terça-feira, 26 de agosto de 2008

MUITO ANTES DE ´LOLITA´, OUTRA NINFETA JÁ APRONTAVA NA LITERATURA DE NABOKOV

(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 14 de novembro de 1998)

Em ´Riso no escuro´, quarentão também se destrói por amar uma jovem beldade

Riso no escuro
, de Vladimir Nabokov. Tradução de Jório Dauster. Editora Companhia das Letras, 201 páginas. R$ 23

Assim como certos ministros têm obsessão por planos econômicos, muitos escritores acabam sendo marcados por um tema específico. A alta sociedade se embriagava nas páginas de Scott Fitzgerald, John Steinbeck retratou como poucos os problemas sociais pós-grande depressão e Edgar Allan Poe é referência para personagens sombrios e misteriosos. Vladimir Nabokov também escolheu como ser lembrado. Dezessete anos antes do surgimento de sua não tão ingênua Lolita, o escritor russo já demonstrava aversão por homens de meia-idade e casamentos estáveis. Lançado em 1938, numa época em que pedofilia era uma palavra pouco procurada nos dicionários, “Riso no escuro” é uma trágica história baseada na ilusão, naquele exato momento em que dois caminhos são oferecidos a uma pessoa, sendo que um deles esconde um abismo de auto-suficiência. “Ah, as coisas que vou ensinar a ela. Tão jovem, tão pura, tão enlouquecedora...”

Vida do protagonista ganha
traços irônicos e grotescos


Nabokov constrói o mundo perfeito, antes de destruí-lo sem dó. Sua vítima é Albinus, bem-sucedido crítico de arte de Berlim, vida estável, mulher bonita e inteligente, uma filha saudável, todos devidamente instalados numa confortável e bem-decorada casa, sempre freqüentada por pessoas igualmente do mesmo nível social e cultural e que apreciam aquela, até então, honrada família. As coisas começam a mudar quando uma adolescente de silhueta delgada, nenhum escrúpulo e um “extasiante calor animal” cruza o caminho de Albinus. A partir daí, o lado irracional enra em cena, realçado por uma ironia perversa, que pode se manifestar no casal que é confundido com pai e filha na praia ou no novo círculo de amigos, onde uma atriz chamada Dorianna Karenina expõe de forma eloqüente, apesar do sobrenome, sua ignorância ao responder uma pergunta sobre Leon Tolstoi. “Tol...o quê?”

Filha de um neurótico de guerra e de uma mãe também não muito boa da cabeça, Margot Peters, a tal adolescente, queria muito ser estrela de cinema, mas o máximo que conseguiu foi ser lanterninha de um. Menos mal, pois foi lá que conheceu sua vítima, da qual vai destruir o casamento, a dignidade e parte de seu patrimônio. Isso depois de um começo meio frustrado na vida de prostituta. Para ajudá-la, um desenhista ambicioso e cínico, que se faz de homossexual diante de Albinus apenas para poder se encontrar com Margot. Montadas as peças, a história segue um ritmo cujo final é imaginado, mas o autor deixa sempre a esperança de que a razão volte a aparecer, seja na figura do cunhado de Albinus, que ainda o procura, mesmo após ele ter abandonado a família, ou quando sua filha morre e ele começa a perceber como estava longe da realidade.

A nova vida de Albinus é detalhada com traços irônicos, que acentuam o tom grotesco das atitudes de um homem que sai de um universo requintado para entrar na vida de uma menina com caligrafia infantil, que não tomava banho todos os dias e tinha como empregada uma mulher enorme, “com braços que pareciam nacos de carne crua”.

Cegueira amorosa de Albinus
o leva ao cárcere privado


Em meio a tudo isso, a constatação de que “a morte parece ser apenas um mau hábito, que a natureza ainda não foi capaz de eliminar”, e a trama começa a dar sinal de que não terá um final nada tranqüilo. A cegueira em relação ao que acontece à sua volta torna-se real e Albinus se vê praticamente em um cárcere privado, cercado de exploração e acenturando sua figura patética. Mas o mundo real vai lhe dar uma chance e aí as reações serão completamente inesperadas.

A ficção não traz muitas referâncias ao mundo real. Cinema mudo, desemprego na Alemanha, Mussolini na Itália, indicam que a história deva se passar nos anos 20. A referência à própria situação do autor na época em que escreveu o livro, quando Nabokov morava na França, pode ser sentida quando um dos personagens se convence de que “há um momento na vida de um escritor em que ele deixa de necessitar de seu país”. Especialmente se na terra natal existir um crítico literário tão exigente, e impiedoso, quando Joseph Stálin.

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