AS HISTÓRIAS DA HISTÓRIA REFLETIDAS NA MEMÓRIA DE UM REPÓRTER À MODA ANTIGA
(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em três de abril de 1999)
Em livro póstumo, Edmar Morel conta em sua vida a trajetória da imprensa
Histórias de um repórter, de Edmar Morel. Editora Record. 290 páginas. R$ 26
Há um outro Brasil, surpreendente e quase desconhecido, residindo nas entrelinhas históricas, naquele espaço que nunca é preenchido pelos livros didáticos. Para saber que país é este, tão injusto e cheio de desigualdades quanto o oficial, é preciso conhecer histórias como as que o repórter cearense Edmar Morel contou alguns anos antes de morrer, em 1989, um dia antes das eleições diretas pelas quais ele tanto lutou. Nascido em 1912, numa Fortaleza com “o pior serviço de bondes do mundo”, Morel esteve perto de tudo e de quase todos que foram notícia neste tumultuado século, não só no Brasil, mas em cenários dramáticos como a Europa devastada do pós-guerra, o barril de pólvora do Oriente Médio e...os campos de concentração do Paraguai.
A Segunda Guerra Mundial
vista pelos brasileiros
Para quem ainda acha que as práticas nazistas eram exclusivas de algumas bestas humanas, o último item incomoda. Tanto quanto a “beliscada”, situação em que homens, mulheres, velhos e crianças disputavam com cães e porcos os restos de comida na base aérea norte-americana em Pernambuco, durante a Segunda Guerra Mundial. Assim como o voto de cabresto, a truculência policial, o clientelismo e muita, mas muita corrupção – tudo narrado com a autoridade de quem esteve lá – a procura do almoço no lixo é mais uma prova de que a História neste país se repete com a regularidade dos chavões, tipo “celeiro do mundo”, “país do futuro” e outros menos votados.
Falando em Segunda Guerra Mundial, é curioso saber como repercutiu por aqui o famoso dia D, carnificina tão bem registrada no filme “O resgate do soldado Ryan” e que foi anunciada pela rádio Tupi, na madrugada do dia 6 de junho de 1944, com o chamado: “Brasileiros! Atenção!” A Tupi, na época, fazia parte dos “Diários Associados”, do poderoso Assis Chateaubriand e onde Morel trabalhava, nos jornais do grupo. Ele fala desse período, iniciado ainda no primeiro governo Vargas, em 1930, com muita amargura, e não esconde sua aversão ao caudilho gaúcho e aos crimes cometidos em sua ditadura. “Falam de 1964 e esquecem 1935”, referindo-se aos presos políticos. Morel lembra que os simpatizantes do nazismo tinham presença forte no Estado Novo, citando, entre outros, o general Góis Monteiro e o violento Filinto Muller, o chefe da Polícia Especial, uma versão tropical da famigerada SS de Hitler.
Morel, é claro, também fala de jornais, e muito. Quem não consegue imaginar uma grande redação hoje sem internet, notícias em tempo real e toneladas de releases, vai se deliciar com o método “pré-histórico” de se divulgar uma notícia importante até que saísse a próxima edição do jornal. Uma forte sirene tocava, atraindo a atenção das pessoas para um quadro-negro, afixado à porta do jornal, e onde se lia a notícia. Era este o método utilizado pelo “Jornal do Brasil”, primeiro emprego de Morel ao chegar ao Rio, em 1932, após uma viagem na terceira classe de um navio, entre bodes, vacas e um chão repleto de urina e vômito. Durou pouco tempo no jornal, cuidando de uma seção de obituários e demitido após uma briga em frente ao prédio em que trabalhava.
Texto conciso reflete a melhor
forma do estilo jornalístico
A partir daí, ele passou pelos principais jornais do país e conta como se desenvolveu a imprensa brasileira, em veículos como os já citados “Diários Associados”, “Última Hora”, “Tribuna da Imprensa”, uma série de jornais alternativos, sempre atacados pela repressão, e o GLOBO, jornal no qual Morel afirmou ter “aprendido a importância do furo, notícia de primeira mão”.
Ilustrado com fotos de Orson Welles, Getúlio Vargas (com cara de poucos amigos), coronel Valério (o guerrilheiro que fuzilou Mussolini), e outras figuras históricas, o livro tem um texto “enxuto”, para utilizar um jargão jornalístico, ou seja, claro, objetivo, com parágrafos curtos e sem firulas, apenas um ou outro superlativo, como “o maior chefe de reportagem do mundo” ou o “imbatível coronel Euclides Figueiredo”. A história narrada pelo jornalista Edmar Morel se confunde com a de todos os migrantes que chegam à cidade grande, munidos apenas com a esperança e tão bem retratados no livro pelo jornalista Barbosa Lima Sobrinho: “É sempre um cordão umbilical que se corta e uma saudade que nasce, para nunca mais morrer”.
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