segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ROMANCE COM A PROSA TÍPICA DAS MESAS DE BAR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em quatro de maio de 2002)

Elvira Vigna conta histórias de crimes com texto leve e ágil

Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna. Companhia das Letras, 160 páginas. R$ 25

Tudo começa numa Nova York onde as pessoas mal se falam e continua num bairro perdido no passado, a Santa Teresa boêmia de sempre, dos casarões antigos e das ruas de paralelepípedos. Num dos casarões houve um crime, contado de várias formas pelo protagonista, que está sempre em busca de “um começo, um ponto de partida” e nunca sabe se suas viagens são de ida ou de volta.

Antes que se pense que este é um livro dirigido apenas às mulheres, como poderia sugerir o título, é preciso admitir que muitas das observações da fotógrafa Nita, que conta a história de um modo todo pessoal, sem obedecer aos cerimoniosos “começo, meio e fim”, serão entendidas de uma forma toda particular pelo público feminino. Mas o livro não discrimina ninguém.

Frases de impacto
separam parágrafos


Os detalhes são acrescentados aos poucos e dão a impressão de que tudo o que foi dito pode mudar completamente de sentido entre um parágrafo e outro. Parágrafos, aliás, muitas vezes separados por pequenas lamentações, observações críticas ou frases de impacto.

Com uma prosa leve e atraente, Elvira Vigna desvenda o sóbrio irritante das declarações de quem não tem o que falar na hora da morte (“para morrer basta estar vivo, dessa vida nada se leva, mais vale a nossa saúde...”) e descreve um domingo ensolarado e entediante, véspera de um exame de próstata às sete da manhã, como o pior dos infernos.

Um elemento estranho na narrativa é a extensa descrição do que aconteceu durante o noticiário de TV, visto de um apartamento de temporada numa noite solitária. Além da linguagem nada literária da decupagem de um programa de TV, o tom excessivamente irônico destoa do restante do texto, que muitas vezes é de uma informalidade típica das mesas de bar que retrata: “E que a verdade é que o fulano tinha tido um terrível piriri por causa de uma rabada na casa do sicrano, aonde ele fora sem avisar a mulher, porque ele estava de saco cheio da mulher.

Na memória de Nita, que iniciou a carreira no antigo “Correio da Manhã”, o crime de Santa Teresa funciona como referência para uma vida resgatada nos aparelhos de TV sempre sem som, nos apartamentos vazios e nas dificuldades quase intransponíveis de relacionamento entre as pessoas. Uma busca constante por afeto, por entendimento, que tanto pode se dar no calçadão da orla, em Santa Teresa, no Acre ou na fria Nova York.

Os momentos felizes não duram muito e parecem cercados de uma tragédia iminente. O ritmo é dinâmico como as reviravoltas na vida da protagonista, que muitas vezes parecem resumir seu cotidiano como se estivesse escrevendo um irônico diário às pressas: “Chegou de manhã bem cedo, fomos para o hotel, trepamos e depois saímos. Andamos, falamos bobagens, comemos porcaria”. A própria descrição do sexo deixa de lado qualquer tipo de lirismo e parece justificar o título do livro: “(...) eu notando pela primeira vez a existência de centímetros quadrados de mim que antes me eram insuspeitados e que, para minha surpresa, pareciam ser importantíssimos para ele (...)”.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

COMO SALVAR O MUNDO SEM DESTRUIR A FAMÍLIA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 27 de abril de 2002)

Hornby mostra com ironia quão difícil é na prática se solidarizar com os desabrigados

Como ser legal, de Nick Hornby. Tradução de Paulo Reis. Editora Rocco, 308 páginas. R$ 31

A irreverência e o bom humor de Nick Hornby fizeram muito sucesso por aqui há dois anos, em livros como “Febre de bola” e “Alta fidelidade”, este último responsável por uma epidemia de listas de melhores e piores sobre qualquer assunto. A prosa do autor inglês parecia ideal para um bate-papo no bar da esquina, tal a naturalidade com que ele falava de temas típicos de uma conversa de botequim, como futebol e problemas de relacionamento. Desta vez ele trata também de problemas amorosos, mas resolve ser mais profundo e usa o protagonista para acabar com a miséria do mundo. Para desespero da sua esposa.

