quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

TORTURA, DOR E REDENÇÃO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em oito de abril de 2006)

Livro reúne contos de autores brasileiros em que a crueldade é o fio condutor

Contos cruéis - As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organização de Rinaldo Fernandes. Geração editorial, 420 páginas. R$ 48,00

Como os apresentadores de telejornais gostam e advertir, este não é um livro indicado para pessoas de coração fraco. Tudo bem que em alguns dos 47 contos reunidos aqui a violência esteja apenas sugerida e insinuada, mas na grande maioria a crueldade aparece sem nenhuma máscara, com todos os seus cheiros, cores e ruídos explícitos.

“Feliz Ano Novo”, por exemplo, é violência pura do início ao fim, desde o diálogo dos bandidos que pretendiam comer farofa e galinha morta de um despacho de macumba até a festa de bacanas onde o ano começa com estupros e assassinatos por motivos fúteis. É Rubem Fonseca no seu estilo tradicional, de diálogos rápidos, texto conciso e muito realismo num ambiente urbano e quase sádico.

A ferida deixada pela
tortura durante a ditadura


Já Nélida Piñon, se não adota um linguajar tão pesado, toca numa ferida que ainda parece longe de ser cicatrizada: a tortura nos porões da ditadura. “A memória reviveu a tortura, a dor florescente, a cabeça estilhaçada em mil estrelas, a calça borrada de merda, a urina solta pelas coxas até alcançar a unha do pé”. No amargo relato a um tal de Zé, toda a amarga trajetória de Antônio é contada, um Antônio traído mas que foi incapaz de trair, e cujo corpo, símbolo não apenas do que sofreu, mas de sua própria identidade, nunca apareceu. “Nascemos iguais, mas cada máscara tem um desígnio cruel”.

Além de nomes consagrados, os autores reunidos neste livro pelo mesmo tema traduzem diferenças de idade e região. A cearense Tércia Montenegro, nascida em 1976, é um nome que tem tudo para ganhar cada vez mais espaço. Já tendo vencido alguns concursos, a jovem autora apresenta em “As casas de André” uma estrutura interessante, na qual a violência aparece de forma incipiente, perto de explodir, misturada a uma espécie de ternura dividida em doses iguais entre vítima e algoz.

Um dos melhores contistas contemporâneos, que andou esquecido por muito tempo mas que foi redescoberto há alguns anos, também está presente em um dos melhores momentos desta coletânea. Mineiro de Ituiutaba e traduzido para vários idiomas, o premiado Luiz Vilela nos oferece “A cabeça”, título de seu mais recente livro de contos, em que associa o aspecto sinistro da cena de uma cabeça de mulher no meio da rua à ironia, uma de suas marcas. Revela o desencanto com a condição humana, capaz de demonstrar indiferença e deboche sobre a inusitada situação.

Lygia Fagundes Telles, que dispensa apresentações, dá mostras do que pretende ao ambientar seu conto de nome singelo (“Venha ver o pôr-do-sol”) num cemitério abandonado, onde “nem os fantasmas sobraram”. É o local em que Ricardo e Raquel, ex-amantes, se encontram. Ele, pobre e ressentido, ela, determinada e disposta a usufruir do conforto que o marido rico lhe proporcionaria. Seu destino, cruel, muito cruel, já está traçado pela imaginação de nossa maior escritora viva.

“Sargento Garcia” foi extraído de “Morangos mofados”, talvez o melhor livro de Caio Fernando Abreu, o escritor gaúcho que este ano é lembrado pelos dez anos de sua morte. A tensão criada entre um sargento durão e um jovem metido a filosofar que pede dispensa do Exército explode numa relação homossexual dentro de um hotel barato. “Cheiro e suor de gente e cavalo, bosta quente, alfafa, cigarro e brilhantina”.

Erotismo presente em muitos
dos tetos da coletânea


O erotismo, aliás, está presente em muitos textos da coletânea, como em “Capitu sou eu”, de Dalton Trevisan, em que um distinto professor se afunda numa atração sexual por seu pior aluno, e em “A moça do sobrado”, de Domingos Pellegrini; “Pela franja verde”, de Bernardo Ajzemberg; e “Santinha Maria Goreti”, de Maria Alzira Brum Lemos.

