segunda-feira, 26 de abril de 2010

MAR PROFUNDO, DE ROMESH GUNESEKERA


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo" - versão online - no dia 26 de janeiro de 2007)

Mar profundo, de Romesh Gunekesera - Tradução de Ana Ban - Editora L&PM - 198 páginas - R$ 29

Doze anos depois de lançado, chega ao Brasil este premiado romance de estréia de Romesh Gunesekera. Nascido no Sri Lanka, uma pequena ilha ao sul da Índia, o autor situa sua história no meio das turbulências que culminariam na violenta guerra civil dos anos 80.

O narrador é Tríton, um garoto que é expulso de casa pelo pai após colocar fogo numa cabana do colégio onde estudava. O tio, então, o leva para a casa de um amigo da família, o sr. Salgado, onde iria morar e trabalhar. O garoto tímido se encanta com seu patrão, um biólogo conceituado, e começa uma história de aprendizado e amadurecimento contada com profunda sensibilidade. "Minha cabeça às vezes parecia mais cheia de palavras do que meus lábios jamais poderiam proferir".

Indo "além das fronteiras de seus sonhos", Tríton percebe que naquela casa iria aprender algo para ajudá-lo a transformar o mundo, ou pelo menos o seu mundo. O primeiro obstáculo, no entanto, se materializa em Joseph, o enciumado empregado que faz de tudo para atrapalhar a vida do rapaz. "Estava em cima de mim, duas vezes maior do que eu, espremendo a vida para fora do meu corpo e o ar do meu peito".

Mas Tríton encontra o seu destino na culinária, aprendendo e aperfeiçoando os exóticos e saborosos pratos do país. Se para a maioria dos amigos do sr. Salgado, muitos deles extremamente grosseiros à mesa, como Dias, Tríton era apenas um empregado que se irritava com a falta de educação de algumas visitas, para o sr. Salgado ele era mais do que um empregado, era uma mistura de aprendiz e amigo.

O biólogo abre sua biblioteca para o rapaz, onde ele mergulha com vontade, "sem nada além de uma voz presa ao papel, absorvendo uma idéia atrás da outra". A chegada da senhorita Nili vai mudar aquele "velho mundo de nós mesmos", a harmonia entre um homem moderno, porém solitário, e um garoto imaturo que só conhecia o amor dos bolos de amor que fazia muito bem.

Dona de uma risada contagiante, que "começava nos lábios e parecia escorregar garganta abaixo com um som de sucção", Nili chega como aquelas pessoas que ocupam todos os espaços de uma casa mas sem assumir uma posição arrogante. Para um garoto virgem em todos os sentidos, Nili representava o surgimento do amor, seja através de mensagens singelas, como um elogio, um toque de mão ou as mágoas compartilhadas

Mas tudo neste livro é sutil demais, velado, muito mais sugerido do que dito. Assim, amor, ódio, frustração, raiva, desencanto e outros sentimentos ficam sempre à beira da explosão, contidos em um erotismo incipiente. "Meu peito doía. Deve ter me visto parado ali, olhando para ela e, no entanto, não disse nada. O sangue pulsando dentro de mim me deixou surdo". A iminência da ação permanece até os capítulos finais, quando ela finalmente surge em seu desenlace dramático.

O autor desenvolve sua narrativa de forma bem lenta, como se estivesse preparando uma refeição das que Tríton costuma fazer, cheia de rituais e sutilezas que um forno microondas jamais conseguiria substituir. O ato de cozinhar é visto aqui como um jogo de sedução, bem longe da frieza insípida de um fast-food, esta invenção norte-americana cujo único resultado - além dos inevitáveis entupimentos de artérias e gastrites - é acabar com o prazer da sedução.

"O sabor não é produto da boca: localiza-se inteiramente na cabeça. Preparo cada prato para atingir a mente por meio de todos os canais possíveis". Tríton constrói o seu mundo em torno da cozinha, de onde observa o comportamento humano naquela que é uma das mais indispensáveis atividades: comer.

Enquanto o país está à beira de margulhar numa guerra civil, Tríton, o sr. Salgado e Nili vivem numa comunidade à parte da situação política, não indiferentes a ela, mas "apaixonados, independentes, hedonistas", e que construíram em torno de si uma rede de admiradores, gente que desejava o mesmo para si e que lhes prestava uma "adulação maliciosa".

