corar de vergonha, ou de inveja.

O ano é 1939, às vésperas do maior conflito de todos os tempos. Tudo se torna relativo, inclusive a própria certeza da guerra, quando T., um pequeno gênio que visualiza os efeitos práticos de qualquer equação de física quântica, entra na Fundação numa sexta-feira santa. "Se a História reside nos detalhes, então é impossível haver História, pois quem poderia conhecer esses detalhes sem ter estado lá de fato?" T. vai conhecê-los de perto, ansioso por evitar uma guerra e apaixonado por uma índia Squaw que ele conheceu na Mostra dos Primeiros Índios e que lhe tirou a virgindade.

A manipulação de peças no
quebra-cabeças da História


A confusão começa quando T. percebe que pode estar em vários lugares e épocas simultaneamente, da mesma forma que os ilustres mortos expostos no museu. Assim, ele continua na escola de St. Albans, enquanto permanece na Fundação, desenvolvendo estudos para a bomba atômica e influenciando nomes como Einstein, Oppenheimer e Charles Lindbergh. T. Fica mais confuso quando descobre uma cópia sua, feita de cera e prestes a entrar em exposição, na farda de um fuzileiro naval que será morto na guerra. A Squaw pela qual ele está apaixonado também assume, no passado, o papel de primeira-dama do presidente Grover Cleveland. "Você não é o mesmo eu que encontrei há alguns minutos, nem eu sou aquele que eu era".

Mas se a trama é complexa, também é fascinante a possibilidade de se mexer no quebra-cabeças da História, trocando peças essenciais e vendo qual é o resultado. O garoto até que consegue, auxiliado, é claro, pela vasta imaginação de Gore Vidal quando o objetivo é ironizar os políticos de seu país. T. e Squaw evitam que Woodrow Wilson seja eleito presidente e, assim, os EUA não entram na Primeira Guerra Mundial, que termina em 1916.

Sem o nazismo e o rancor dos derrotados, sem Hitler, que na verdade é um arquiteto judeu amigo de Einstein, a Europa, com Leon Trotsky na presidência da União Soviética, fica calma. Mas T., com sua cabeça genial para fórmulas e um desejo ardente pela paz, não pôde pensar em tudo. E se esqueceu do Japão. O ataque a Pearl Harbor é realizado, um ano mais cedo e mais violento, sobrando uma bomba até para a Califórnia. O Japão e seu imperialismo precisam ser combatidos. Com isso, o cogumelo atômico brilha com mais intensidade nos visores das máquinas operadas por T. na Fundação.

O final otimista, com toda a simbologia da Páscoa e da ressurreiçao, não esconde a profunda questão existencialista que se infiltra pelas críticas e ironias políticas: "Na verdade, nada há de mais doce neta vida para o homem do que vir a conhecer e salvar a si mesmo".

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A PAIXÃO DE UM ESTUDANTE POR UM ESPELHO DE FOUCAULT


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de fevereiro de 1999)

Escritora recria em personagem o filósofo francês rebelde, iconoclasta e sem limites que fascinava os alunos

Alucinando Foucault
, de Patricia Duncker. Tradução de Duda Machado. Editora 34, 192 páginas. R$ 22

Se Patricia Duncker acredita no escritor francês Paul Michel, ela trabalhou em sua premiada história com "o desespero dos condenados". Pois para seu principal personagem, que também afirma serem os escritores, de um modo ou de outro, malucos, este é o estado em que se encontra um autor durante seu primeiro romance. Participante ativo dos movimentos estudantis de 1968, homossexual e internado num hospício, Michel fala de loucura, sexo, crime e morte, numa linguagem próxima da utilizada por seu xará mais famoso, e também sua grande paixão, Foucault.

"Você capta a matéria da história, eu capto a substância crua do sentimento", diz ele a seu mestre, numa carta que nunca foi entregue, detalhe que não interessa, já que a premissa básica é a de que "o amor entre um escritor e um leitor nunca é celebrado".

Autora consegue escapar das
armadilhas da arrogância


O narrador da história, um jovem estudante de Cambridge, não concorda muito com essa teoria. Prestes a desenvolver uma tese sobre Paul Michel, ele parte em busca de seu escritor, internado há anos num hospício da França. Quem o convence é a namorada, uma estudante prática e intimidativa, personagem tão bem desenvolvida quanto o pai bissexual, um rebelde dos anos 60 e que usa um avental com o lema "O porco chauvinista de hoje será o bacon de amanhã". Neste ponto, Patricia, uma professora nascida nas Antilhas e que ensina teoria literária na Inglaterra, consegue evitar as armadilhas da arrogância que envolvem boa parte das histórias sobre intelectuais franceses, principalmente pela originalidade de sua trama, uma aproximação entre autor e leitor que vai bem além das noites de autógrafos.

Para a escritora, essa relação acaba invariavelmente na cama. O bom humor e sutileza que ela esbanja por todo o livro esbarram na linguagem para lá de grosseira, usada para narrar as cenas de amor entre Paul Michel e o tal estudante, chamado de petit pelo escritor. O fascínio que vai cativar qualquer um que tenha seu escritor predileto se esvai rapidamente e chega a ser patética a situação do estudante, cuja paixão desesperadora encobre as belas intenções do início e leva a uma profusão de frases e gestos infelizes. Apaixonado por um homem com o dobro da sua idade, encrenqueiro, fumante inveterado, michê nas horas vagas e que gosta de brincar com a morte, a razão e serenidade que faziam parte de sua vida são atropelados pelos gestos inconseqüentes de Paul Michel.

Parte da obra do filósofo
é utilizada no livro


À medida em que a autora aproxima o estudante de seu escritor, numa peregrinação pela França cheia de suspense e rostos fechados, ela aproxima o leitor dela de Michel Foucault. Parte da vasta obra do escritor, morto em 1984, está lá, nas cartas que nunca foram enviadas, nos esquizofrênicos que perambulam pelos imaculados corredores de um hospício e, principalmente, na paixão atroz de Paul Michel, capaz de levá-lo a violar sepulturas, e em seu pessimismo diante das instituições, o que o leva a isolar-se e a viver como um nômade.

"Alucinando Foucault" é uma história tensa, como a própria paixão. O caráter autodestrutivo de Paul Michel apenas alimenta o medo que seu leitor sente de perdê-lo, principalmente depois que ele pensa tê-lo sob domínio, uma ilusão que leva, quase sempre, ao desespero dos apaixonados.