Este último merece destaque porque toca num assunto que muito preocupa educadores: a influência que grupos de axé (e outros estilos) com suas letras maliciosas e lourinhas de shortinhos minúsculos exercem sobre meninas pobres no limiar de uma sexualidade precoce. Sem pai, mãe faxineira, já bonita de corpo aos 12 anos, Maria Goreti tem seis irmãos e precisa comprar fiado na quitanda de seu Alessandro, que sempre lhe dá chocolates. “Volta amanhã que eu tenho uma coisa boa pra você” é a deixa pra uma situação que se repete todos os dias em tudo que é canto deste país. O fim, no entanto, é uma espécie de redenção feminina.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A VÃ ILUSÃO DE PODER MUDAR O MUNDO


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 25 de março de 2006)

Personagem de Salim Miguel representa os anseios de toda uma geração

A vida breve de Sezefredo das Neves, poeta, de Salim Miguel. Editora Record, 354 páginas. R$ 40,90

Longe demais das grandes capitais, como na letra da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, o escritor Salim Miguel escreve de sua querida Florianópolis sobre um grande poeta criado por ele, síntese de um grupo de jovens que acreditava poder resolver “os problemas de nossa terra, de nosso estado, do nosso país, do mundo”. Uma vã ilusão, como o próprio escritor, parte fundamental desse grupo, atesta.

Salim Miguel tem uma trajetória peculiar na literatura brasileira contemporânea. Nascido no Líbano em 1924, foi ainda criança para Biguaçu, cidade da Grande Florianópolis. Na capital catarinense, para onde se mudaria e vive até hoje, participou de diversos movimentos culturais. Entre seus 25 livros publicados, um dos mais conhecidos é “Mare nostrum” (Record), finalista do prêmio Jabuti em 2005.

Em “Sezefredo das Neves”, Salim Miguel desenvolve uma estrutura narrativa que mistura memória, biografia, reportagem e romance, nunca definindo o que é realidade e ficção. Seu poeta é um poço de adjetivos: pálido, alto, magro, suave, agressivo, doentio, sonhador e infeliz, “como todos os poetas de antanho”, no caso das décadas de 40 e 50 da boemia intelectualizada de Florianópolis.

Romance foi reduzido de
450 para 350 páginas


O livro é a segunda versão do romance lançado pelo autor em 1987. Reduzido de 450 para 350 páginas, mistura personagens conhecidos dele e outros criados pelo autor, sendo que o protagonista, o frustrado Sezefredo das Neves, pura criação literária, simboliza os sonhos e ambições do aspirante a escritor que vai morar numa pensão barata, com dinheiro contado, originais engavetados em envelope pardo e muita cara de pau (que é necessária quando não se conhece ninguém) para se incluir nos grupos e panelinhas intelectuais. Um “Rimbaud caboclo” que se transforma em homem de negócios e deixa o romantismo para trás, perdido em alguma sombra do passado, lembrando uma “metamorfose aparentemente inexplicável”.

Não deixa de ser um livro nostálgico, um rito de passagem em que se percebe não apenas as marcas do tempo no rosto, no corpo e na voz, mas também nos hábitos e costumes da cidade que deixou de ser pequena. “O inevitável esbarrar-se com os conhecidos nos bairros, na rua-praça central sumira, lembrança para poucos de um tempo ido”.

Nesta turma, que admirava Mário de Andrade, Lorca, Pessoa, Drummond e o catarinense Cruz e Souza, sobraram vultos esmaecidos, “sonhos erradios entre sombras” e o medo de que todos se perderam e estão deixando um mundo ainda pior para os que viriam depois.

O nome Sezefredo das Neves ganha literalmente um corpo quando a dona da pensão onde ele se hospedara descobre uma maçaroca de papéis nas gavetas. “Pensei em jogar tudo fora”, diz ela, que resolve mudar de idéia pois gostava daquele sujeito excêntrico e inconstante, que entrega a papelada a um conhecido do poeta, que enfim a leva ao narrador desta história.