Observador atento, Tríton percebe que tudo naquela vida terminava de forma abrupta, parecendo um sonho, como quando ele matou um passarinho com um estilingue e foi repreendido pelo sr. Salgado. "Sabe, você não deve tirar a vida de nada. Destruir é fácil, mas você não tem o dom de criar vida com a mesma facilidade". Com a vergonha enchendo cada veia do seu corpo, Tríton desejou estar morto naquele momento.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

AGRADÁVEL MERGULHO NO DELÍRIO POÉTICO DE UM CASAL


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 20 de janeiro de 2007)

Autora de ´No shopping´adota agora narrativa nada convencional para falar de personagens sempre na contramão

A feia noite, de Simone Campos. 7Letras, 104 páginas. R$ 23

Se no seu livro de estréia (“No shopping”), aos 17 anos, Simone Campos se deu ao luxo de algumas liberdades formais, ela agora adota por inteiro uma narrativa nada convencional em seu novo romance. Passado o inevitável estranhamento, o livro é um agradável mergulho no delírio poético vivido por Francisco e Maria Luiza, “menina que, ao completar dezesseis anos, espetou o dedo num fuso horário e nunca mais viu a cor do dia”.

Maria Luiza e Francisco, os protagonistas, tentam viver com o seu desamparo, melancolia e obsessões, cada um farejando o outro, como dois cães. “Era uma anomalia. Precisava gozar. Queimar sua ficha de catarse. Secar o óleo. E acordar de volta na própria pele.” O estilo é quase uma prosa poética, muito descritivo, muito reflexivo, construções que fazem pensar. Uma autora bastante sintonizada com o meio urbano e seus espigões monocromáticos, poeira fina, ausência de plantas e cigarras que sirenam nas transversais.

Debochada, boca sedutora, cabelos tosados a cinco reais, Maria Luiza é um jogo de referências modernas e embriagadoras, personagem que poderia ir para o palco ou as telas, mulher que não quer mais aceitar doces de estranhos ou entrar em seus carros com destino desconhecido, que curtia gordos mórbidos, tipos de ray-ban mascando chicletes e mulheres, “não as doces, mas mulheres más, de lábios apertados”, maduras e crianças ao mesmo tempo.

Personagem que não quer mudar o mundo, mas, por outro lado, uma incrível observadora, que tudo constata nos detalhes mais deprimentes, da fila de namoradas imprensadas no chapisco ao carro impregnado de bexigas amarelas e moças rindo escandalosamente. Maria Luiza só quer andar sem rumo, “sem projeto, sem eira nem beira como se diz”, fugindo da tristeza que se aproxima como um demônio, “especialmente à noite, às vezes em dias nublados”.

Neste ambiente sutil, impreciso entre ilusão e realidade, há uma busca constante e ao mesmo tempo uma vontade de se perder. Sempre na contramão, os personagens passam por cima de uma terra arrasada e flutuam por endorfinas, serotoninas. A proposital falta de objetividade da narrativa às vezes pode cansar um pouco, mas nada que atrapalhe muito este fluxo de consciência intermitente, porém muito bem escrito, amparado na indefinição da personalidade de Maria Luiza. Ela e Francisco talvez nada mais sejam do que dois alienados da realidade, ou dois cavaleiros errantes demais para entrarem em sintonia com o que os rodeia. "Você não sabe o que anda acontecendo porque você é o que anda acontecendo".

Talvez seja esta a intenção da autora, criar personagens meio sem rumo para viver todos os riscos com toda a liberdade de errar. Os dois temem as perspectivas, a família, tudo o que soa convencional demais, como as pessoas (pequenas e irreais vistas de cima) que riem como se as coisas fossem tranqüilas e certas. Querem ficar limpos de pensamentos, andar a esmo por uma cidade não deserta, mas desertada, e dormir por nocaute.

Caminhos de renovação e
originalidade


Aos que não querem se refugiar apenas nos medalhões e sim conhecer os bons valores da literatura brasileira anos 90 em diante, Simone Campos é uma boa pedida, assim como Marcelo Moutinho, Marcelo Mirisola, Antonia Pellegrino, Nelson de Oliveira, Daniel Galera e muitos outros. Um pessoal que, se não forma um movimento, trilha caminhos muito parecidos de renovação, originalidade e criatividade.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

TRAMA PORNOGRÁFICA COM ESCATOLOGIA E BOM HUMOR


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 11 de novembro de 2006)

Sexo anal - Uma novela marrom, de Luiz Biajoni - www.biajoni.notlong.com

Alguns títulos de livros seguem a linha do "parece, mas não é". Ou seja, chamam a atenção mas não têm nada a ver com o conteúdo. Não é o caso aqui, pois o autor dá o recado logo no início. Ao pedir desculpas pelo constrangimento, ele tranquiliza os leitores. "Jamais vou perguntar a qualquer um 'você leu minha novela?' pois, apesar de não parecer, eu tenho bom senso". Utilizando uma linguagem que em alguns momentos faz "O Doce Veneno do Escorpião", de Bruna Surfistinha, parecer literatura infantil, Biajoni (que também escreve no blog www.verbeat.org/blogs/biajoni) constrói uma interessante trama urbana altamente pornográfica, com alguns momentos escatológicos e muito bom-humor.