Katie Carr descobre que está infeliz no casamento, mesmo tendo “dois filhos adoráveis, uma casa agradável, um emprego bom, um marido que não bate em mim e aperta todos os botões certos no elevador”. O problema é que o tal marido, David, é um sujeito extremamente irritante, que fala mal de todo mundo, de Pelé a Paul McCartney, e não dá muita atenção às dúvidas da esposa, uma médica que também já não sentia prazer na profissão.

Místico-curandeiro muda
a vida do protagonista


Felizmente a história não fica na neurótica rotina do casal. O toque de irreverência que Hornby empregou tão bem nos livros anteriores surge na figura do D.J. BoasNovas, um místico-curandeiro que resolve o problema da dor nas costas de David e dos eczemas de Molly, a filha do casal, apenas com massagens.

A amizade com BoasNovas, que vai morar na casa de David, para desespero de Katie e do outro filho deles, Tom, provoca uma mudança na personalidade de David. Se antes ele falava mal de todo mundo, agora busca ver o lado bom das pessoas. Para Katie, a mudança causa muito mais estranheza do que alegria, pois David aprende a “como ser legal” não apenas com a família, mas com toda a Humanidade.

A solidariedade passa a ser o tema dominante do livro, já que David e seu inseparável amigo BoasNovas resolvem iniciar uma campanha de adoção de desabrigados na rua onde moram. A campanha se expande depois com outras idéias, mas o principal é que Hornby mostra até que ponto o cidadão comum, principalmente nos países desenvolvidos, tem uma parcela de culpa na miséria. E isso tudo na medida certa, sem em nenhum momento parecer panfletário.

É claro que problemas surgem a partir das imensas diferenças entre os desabrigados e as pessoas que os adotaram, alguns com ruídos impressionantes durante a mastigação, outros com flatulência e outros ainda com um irresistível desejo de roubar quem os acolheu. “Quem diria que o desejo de melhorar o mundo poderia ser uma coisa tão agressiva?”

A idéia vai dando certo parcialmente e alguns dos desabrigados chegam mesmo a melhorar a vida de quem os abrigou. Só não melhoram a de Katie, que representa o cidadão comum, achando-se liberal e solidária, mas que diante de uma campanha radical se recolhe a um conformismo que prefere salvar o próprio casamento em vez da Humanidade. “Manter boas relações com quem sempre partilhamos o peru de Natal é que é um milagre”.

Katie é a personagem mais atormentada da história. É através dela que o autor revela sua intenção, que não é buscar soluções para resolver toda a miséria do mundo, mas sim um modo razoável de viver e salvar a própria família. “Aparentemente, o simples fato de sermos humanos já é suficientemente dramático para todos nós; não é preciso ser viciado em heroína ou poeta performático para vivenciar emoções extremadas. Só é preciso amar alguém”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

DOTE ACABA QUANDO ENTRA EM CENA O AMOR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 26 de janeiro de 2002)

Pesquisadora dos EUA estuda as mudanças nos pactos matrimoniais realizados no Brasil

O desaparecimento do dote - Mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600/1900, de Muriel Nazzari. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira, 358 páginas. R$ 37

É bem possível que a expressão "quem casa quer casa" tenha sua origem na prática do dote, tão comum nos casamentos brasileiros até meados do século XIX. Pois foi nessa época que fizeram a grande descoberta de que o amor também poderia, e deveria, fazer parte das ligações entre os cônjuges. O dote era, até então, parte integrante do pacto matrimonial, um grande empreendimento produtivo e que também tinha a função de ampliar as ligações familiares.

O ótimo estudo da pesquisadora americana Muriel Nazzari, tendo como ponto de partida a prática do dote nos EUA e na Europa, foi feito em São Paulo no início dos anos 80 e se limitou às famílias paulistas no período que vai do início do século XVII ao século XX. O trabalho se baseou em inventários e mostrou como a mulher teve papel fundamental no processo.

O dote nada mais era do que um adiantamento da herança de uma das filhas que iria casar, dado pelos pais ao novo casal - quase sempre em regime de comunhão de bens. Basicamente, ele se constituía de elementos produtivos: fazendas, escravos e bois. Como a Coroa não se envolvia muito nas atividades econômicas e administrativas de São Paulo, devido ao difícil acesso, o casamento era muito mais um acerto entre os clãs familiares, que dominavam o poder.