Vontade de realizar se choca
com incapacidade de fazê-lo


E, de fato, a história está quase toda contida naquela papelada velha e esquecida, mas não a história de um homem apenas, de um poeta pobre que se transformou num homem de negócios, mas sim de uma geração que poderia fazer parte da pequena Biguaçu, de Florianópolis, Rio, São Paulo ou qualquer lugar onde pessoas se reúnam com “uma vontade de realizar que se choque com uma incapacidade de fazê-lo”. A pergunta básica é: se os jovens não brigam e arriscam, o que serão quando ficarem velhos?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

VIAGEM GUIADA POR VIRGINIA WOOLF


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 11 de fevereiro de 2006)

Bivar mergulha no circuito e no clima do grupo de Bloomsbury, do qual a escritora fez parte

Bivar na Corte de Bloomsbury, de Antonio Bivar. Editora A Girafa, 528 pgs. R$ 65

Uma das grandes emoções de Antonio Bivar foi ter refeito o caminho percorrido por Virginia Woolf até o rio Ouse, onde a escritora inglesa, nome mais famoso de um grupo conhecido como “grupo de Bloomsbury”, se suicidou no dia 28 de março de 1941. Talvez tivesse tido tempo de olhar para trás, reconsiderar, desistir, pensa ele, mas ela não deve ter olhado para trás, saiu de casa decidida a fazer o que fez.

As memórias deste autor paulista, que escreveu, entre outras obras, um livro sobre o movimento punk (“O que é punk”, pela editora Brasiliense) e outro sobre Yolanda Penteado, de tradicional família paulista e grande incentivadora das artes (“Yolanda”, pela editora “A Girafa”), recaem sobre o grupo que se formou no bairro londrino de Bloomsbury, no início do século XX, e reunia, além de Virginia Woolf, nomes como o de John Maynard Keynes, um dos mais importantes economistas do século XX; Roger Fry, importante crítico e pintor britânico, e Dora Carrington, pintora que se envolveu com o escritor Lyttonn Sthrachey, outro membro do grupo.

Interesse pelo círculo
literário surgiu em 1993


Além de Bloomsbury, o grupo se encontrava em Charleston, no condado de Sussex, onde todos tinham casas de campo e anualmente acontece um importante festival literário na fazenda onde morou Virginia Woolf. Bivar conheceu a fazenda em 1993 e a partir daí seu interesse pelo grupo, iniciado com a leitura de “As ondas”, de Virginia Woolf, ganhou contornos mais emotivos e realistas.

A sede da fazenda, onde o autor esteve várias vezes, recebe milhares de visitantes todos os anos, gente atraída pela atmosfera que envolvia o famoso grupo e principalmente Virginia Woolf, que aparece em algumas das muitas fotos do livro e nome sempre relembrado no cinema, no teatro e na literatura. O filme “As horas”, baseado na vida de Virginia Woolf, deu o Oscar de melhor atriz para Nicole Kidman.

O relato de Antonio Bivar, extremamente minucioso nos detalhes, dá bem uma idéia de como os ingleses valorizam a memória de seus artistas, vivos ou mortos, abrindo suas casas para visitação, promovendo eventos em torno de seus nomes e — o que é inevitável — atraindo divisas para uma modalidade bem específica de turismo. Um tipo de trabalho que poderia ser seguido aqui no Brasil, país onde se destruiu a casa de seu maior escritor, Machado de Assis, no Cosme Velho, bairro da zona sul carioca.

O contato direto com descendentes de membros do grupo e estudiosos do mundo inteiro fez do festival e das escolas de verão oportunidade única para um contato mais próximo com o pensamento de uma época extremamente fértil para a cultura européia, o período entre as duas guerras mundiais, responsável também por uma “geração perdida” que se reunia em Paris e incluía gente como Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Pablo Picasso e Ezra Pound.

