quinta-feira, 25 de setembro de 2008

UMA SÁTIRA SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de dezembro de 1998)

Em sua estréia na ficção, biólogo aprofunda discussões morais sobre a clonagem

A lição de Prático
, de Maurício Luz. Editora Rocco, 275 pgs. R$ 23

Num dos momentos cruciais de “A lição de Prático”, o líder da Seita do Deus Único tenta convencer o mundo, através da rede de transmissão Multicom, que a clonagem de seres humanos provoca o crescimento dos crimes morais e substitui o medo da morte pelo medo da eternidade. Reynald VanBasten e seu grupo de fanáticos tinham invadido o Núcleo Central de Revitalizações, após violento combate, e procuravam atingir principalmente o conceituado Dr. Frederick Schnartz, ganhador de quatro prêmios Nobel e chefe do programa de revitalização, o processo que deixa o ser humano a um passo da imortalidade. Absurdo? Nem tanto, a julgar pelos profundos, e nada cansativos, dados científicos com que o biólogo Maurício Luz preenche sua sátira passada no ano de 2.065, uma época em que porcos praticavam atos terroristas e a Amazônia estava, como muitos sonhavam, devidamente internacionalizada.

Texto enriquecido pelo
conhecimento científico


Diferentemente do “admirável mundo” de Aldous Huxley, onde até mesmo a ciência “deve ser tratada como um inimigo possível”, a sociedade imaginada pelo estreante autor brasileiro concentra sua fé nos laboratórios e em homens como o Dr. Schnartz, ele mesmo um revitalizado que nascera no Natal de 1997 e desafia o próprio Deus, para ele “uma abstração, uma criação da mente humana, baseada no temor coletivo da morte”. Inflexível em seus objetivos, irônico e devastador nas opiniões, Schnartz é um personagem fascinante, mesmo que não se concorde com seus procedimentos, muitas vezes tão pragmáticos quanto eticamente suspeitos. Num mundo ainda dominado pelos Estados Unidos, é em torno de Schnartz que giram os debates sobre clonagem, assunto que o autor conhece bem e enriquece através de notas num texto quase todo construído com diálogos e notícias de jornal.

A selvageria, no entanto, não é uma constante nesse possível futuro, ainda que os problemas sociais permaneçam sem “antídotos”. Ela só se intensifica mesmo depois que o tal VanBasten destrói diversos clones, fazendo com que seus respectivos donos fiquem privados da revitalização, quando morrerem. A bizarra solução surge no projeto da doutora Giullia Tornatutto e suas experiências ilegais com porcos da raça Southern-New England. Ela consegue manter cérebros de humanos em corpos de suínos, pelo menos até que os clones desses humanos fiquem prontos – um período de oito anos, em média. Os revitalizados temporários (RTs), como são chamados, a princípio não causam problemas, mas logo sua integração à sociedade serã tão incômoda quanto as fezes que deixam pelos tapetes e calçadas, incapazes que são de controlarem voluntariamente seus “esfíncteres anais”.

Logo surgem casos como o do casal de RTs judeus Richard e Raquel Hirshc, metidos na pele de um animal não muito bem visto por sua religião, ou da dona de casa morta pelos próprios cães, esquecida da sua condição de emporcalhada, como também são chamados os RTs. Surgem dificuldades econômicas, como a queda das vendas da carne suína (afinal, o jantar pode se transformar num ato de canibalismo) e mesmo problemas comportamentais e sexuais, quando apenas um dos membros do casal é revitalizado.

Suínos se revoltam
contra seus criadores


Da humilhação, eles partem para a violência contra seus criadores e todos que têm alguma responsabilidade na nova, e nada agradável, vida que levam. Nesse momento, a história cai num enfadonho emaranhado jurídico e perde um pouco o ritmo. Nada demais. Logo Schnartz e seu modo desdenhoso de resolver problemas ressurge, mesmo diante de tantas turbulências: “Gente excitada é capaz de fazer loucuras”. Apesar de todas as bizarrices da história, Maurício Luz tem o mérito de não fazer de seu livro apenas uma divertida ficção científica. Ele aprofunda discussões morais e religiosas sobre a provável clonagem humana, numa sociedade ainda dividida entre ricos e pobres e, boa parte dela pelo menos, ainda crente em Deus, numa persistência incapaz de ser compreendida pela ciência. E, afinal, se você não estiver grunhindo ao final do livro, imaginar seres humanos agindo como porcos não é uma realidade tão distante deste nosso velho (e não tão admirável) mundo.

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