As famílias eram unidades empresariais e os casamentos nada mais do que alianças de negócios, uma questão de propriedade. E quem eram os maridos? Na maioria, faziam parte dos outros clãs importantes, ou então eram nobres fidalgos, que neste caso garantiam o "sangue azul" para a família e o embranquecimento da raça numa região de profunda mistura entre brancos e índios. "Na verdade, casar uma filha não significava perdê-la, e sim ganhar um genro".

O objetivo da pesquisa é descobrir por que o dote acabou. A situação, segundo a autora, começou a mudar no século XVIII. Até aquele momento, o dote era a melhor forma de um jovem solteiro iniciar sua atividade econômica, limitada na época às atividades agropecuárias. O sujeito se casava, recebia o dote e, mesmo que mal suportasse olhar para o rosto da esposa, tinha garantido uma existência material tranqüila e muito provavelmente uma vida conjugal infeliz.

A pesquisadora explica que as bandeiras, as expedições feitas pelos paulistas ao interior em busca de ouro e índios, começaram a mudar a situação. Além de haver uma outra possibilidade de enriquecer, o afastamento e a dispersão dos filhos diminuíram o poder patriarcal. A mudança se aprofundou no século XIX, quando atividades comerciais e o surgimento de profissões liberais tornaram o casamento, pelo menos boa parte deles, uma questão de opção entre os cônjuges e não mais um empreendimento. Os dotes diminuíram de tamanho e quantidade, até que o Código Civil de 1917 oficializou o seu fim.

Muriel diz que com isso a mulher perdeu a importância que tinha no casamento, pois ela era a principal responsável pela estabilidade econômica do casal, enquanto que as novas leis determinavam sua total dependência do marido, tornando a esposa "relegada à esfera doméstica", sem direito a usar o seu sobrenome de solteira.

Apesar de ser uma pesquisa profunda, com gráficos e números, o texto é leve e conta com glossário e várias indicações bibliográficas. A autora não se esquece, por exemplo, da literatura. Ela lembra que os escritores românticos do século XIX elegeram o amor como a melhor alternativa contra o dote.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O SHOPPING OU O SANTUÁRIO DO VAZIO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 17 de fevereiro de 2001)

Simone Campos descreve geração imbecilizada pela volúpia das compras

No shopping, de Simone Campos. Editora 7letras, 76 páginas. R$ 15

Dá para ler na Praça de Alimentação, entre o milk-shake e um big-qualquer-coisa. Mas, apesar de pequeno, "No shopping" não é de digestão fácil, como constata Yuri, um dos personagens que mostram a cara neste pequeno mundo de ar-condicionado forte, vitrines com a palavra "SALE" e ausência de luz solar: "É que nossa geração...veio assim de fábrica".

A autora Simone Campos, que escreveu o livro com apenas 17 anos, descreve a rotina de nerds e patricinhas como Yuri, Juliana e Delia com pessimismo. "Carregavam muitas sacolas e nenhuma culpa. Milhares de rostos cretinos formando uma estatística". Apesar de tanto já ter se falado sobre a geração shopping-center, a autora não esbarra no lugar-comum e até se dá ao luxo de algumas liberdades formais, como os parágrafos sem vírgulas, que expressam melhor a passagem desordenada do tempo na cabeça de seus personagens-consumidores.

Drogas vendidas na locadora, ladrõezinhos de classe média, um amor que chega meio torto, sem nenhuma sombra de lirismo, tudo gira em torno do shopping, cuja construção é ansiosamente aguardada e, como é ressaltado, construído por aqueles que jamais entrarão pela porta da frente.

Moral e ética, artigos que
não estão nas vitrines


Não há muito espaço para a inocência no livro de Simone Campos. "Eu sinto falta dos aniversários. De correr atrás dos outros pirralhos com alguma bobagem pessoal na cabeça". Os tempos, pelo menos da forma como vistos aqui, são realmente outros e a saudade pode muito bem ser substituída por festinhas incrementadas e sorvetes de baunilha e chocolate.

O shopping aparece como uma espécie de santuário mercantilista, onde almas ocas vão confessar suas culpas diante de um "deus" que lhes perdoa tudo, contanto que o cartão de crédito esteja em dia. "Delia entrou no templo, contrita. Examinou os grandes vitrais coloridos, límpidos, e suspirou à vista das imagens gloriosas. Havia uma música suave no ar. Pessoas saíam, já tendo contribuído financeiramente para a obra".