Peça de Harold Pinter
escandalizou o público


Uma das figuras presentes ao festival de Charleston foi Harold Pinter, Prêmio Nobel de Literatura de 2005, que fez a leitura de sua peça “Celebration” — segundo Bivar, “teatro do absurdo e da mais extrema crueldade na sua graça deslavada”. O texto, considerado grossíssimo, remete Bivar a uma matinê em 1967, no teatro Copacabana, vendo “Volta ao lar”, do mesmo Pinter, com Ziembinski e Fernanda Montenegro, um espetáculo chocante para o público carioca da época, “acostumado a uma Fernanda família, agora tão ‘depravada’”. O público de Charleston, ao que parece, também se escandalizou com Pinter.

Numa outra passagem, ele cita um debate realizado em torno da literatura brasileira, com a participação do poeta e ensaísta Felipe Fortuna, para quem “Paulo Coelho não é literatura brasileira” e que “seus livros são muito ruins, são horríveis”. No debate, a conclusão dos participantes ingleses é que Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos são autores difíceis. “O mais irritante nesse tipo de debate é o paternalismo imperialista em relação ao Terceiro Mundo: ele é fascinante desde que continue Terceiro Mundo”.

Música, guerra do Iraque
e Flip entre os temas


Mas o livro não se resume a Bloomsbury e suas diversas facetas. Profundo conhecedor do movimento punk, Bivar aproveita para falar de suas experiências em festivais, como o que assistiu na Inglaterra, com muitos “Fuck off Bush”, moicanos e trogloditas carecas e sem camisa. Dois atropelamentos, a morte da mãe, sua passagem pela Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, comentários sobre a guerra do Iraque e outros temas menores complementam o livro.

Apesar de algumas descrições um pouco cansativas e também de um certo exagero nos elogios aos seus ídolos (afinal, fã é fã), o livro serve tanto para uma iniciação ao grupo de Bloomsbury como também é um guia interessante para quem já o conhece, além de trazer muitas informações enriquecedoras sobre movimentos artísticos e personalidades como Oscar Wilde e Sigmund Freud.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

XADREZ DA VIDA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em sete de janeiro de 2006)

A trajetória de Edward Bunker, de bandido autodidata a escritor autodidata

Educação de um bandido, de Edward Bunker. Tradução de Francisco S. Inoccêncio. Editora Barracauda, 384 páginas. R$ 43

Ele tinha tudo para morrer na prisão, ambiente que freqüentou durante 18 anos divididos em três períodos. Mas Edward Bunker, americano até a alma, acabou se tornando um caso difícil de explicar, um homem que parecia fadado a se tornar mais um número na contabilidade dos fracassados e que foi salvo por uma turma que incluía Dostoievski, Jack London, Hesse e Camus – enfim, pela literatura.

“Há dois mundos onde os homens são despidos de todas as máscaras e se pode ver seu íntimo. Um deles é o campo de batalha; o outro é a prisão”, explica ele, que aos 17 anos tornou-se o detento mais jovem de San Quentin, uma das mais famosas e rígidas prisões dos EUA. Nascido em Hollywood, filho de uma corista e de um ajudante de palco, Bunker foi parar num internato aos cinco anos, após o divórcio dos pais. Lá começou sua “educação de um bandido”, quando um garoto o levou para saquear biscoitos e sorvetes no refeitório.

Dali em diante, Bunker foi apenas desenvolvendo seu “aprendizado”, roubando carros, usando e vendendo drogas, tornando-se gigolô e se impondo entre os bandidos mais durões, para isso aprendendo a lutar boxe. São muito interessantes suas divagações sobre como as habilidades com os punhos o ajudaram a ganhar respeito e ao mesmo tempo a se meter em encrencas, como quando sua rebeldia impulsiva o levava a ser surrado pelos guardas. “Senti o gosto de sangue do lábio cortado por meus dentes, e de minha mandíbula partiu um relâmpago de dor anunciando que ela fora deslocada”.