Virgínia, a protagonista, é uma jornalista iniciante que só sente realmente prazer quando faz sexo anal com seu namorado Luiz, um escriturário sem maiores ambições na vida. Um problema de hemorróida a leva a procurar um médico, dr. Júlio, e ali, no consultório, ela se deixa levar por suas fantasias e acaba traindo Luiz.

A jornalista tem a sua grande chance profissional quando o chefe a manda cobrir um crime que chocou a cidade: uma moça estuprada e esfaqueada por três bandidos. Sua vida se torna confusa, dividida entre a desconfiança de Luiz (para quem ela contou a aventura com o dr. Júlio), o estresse da cobertura, o assédio do médico e de Ana (uma amiga da faculdade apaixonada por ela) e a falta de dinheiro, que a obriga a pegar ônibus lotados todos os dias.

Além disso, ela vê seu segredo começar a "cair na boca do povo", pela indiscrição de pessoas que transaram com ela do seu jeito preferido e não conseguiram se conter. A jornalista começa a ver fantasmas por todos os lados e entra em pânico quando um dos estupradores, já preso e devidamente "amaciado" pelos policiais, grita para ela uma frase que vai atingir seu ponto mais sensível. "Ah, era o suficiente para vir-lhe um calafrio".

Biajoni faz também um interessante painel da rotina de um jornal popular de interior, aquele do tipo "se espremer, sai sangue". Enquanto o rival adota a linha de "não explorar a miséria humana", o jornal de Virgínia dava total prioridade à matéria do estupro, com a foto do criminoso na capa. "Cortem os quadrinhos, cortem os resumos das novelas, cortem toda a página de cultura se for preciso!".

Alguns diálogos poderiam ser mais bem trabalhados para ficarem mais naturais, há muitos erros de revisão (alguns gramaticais) e algumas situações inverossímeis, como o momento em que o colega de trabalho de Ana consegue facilmente o telefone de Luiz, sem nenhum questionamento.

O mais importante, no entanto, é que Biajoni conta bem a sua história, reunindo grande quantidade de personagens, quase todos bem construídos e relacionados de algum jeito à forma de prazer preferido de Virgínia. Quanto à linguagem, não esperem muitas metáforas. É bastante explícita mesmo (recomendo, inclusive, deixá-lo fora do alcance de crianças e de pessoas com muito pudor), mas nada gratuito, como às vezes acontece, mesmo com autores consagrados. O autor também não quer chocar ninguém, mas não usa meias palavras nas cenas de sexo que dominam boa parte do romance.

A leitura flui rápida, não apenas pelo interesse nos personagens, mas porque a linguagem de Biajoni traz momentos propositadamente exagerados, como é comum em textos de humor. Ele poderia ter desenvolvido mais o livro, pois, apesar de concluir sua história de forma satisfatória, ainda havia fôlego para as várias subtramas que cria. Mas o desabafo final de Virgínia, cheia de culpas, remorsos e dominada por suas fantasias, não deixou espaço para mais nada - ainda mais depois da última frase, romântica às avessas em todos os sentidos.

NA LITERATURA, ARTE E MÉTODO PARA A DESORIENTAÇÃO UNIVERSAL


(Publicado no caderno "Prosa & Verso", do jornal "O Globo", em 21 de outubro de 2006)

Escritores e intelectuais falam sobre livros que abalaram seus mundos

10 livros que abalaram meu mundo, de vários autores. Org: Julio Silveira e Martha Ribas. Editora Casa da Palavra, 144 páginas. R$ 28

Para comemorar seus dez anos de atividades, a editora carioca Casa da Palavra escolheu uma forma interessante de homenagear a si mesma e aos seus leitores. Fez a proposta, que resultou neste livro, de convidar dez autores ligados à editora para escreverem sobre o livro que "abalou" o seu mundo. "A vida nunca mais é a mesma depois que se penetra no reino das palavras", constata Ruy Castro, que escolheu "Alice no país das maravilhas", de Lewis Caroll - com o qual foi presenteado em seu aniversário de cinco anos.