Moral, ética e outros artigos menos votados parecem desnecessários, até porque não podem ser expostos nas vitrines. O retrato, embora exageradamente ácido, mostra com clareza e falta de envolvimento, as relações superficiais de quem está ali não para trocar idéias nem expressar sentimentos. Apesar de não se aprofundar no assunto, já que o livro é quase todo formado de diálogos, a autora vê o shopping como a ponta de um iceberg de relações frias (sem trocadilho) e entediantes.

Simone Campos apresenta maturidade surpreendente para não cair na pasmaceira ideológica de culpar o sistema, a globalização e seu descarado estímulo ao consumo sem culpas. Ela simplesmente constata o que toda essa mistura pode provocar nos corações e mentes de toda uma geração, aliás, de sua própria geração. E a constatação é - apesar da euforia de quem sai cheio de sacolas de um shopping - impregnada de profundo pessimismo.

Globalização e consumo,
depressão e inutilidade


No final desse rápido passeio no shopping, fica mesmo a certeza de que a globalização, a informação em tempo real e o estímulo escancarado ao consumo fornecem material constante para se preencher o tempo, mas deixando espaço aberto para a depressão, a angústia e a certeza de que esse tempo poderia ser preenchido de forma mais interessante. "Ninguém mais é muito feio ou chato demais. Afinal tudo dura um momento. Não chega a doer".

terça-feira, 10 de novembro de 2009

CONTOS SOBRE A SAUDADE DO QUE NÃO HÁ DE VOLTAR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 27 de outubro de 2001)

Moutinho narra com profundidade e beleza ações introspectivas

Memória dos barcos, de Marcelo Moutinho. Editora 7letras, 76 páginas. R$ 15

Em vez de ações contínuas e de final imprevisto, os contos de Marcelo Moutinho têm como tema principal a saudade. E nos introspectivos monólogos de seus personagens, o autor evita o perigoso terreno do melodrama e faz da impossibilidade de tudo voltar a ser o que era um sentimento mais profundo.

Na história que dá título ao livro, por exemplo, os barcos azuis da infância do protagonista estão no mesmo local, "com uma ou duas mãos de tinta a mais", mas ele já vive em um outro mundo e a sensação de melancolia é inevitável.

Neste raro momento em que ele pode vislumbrar o passado de forma tão viva, entre uma e outra viagem a trabalho, até mesmo um cartão de Natal caído no chão assume as proporções de um livro de memórias, quando se enviavam cartas apenas pelo prazer de receber cartas de volta, "ávidos, incomensuravelmente ávidos, por algo ou alguém que eleve nosso nome".

A menina que se agarra à árvore plantada pelo pai, já morto e substituído por um sujeito que discute com a sua mãe todos os dias, também se refugia no passado, mas encontra no fantástico, emoldurado pelo livro "Flicts", de Ziraldo, a alternativa que a vida, concreta como ela só, não dá. "Era como se a porta de entrada do quarto fosse a porta de saída do mundo".

Personagens se movem
num mundo indiferente


Esse caráter introspectivo de boa parte de seus personagens, estranhos em um mundo cruel e indiferente, se manifesta por imagens fortes, simples e bem descritas. A felicidade nas histórias de Marcelo Moutinho é um ingrediente que só é convidado quando a imaginação do autor resolve enfeitar um pouco a realidade.

Assim, a velha história do sujeito que passa um entediante domingo vendo TV, lendo jornal e sentindo a segunda-feira chegar, ganha toques de originalidade quando uma estrela cai em sua sala. "Nomear, nomear, nomear o inteligível e o ininteligível, eis o nosso incessante desejo".

A angústia dos personagens permanece até mesmo no canário que passou a vida preso - inclusive acompanhando um de seus donos na prisão por 17 anos - e não consegue conviver com a liberdade, que aproveita nos dias de domingo, quando seu atual dono o deixa passear livremente pela casa. No entanto, quando está solto, o canário fica em silêncio, não canta e se explica ao leitor: "Se por todo o sempre estive cerceado, vivo a cantar minhas dores, não minha alegria".