O mais curioso deste livro de memórias é que se perde a conta de quantas vezes Bunker entrou e saiu de prisões e reformatórios, com direito a solitárias e a punições severas, mas ao mesmo tempo pôde deixar esse mundo como um escritor importante no seu país, autor de bons livros como “Cão come cão” e “Nem os mais ferozes”. E engana-se quem espera encontrar apenas um estilo seco e direto, influência do meio em que viveu. O autor demonstra em boa parte do livro uma sofisticação e uma habilidade narrativas típicas de quem leu os clássicos, principalmente Dostoievski, que talvez por também ter levado uma vida atribulada e mergulhado nos complexos de culpa do ser humano seja o autor com quem mais se identifique. “Dostoievski faz com que você entenda os pensamentos de jogadores, assassinos e outros melhor que qualquer psiquiatra, incluindo Freud”.

Observador atento ao que se passava em sua volta, Bunker percebeu como a segregação racial de seu país acendeu o rastilho de pólvora que iria explodir nos anos 50, inclusive nas penitenciárias, onde antes havia uma certa irmandade racial (afinal, todos estavam no mesmo barco) e a partir daquele momento qualquer esbarrão entre um negro e um branco podia gerar um tumulto generalizado.

A proximidade com os condenados do corredor da morte também é testemunhada por ele com grande carga dramática, tendo como base teórica as “Reflexões sobre a guilhotina”, de Albert Camus, “talvez o mais pungente e certamente o mais belo ensaio escrito sobre a pena capital”. O autor presta atenção em peculiaridades como a última refeição dos condenados, geralmente um prato muito melhor do que a média mas que provavelmente não teria tempo de ser digerido. “Qual seria a sensação de ser atado a uma cadeira e deixado para morrer?”

O interesse do autor por cultura não se resumia à literatura. Há referências constantes ao jazz de Ella Fitzgerald e Billie Holiday e aos filmes das décadas de 40 e 50, época de ouro para o cinema americano, além de referências a pinturas e a obras de arte em geral. Boa parte de seus livros foi escrita na prisão e talvez por isso mesmo sejam carregados de intensidade e sofrimento, mas também de beleza.

Bunker, que participou do filme “Cães de aluguel”, de Quentin Tarantino, no papel de Mr. Blue, não esconde o orgulho por ter sido autodidata, extraindo conhecimento de onde pudesse, desde um jornalista bêbado que conhecera numa enfermaria até o livro “O diário de um escritor”, de W. Somerset Maughan. Se os métodos que o levaram à cadeia tantas vezes não são exemplo para ninguém, a perseverança em viver e a fé na arte são um modelo.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O TROVADOR SOLITÁRIO


(Publicado na agência Reuters em dezembro de 2000)

Ele queria levar a Legião Urbana até os 40 anos, daí até os 60 se dedicar ao cinema e depois ser escritor. Não deu tempo. Renato Manfredini Jr., mais conhecido como Renato Russo, ou simplesmente Junior para os pais, morreu em 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, vítima de complicações decorrentes da Aids. Mas o seu plano de vida reflete uma personalidade meticulosa, muitas vezes obsessiva, e que é descrita com detalhes pelo jornalista Arthur Dapieve em mais um livro da coleção “Perfis do Rio”.

“Renato Russo – o trovador solitário” vem se juntar a outros perfis de personagens que marcaram a vida do Rio de Janeiro de alguma forma, na coleção produzida pela editora Relume Dumará desde 1996, em convênio com a Secretaria Municipal de Cultura da cidade. Embora tenha montado a banda em Brasília, Renato Russo teve uma forte ligação com a cidade, pois passou a infância no Rio e depois voltaria, em 1985, logo após a banda gravar o primeiro disco, “Legião Urbana”, um arrasa-quarteirão que continha clássicos como “Ainda é cedo” e “Será”.

Dapieve abre seu livro com uma curiosa discussão na reunião do poderoso “Jornal Nacional”, da Rede Globo, em que uma indiferente Lilian Witte Fibe não concordava em dedicar metade da edição daquele fatídico 11 de outubro de 1996 ao líder da Legião Urbana. Foi convencida pelo então colega de apresentação do jornal, William Bonner, que ameaçou recitar os 159 versos de “Faroeste Caboclo”, a música que, apesar de seus nove minutos, tomaria conta das rádios em 1987, no LP “Que país é este 1978/1987”.