Se a tarefa já é difícil para leitores comuns, o que dizer de José Mindlin, o bibliófilo que leu uma média de cem livros por ano durante 70 a 80 anos. Sua escolha recai sobre "Pai Goriot", de Balzac, uma das dezenas de obras que compõem a gigantesca "Comédia humana" do autor francês, e que o impressionou justamente porque Balzac, apesar de não ter tido filhos, conseguiu exprimir de maneira realista o sentimento paterno. "Parecia um pai descrevendo seu próprio drama. Aliás, todos os romances de Balzac dão ao leitor uma sensação de realidade e não de ficção".

Outro francês genial abalou o mundo de Milton Hatoum. O conto "Um coração simples", de Gustave Flaubert, entrou na vida do escritor amazonense quando ele tinha 12 anos, lido por Madame Liberalina, a senhora de 83 anos que lhe ensinava francês e morava numa casa repleta de livros. A cada releitura, "encontrava na vida das personagens uma elaboração complexa das relações humanas". Mas um dos motivos do fascínio de se relembrar um livro marcante é que sua primeira leitura é única, caso de "O primo Basílio", de Eça de Queirós, lido por Heloisa Seixas no período de férias entediantes e chuvosas na Bahia. "Pronto. Dera-se a mágica".

Gustave Flaubert e sua "Educação sentimental" deram a Sérgio Augusto, com apenas 18 anos, identificação plena com o protagonista Frédéric Moureau (da mesma idade), que se apaixona por uma mulher mais velha, “fantasia de qualquer jovem com um mínimo de sensibilidade e um excesso de moças imaturas e idiotas à sua volta”. Sérgio Augusto aproveita para dar informações interessantes sobre a vida de Flaubert (riquíssima de contratempos) e detalhes sobre a publicação do livro e a repercussão que ele teve.

Essa mesma afinidade entre leitor e escritor surgiu para Beatriz Resende no primeiro contato com Jean-Paul Sartre, ainda no segundo grau do Colégio de Aplicação da UFRJ, às vésperas do golpe de 64. Seu dilema era comum aos jovens dos anos 60 viciados em leitura, como ela: a literatura soava muito exclusiva de uma espécie de mundo adulto, “um universo meio esquisito, com uísque demais”. A estudante queria conhecer um autor que se preocupasse com o mundo mas também com os desejos de uma garota que queria ser dona de seu destino.

"A idade da razão", livro de Sartre e uma das bases do existencialismo, deu a Beatriz e a toda uma geração de jovens no mundo inteiro "a possibilidade de a literatura tratar de forma muito próxima questões para as quais dificilmente encontrávamos interlocutores". A liberdade e a tolerância, temas básicos da literatura e da vida de Sartre, um filósofo que realmente praticou a sua teoria, estavam presentes naquele livro que abriu o mundo da jovem estudante para caminhos e possibilidades até então completamente desconhecidos.

O livreiro Rui Campos opta, ao invés de escolher "o livro", por fazer um ensaio sobre a emoção de entrar numa livraria pela primeira vez, uma experiência que pode mudar a sua vida, diz. Já Lúcia Riff, embora também comece seu texto enumerando vários livros, escolhe "O deserto dos tártaros", de Dino Buzzati, lido por ela aos 30 anos e repleto de metáforas sobre as escolhas que fazemos de nossas vidas, um tema fundamental em qualquer idade.

O paraibano Braulio Tavares coloca a literatura de ficção-científica num patamar mais elevado do que o usual ao falar do livro "The encyclopedia of science fiction", avalizado por Isaac Asimov como a bíblia dos fãs do gênero. Seu artigo é praticamente um ensaio sobre o tema e com certeza vai surpreender muita gente que já leu ficção-científica sem saber.

O exercício de memória afetiva proposto neste livro dominou os próprios editores, que dedicam um espaço a seus livros mais marcantes: "Profession" é o conto de Isaac Asimov que abalou o mundo de Martha Ribas, e "O caso da borboleta Atíria", de Lúcia Machado de Almeida, o de Julio Silveira, fascinado pela história de um crime no mundo dos insetos.

Nina Schipper, que foi sócia fundadora da Casa da Palavra, mas já se desligou da editora, e o autor David Toscana, escolhem "A metamorfose", de Kafka, uma das histórias mais estranhas do século XX, sem dúvida, e que se encaixa perfeitamente neste livro. A história do sujeito que vira um inseto e percebe que sua transformação não modifica nada em sua volta é a própria "história de um aniquilamento", como diz Nina, marcada pelo livro já na primeira linha: "Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto." Um inseto, sem dúvida, cada vez mais presente no mundo competitivo em que vivemos hoje, cheio dos funcionários burocráticos infernais que tanto abalaram o mundo (num outro sentido) do autor tcheco.