Perto de uma vizinha que reclama dos sacos de lixo, o personagem de "Flores de inverno", conto de apenas um longo parágrafo, se sente um "náufrago de saudades indizíveis". E junto com ele e sua busca pelas flores que só nascem nesta estação do ano, a válvula de escape dos personagens dos demais contos pode estar tanto nos tais barcos azuis como em ruas de paralelepípedos e de terra batida. Ou na vitrine de uma padaria do Rio, onde Ana, recém-separada de Mário, busca o homem que a encantou e que só viu uma vez.

Sem apelar para chavões ou baixarias, os contos de Marcelo Moutinho se destacam pela leveza com que são contados, uma característica a se destacar principalmente devido à profundidade dos temas. Pois se não há aqui a história de ação constante e de final surpreendente, a ação se passa no mundo dos próprios personagens, muitas vezes ilusório e angustiante. Mas, afinal, talvez seja o único onde vale a pena estar vivo.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O CARISMÁTICO DETETIVE NERO WOLFE ENFRENTA CONFRARIA DE VELHOS AMIGOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 16 de março de 2002)

Personagem de Rex Stout aparece numa de suas primeiras histórias

A confraria do medo, de Rex Stout. Tradução de Álvaro Hattnher. Editora Companhia das Letras, 368 páginas. R$ 28

Quem sabe dizer até que ponto um personagem se confunde com seu autor? Algumas das melhores frases de Oscar Wilde saíram da boca do pedante lorde Henry Wotton, em “O retrato de Dorian Gray”, assim como o Nick Adams de Hemingway tinha um pai médico e adorava caçar e pescar, como seu criador, e para muitos o defunto autor Brás Cubas não transmitiu a nenhuma criatura o “legado da nossa miséria” simplesmente porque esta era a filosofia de vida de Machado de Assis.

Mas Nero Wolfe, um dos personagens mais carismáticos da literatura policial, é tão singular que é difícil associá-lo ao estilo de vida de seu criador, Rex Stout, um americano de Indiana, nascido em 1886, ativo participante de causas liberais em seu país e que quando morreu, em 1975, deixou dezenas de livros com sua principal criação.

Wolfe tem mania de cuidar
de suas preciosas orquídeas


“A confraria do medo”, de 1935, é uma das primeiras histórias em que Wolfe aparece. Glutão, bom bebedor de cerveja, é um homem com raro poder de intuição, profundamente sistemático quanto a horários e que raramente sai de seu escritório, em Nova York, deixando o trabalho nas ruas para seu ajudante, Archie Goodwin, narrador da história e que não se conforma por não ter metade da capacidade de raciocínio do chefe, mas se irrita muito quando Wolfe deixa de lado discussões importantes sobre um caso para cuidar de suas preciosas orquídeas ou apreciar um atlas.

A trama tem início numa brincadeira de mau gosto feita pelos colegas de Paul Chapin na faculdade e que lhe custou um defeito físico numa das pernas. Quando, muitos anos depois, alguns destes mesmos colegas começam a ser assassinados, as suspeitas recaem sobre uma possível e mórbida vingança de Chapin, já então um famoso romancista. Ao contrário de muitos livros policiais, os diálogos e a ação não ocupam o plano principal da narrativa de Rex Stout, que ganharia ainda muitos prêmios literários por sua sére de histórias sobre Nero Wolfe. O personagem ainda se manteria ativo mesmo após a morte do autor, numa continuação feita pelo escritor Robert Goldborough até meados dos anos 90.

As idas e vindas da investigação, descritas num texto sofisticado, são o que mais atraem na história e Rex Stout se aproveita de seu personagem principal para considerações de todo tipo, inclusive estéticas. “Assim, o artista tem de deixar de fora muitíssimo mais do que inclui, e uma de suas preocupações centrais é não deixar nada de fora que seja vital para sua obra”.

O autor não abusa da ironia em seu texto, mas quando a utiliza prefere não economizar no sarcasmo. “E se algum deles trouxer consigo algum objeto estranho, como um advogado, por exemplo?” O cenário principal da ação é o escritório de Nero Wolfe. Suspeitos, assassinos, policiais, outros detetives, praticamente todos passam por lá, em audiências com o personagem principal, que nunca fala de negócios na hora das refeições, sempre preparadas pelo fiel e excelente cozinheiro Fritz Benner, eficiente também para não se esquecer dos copos de leite de Archie.