Ao narrar desde a infância introspectiva (“Eu aproveitava os dias de chuva”, diria numa entrevista) à serena fase final da vida de Renato Russo, o autor não esconde a admiração pelo músico que encarnava o mito autodestrutivo dos ídolos que morrem cedo, capaz de beber um copo duplo de Cointreau numa manhã ensolarada e de interromper uma excursão pelo meio, após quebrar tudo o que via pela frente num hotel de Natal, em 1992.

Dapieve, que conheceu o músico e acompanhou, como profissional, toda a ascensão do rock brasileiro à mídia nos anos 80, não entra em muitos detalhes sobre o pansexualismo, como o próprio Renato, que se descobriu soropositivo em 1990, definia a sua condição sexual. Prefere tentar explicar como o mito Renato Russo foi crescendo até sair de controle, provocando um efeito chamado “religião urbana”.

Neste aspecto, o livro, que traz cronologia e discografia, é indispensável até para os jovens que estavam nascendo quando Renato Russo conclamava a geração Coca-Cola a “cuspir de volta o lixo industrial de USA, nove às seis”.

VISÃO PECULIAR DE UMA HISTÓRIA DE PAIS E FILHOS


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de dezembro de 2005)

Autora inglesa faz de um menino notável o protagonista de romance recheado de ironia

A nona vida de Louis Drax, Liz Jensen. Tradução de Vera Ribeiro. Editora Nova Fronteira, 288 páginas. R$ 29

“Não sou como a maioria das crianças. Sou Louis Drax. Comigo acontecem coisas que não deveriam acontecer, como ir a um piquenique em que a gente se afoga”. Assim a escritora inglesa Liz Jensen apresenta seu conturbado personagem, um garoto propenso a sofrer acidentes e que passa a maior parte do tempo do livro em coma por ter caído (ou ter sido jogado) de um abismo. O livro trata basicamente da relação entre pais e filhos, mas de um jeito bastante peculiar.

Liz Jensen conta sua história em dois planos, na visão de Louis e do médico que monitora o seu estado de coma. A ironia é um dos pontos fortes do estilo da autora, capaz de criar frases e situação de identificação com quem já passou por uma escola. “Os professores fazem a gente cantar músicas idiotas e, na volta, alguém vomita no ônibus”. Jensen entra com muita naturalidade no universo infantil ao desenvolver um Louis Drax bastante crítico em relação ao comportamento de seus pais.
O grande atrativo do livro gira em torno do mistério que envolve o acidente de Louis no desfiladeiro. O garoto praticamente ressuscita depois do acidente. A autora desenvolve um estado de tensão permanente, pois Louis a qualquer instante pode recuperar a lucidez e contar o que realmente aconteceu. Enquanto isso, muitas coisas estranhas acontecem.

O pai de Louis, Pierre, some inexplicavelmente após o acidente e a mãe, Natalie, passa a ter um comportamento para lá de estranho, levantando a suspeita de que os constantes problemas do garoto não são tão inexplicáveis assim.

Certos bilhetes começam a aparecer, assinados por Louis e com a grafia do garoto, o que aumenta o mistério em torno de seu estado. Com a simplicidade da visão infantil do que ocorre ao redor, o estilo das cartas é bem direto. “Caro dr. Dannachet, o senhor devia estar cuidando de mim, mas só que transar com a minha mãe”. Mas quem escreve esses textos se Louis está em coma? É uma das “cartas na manga” que a autora reserva para o final.

Falta de adaptação das
pessoas “normais” ao mundo


O personagem secundário mais interessante da trama é Perez Gordão, amigo da família de Louis, que o descreve de todas as formas pejorativas possíveis. “Perez Gordão era velho, provavelmente tinha uns quarenta anos, e tinha uma carona gorda de bebê. Se a gente tivesse um alfinete, podia estourá-la e ia espirrar uma gosma amarela”.