Seu ponto fraco,
a imensa barriga


Por cuidar do ponto mais fraco de Wolfe, a imensa barriga, Fritz talvez seja a única pessoa que ele respeita, já que para as outras ele prefere expor sua superioridade de forma inteligente e devastadora, como nesta frase dita a Archie: “Deus nos criou, você e eu, bastante desiguais em alguns aspectos, e seria inútil tentar qualquer interferência em seus planos”.

Além de Fritz e Archie, já estão neste livro dois personagens que iriam acompanhá-lo sempre, o desconfiado inspetor Cramer, que nutre uma profunda admiração por Wolfe, e o nem sempre eficiente detetive Saul Panzer, às vezes empregado para ajudar Archie no “trabalho sujo”. Se é difícil dizer o quanto Rex Stout tirou de si mesmo para compor Nero Wolfe, ou mesmo se tirou alguma coisa, é certo no entanto que ele deu aos seus personagens tanta atenção que eles não sofreram a ação do tempo e se mantiveram sempre atraentes para o leitor, um caso raro na literatura.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

DUPLA QUENTE EM TRAMA ÁGIL DE TIRAR O FÔLEGO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 23 de fevereiro de 2002)

Patrick e Angie, criações de Lehane, atuam numa Boston dominada por gangues, políticos corruptos e contrabandistas

Um drink antes da guerra
, de Dennis Lehane. Tradução de Luciano Vieira Machado. Editora Companhia das Letras, 304 páginas. R$ 29,50

A vida de um escritor de romances policiais depende muito de seus heróis e vilões. Se dão certo, é inevitável que voltem em outros livros. Se não funcionam, desaparecem e muitas vezes levam junto seu criador, que é obrigado a mudar de profissão. Não foi o caso de Denis Lehane. O casal de detetives Patrick Kenzie e Angie Gennaro funcionou bem logo neste seu livro de estréia no gênero policial, lançado nos EUA em 1981, e lhe renderia mais quatro histórias.

O universo do livro é o das gangues de Boston no início dos anos 80. Um misterioso envelope roubado do escritório de um senador por uma faxineira e um projeto de lei contra os arruaceiros que fica emperrado dão partida à trama, conduzida pelo casal de detetives, que vivem uma paixão reprimida, principalmente devido à insistência da bela Angie em manter o casamento com um sujeito que a espanca pelo menos duas vezes por mês. “É duro fechar a porta da esperança quando se ama alguém”.

Neste livro, o autor deixa claro que a culpa é dos pais. Tanto o bandido quanto o mocinho sofreram nas mãos dos genitores quando crianças. O pai do detetive esfregou o ferro de passar roupa na sua barriga e o pai bandidão do menino que um dia seria chefe da gangue arrancou o filho dos braços da mãe e o levou para um senador corrupto satisfazer seus desejos mais bestiais.

Geralmente os personagens principais de um livro policial possuem algum ponto fraco. Patrick Kenzie, além da cicatriz na barriga, atira mal e sofre com a paixão não correspondida por Angie. E sua sócia, além de apanhar do marido, não sabe o que sente por Patrick. Para dar um toque exótico ao trabalho dos dois, o escritório fica no campanário de uma igreja.

Lehane é bom em diálogos e em cenas violentas, sempre relatadas com uma pontinha de ironia. Todo mundo apanha muito no seu livro. Patrick frequentemente está baleado, de queixo deslocado com hematomas por todo o corpo. Algumas cenas, como a da tortura de um informante da polícia, deixariam de estômago embrulhado até os veteranos repórteres daqueles jornais que saem sangue quando espremidos.

O autor não garante nenhum lugar seguro em seu livro, nem mesmo num movimentado centro comercial. Além do ritmo ágil dos diálogos, da boa caracterização dos personagens e da trama que prende o fôlego, Lehane escreve bem e faz algumas análises mais do que atuais sobre a situação política e social. “Toda a desgraça deste país é que está cheio de pessoas más, infelizes, confusas, de saco cheio, e já não existe ninguém que tenha a inteligência de encarar honestamente a própria situação”.