É através desse misterioso personagem que Louis encontra o próprio reflexo para destilar suas opiniões mais espirituosas, numa espécie de espelho distorcido, mais velho, mais gordo e sem metade da sua inteligência e senso de humor. O livro aborda muito bem este tipo de relação, pois o próprio dr. Pascal vê em Louis sua imagem quando passa a sentir por ele um carinho e uma compaixão quase de pai para filho.
A autora mostra, de forma bastante interessante, até que ponto a falta de adaptação para o mundo das pessoas ditas normais pode ser um obstáculo ao desenvolvimento de uma criança notável. Afinal, nem todos têm nove vidas como Louis Drax.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A BUSCA PELA HISTÓRIA DA INFÂNCIA PERDIDA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 24 de dezembro de 2005)

Contos de Saturnino Braga realizam viagem repleta de saudosismo pelo passado do país

Contos de réis, de Roberto Saturnino Braga. Editora Record. 272 páginas. R$ 32,90

Cada período histórico tem a frase que merece. “Abra essa merda” foi a da proclamação da República, ou como se chamou a quartelada comanda pelo marechal Deodoro, seguido por tenentes e cadetes que tentavam atravessar o portão do quartel-general do Campo de Santana. O tenente, “que tinha ordens superiores de não abrir o portão” do quartel, acabou deixando passar a trupe que iria depor o imperador D. Pedro II e instalar a República que já nasceu velha.

O caso está relatado em “O tenente”, uma das histórias narradas pelo senador Roberto Saturnino Braga em “Contos de réis” numa prosa leve e agradável que mais parece saída de uma roda de amigos do interior, na qual o que menos importa é a verdade e sim aquilo que desperta a imaginação.

Pois se a frase dita no dia 15 de novembro de 1889 por um Deodoro aprumado na sela e de queixo esticado é verídica ou não, o que importa? Importa é que seu simbolismo perdure até hoje, jogada de vez em quando no ventilador quando os políticos brigam entre si na hora de repartir o butim do dinheiro público.

Da mesma forma, o político ingênuo do conto “O deputado”, que anseia por uma vaga na ambicionada Comissão de Orçamento do governo JK, ilustra bem o estrago que pode causar uma conversa entre políticos e jornalistas após algumas doses de uísque. “(...) mas sabia que palavras como irresponsável, leviano, inconfiável tinham sido ditas pelos chefes. Talvez bobo, ingênuo, deslumbrado. Deprimente”.

Boa parte da narrativa de Saturnino se passa no fim do século XIX, época em que a fé cega na ciência se manifestava de forma delirante, principalmente entre os adeptos do positivismo de Augusto Comte. É como pensa o doutor Lauro de “O médico”, que começa a prestar assistência às prostitutas da Lapa e leva tão a sério o rigor do método científico que desenvolve uma curiosa teoria sobre o saudável aspecto das polacas em relação às outras prostitutas. A ironia se concentra no comportamento sarcástico do colega Nelson ao ler seu relatório. “Essa, aliás, era uma das razões da sua hesitação, o medo do abagunçamento brasileiro das coisas sérias”.

Não há como negar o tom saudosista dos textos, não apenas por referências como a da babá de “A mãe”, que lê “O Cruzeiro” e a “Revista da Semana”, ouve o programa de calouros do Ari Barroso e leva os filhos da patroa para um passeio na praça em Copacabana, cujo único e raríssimo risco é ser atropelado por um bonde. O autor deixa bem claro que o passado não deixa de ser um confortável e seguro refúgio quando o presente se torna insuportável.

É o que sente o personagem de “O poeta”, mutilado por um acidente, que despeja sua irritação contra os hábitos modernos. “Hoje o traço é o imediato, eu quero agora, preciso agora mesmo, o narcisismo e o arrivismo, o estrelado, sobretudo na televisão (...)”. O poeta sente falta do tempo em que os meninos jogavam futebol de botão e colecionavam selos, instigavam a imaginação a brincar de realidade com toques de lirismo e fantasia.

No fundo é a própria busca da infância perdida, como está bem claro no último conto, “No que creio; no que não creio”, do adulto que lembra os passeios no canavial quando criança em Campos. “Muita coisa se aprende também pelo sentimento, a intuição que baixa sobre cada um”. Nem sempre a literatura exige a reflexão, às vezes ela só diverte, noutras nem isso, mas se ela tiver a capacidade de emocionar, já se justifica.