O personagem mais à vontade em toda a trama talvez seja Bubba. "Ele tem 1,90 metro de altura, por 105 quilos de adrenalina bruta e de raiva difusa". Contrabandista de armas, oferece proteção aos detetives, gosta de bonecos de Freddy Krueger, lê a revista "Receitas do anarquista", com dicas para se fabricar uma bomba de hidrogênio no quintal, e fica furioso quando o impedem de eliminar algum desafeto. Nos vingativos tempos pós-11 de setembro, talvez Bubba represente o ideal do "herói americano" mais próximo da realidade hoje.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

UM PADRE DEVASSO NA TERRA DO OURO


(Publicado na revista "Sênior", em outubro de 2001)

Entre a cruz e a espada - "A saga do valente e devasso Padre Rolim"
- Roberto Wagner de Almeida - Editora Paz e Terra - 200 pg - R$ 25,00

O que existe de lenda e de verdade na vida do padre José da Silva e Oliveira Rolim, um personagem não muito conhecido da Conjuração Mineira, é difícil dizer com exatidão. No poema “Romanceiro da Inconfidência”, Cecília Meireles diz do padre Rolim que “só Deus sabia os limites entre seu corpo e sua alma!” Mas a julgar pelo que o autor deste livro coletou a seu respeito, o padre Rolim estava muito mais para os prazeres da carne do que para a elevação da alma.

O jornalista Roberto Wagner de Almeida baseou sua pesquisa em vários autores importantes, mas principalmente nos “Autos de devassa da Inconfidência Mineira”. Nascido no Arraial do Tijuco (hoje Diamantina) em 1747, filho do poderoso primeiro-caixa da Intendência dos Diamantes, o padre Rolim era o mais rico dos conjurados, além de contrabandista, agiota, mulherengo e, segundo dizem, assassino.

Já no seminário, em São Paulo , o governador da Capitania, Lobo de Saldanha, alertava a rainha, dona Maria I, afirmando que Rolim estava “fazendo em diferentes noites com mulheres as funções mais ilícitas, com escândalo geral de todos os que delas tinham notícias (...)”. Seu único relacionamento duradouro foi com Quitéria Rita, filha da famosa escrava Chica da Silva, criada como uma filha pelo pai de Rolim. Como Quitéria consta que teve cinco filhos, embora só dois tenham sido identificados.

Os depoimentos mostram que o padre era um dos mais dispostos a colocar “pólvora no lugar da poesia”, organizando a luta armada da conjuração. Quando Joaquim Silvério dos Reis delatou o movimento, em 15 de março de 1789, Rolim estava no Arraial do Tijuco tentando reunir 200 homens armados para o levante. Fugiu, segundo dizem, com “dragão e farda da cavalaria”, conseguindo ficar foragido durante quatro meses.

Renato Wagner alerta para o erro de se chamar a Conjuração Mineira de inconfidência, palavra que, conforme a legislação portuguesa da época, significava o crime de infelidade ao soberano conhecido como lesa-majestade, bem diferente do que aconteceu em Minas.

Na segunda parte do livro, o autor se concentra em outra figura polêmica, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mostrando como surgiu a figura do mártir que se sacrificou pelos companheiros, não delatando ninguém e assumindo a culpa pelo movimento que liderara.

A versão de que Tiradentes não delatou ninguém cai por terra quando Renato Wagner cita os "Autos da devassa" e mostra que o alferes na verdade delatou, durante acareação, o padre Rolim, o único amigo que tinha na conjuração, e que até então vinha negando ter participado do movimento. "Como se pode entender que nenhum estudioso da Conjuração Mineira tenha, até hoje, descrito essa acareação em nenhuma das dezenas de obras publicadas?"

Tiradentes, conforme os depoimentos de testemunhas, convidava a todos que via pelo caminho a participarem do movimento, inclusive em tabernas. Talvez aí, segundo o autor, esteja a razão de ele ter sido o único a ser enforcado, já que na substituição da pena capital pela do degredo perpétuo, da rainha d. Maria I, só não teve perdão aquele que através de "discursos, práticas e declamações sediciosas" procurou "dispor e induzir os povos, por estes e outros criminosos meios, a se apartarem da fidelidade que me devem".

Quanto ao padre Rolim, seu destino foi bem diferente. Condenado à prisão em Lisboa, conseguiu a liberdade em 1802, dez anos depois, e voltou ao Arraial do Tijuco, onde viveu até sua morte, em 1835, aos 88 anos. Chegou a raver parte de seus bens sequestrados. Além do padre, apenas mais dois participantes de menor expressão da Conjuração Mineira viveriam para ver o seu País se tornar independente de Portugal, o grande sonho dos conjurados.