terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

ARROZ COM FEIJÃO E CHUCRUTE


(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 16 de dezembro de 1995.)

Cronista brasileiro conta suas experiências na Alemanha e faz comparações entre as duas culturas

Um brasileiro em Berlim, de João Ubaldo Ribeiro. Nova Fronteira, 160 páginas, R$ 17

João Ubaldo Ribeiro parece não gostar mesmo de viajar na classe econômica. Pois logo no início de Um braileiro em Berlim, ele a compara a um vagão de búfalos, "exceção feita à comida, já que a dos búfalos e certamente melhor". Mais comentários sobre viagens aéreas surgem nas 16 crônicas do livro, que retrata as desventuras que o escritor e sua família viveram durante 15 meses na capital alemã. O dia-a-dia germânico se revela um prato cheio para um bom contador de histórias, que extrai curiosas comparações de duas culturas tão distantes quanto um prato de feijão com arroz e uma porção de chucrute.

Entre palestras e leituras em grupo, o escritor pôde conferir de perto a imagem desfocada que o Brasil tem no exterior. Afinal, qualquer criancinha européia ou americana já deve ter ouvido que por aqui as pessoas andam seminuas, dançam nas ruas e só pensam em sexo. O escritor, no entanto, acrescenta mais alguns dados a esse fecundo imaginário tropical.

João Ubaldo cometeu a gafe de dizer que nunca tinha visto um índio na vida. E que também não conhecia a Amazônia. Diante de indignados alemães, a nacionalidade do escritor chega a ser posta em dúvida. Mas eis que ele se redime e lembra que ainda vê uns 200 ou 300 índios por dia no Rio de Janeiro, isso sem falar no canibalismo. "Creio haver, certa feita em Nuremberg, percebido nervosismo numa companheira de mesa, cada vez que eu olhava para o braço dela e pegava o ketchup (mas resisti e não dei uma dentadinha nela)".

O apetite do leitor permanece aberto quando o escritor vira mestre-cuca e resolve temperar um pouco a vida dos gélidos alemães. Pratos como o churrasco Brandemburgo ou a caldeirada Unificação encheram de orgulho a culinária verde-amarela, embora algumas vezes os convidados se retirassem cobertos de suor para se abanarem sem casaco sob uma temperatura de 10 graus negativos, "volta e meia colhendo na sacada um punhado de neve para enfiar na boca".

João Ubaldo aproveita para dar uma dica às agências de viagens, quando descobre em Berlim um atrativo turístico específico para brasileiros: observar o respeito dos alemães pelos sinais de trânsito. "Isto é considerado uma absoluta e inédita maravilha, merecedora de horas de contemplação, comentários abismados e cartas estarrecidas para amigos".

Segundo ele, a diferença entre o trânsito germânico e o brasileiro pode ser resumida na história de dois alemães atravessando a rua, quando de repente surge um carro. Um alemão fala para o outro: "Não se assuste, que ele já nos viu". No Brasil, segundo o escritor, a frase correta seria: "Corra, que ele já nos viu".

A irreverência domina quase todas as observações sobre o cotidiano alemão e suas diferenças com a nossa amalucada rotina. Um simples passeio pelas ruas já traz uma flagrante constatação: ninguém olha para ninguém na Alemanha. Segundo o escritor, "os olhares que por acaso se cruzam são logo desviados, cada qual se recolhe em seu silêncio e eu fico meio solipsista". Ele lembra, inclusive, quando viu na rua uma mulher alta, vistosa e com uma roupa colante. Só percebeu que não estava numa esquisa no Leblon quando sentiu a indiferença em volta. "Já aqui, sinto uma espécie de privação sensorial", afirma, num desalento abismal.

O livro não se restringe somente às desventuras do escritor em Berlim. Algumas reflexões profundas sobre a relação incestuosa entre dinheiro e literatura dão o que pensar. O avião, inclusive, é usado como símbolo de divisão entre quem edita e quem escreve. Os editores na primeira classe e os escritores na econômica, com "nossa glória, nossa cerveja morna, nossos sanduíches ressequidos e nossas aeromoças tão doces de trato quando um sargento dos fuzileiros navais."

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

REDE DE INTRIGAS NO PALÁCIO


(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 14 de outubro de 1995)

Escritor diverte leitores ao imaginar uma seqüência apimentada para a doce história de Cinderela

Anastácia e Bonifácia
, de Flávio de Souza. Companhia das Letras, 208 páginas, R$ 18


Um belo dia, um príncipe encontrou um sapatinho de cristal e todo mundo conheceu a história de Cinderela. Finais felizes à parte, o livro Anastácia e Bonifácia, de Flávio de Souza, oferece uma seqüência ao clássico de Charles Perrault que deixaria qualquer fada-madrinha ruborizada. O texto não deixa dúvidas: a gata borralheira é tão boa e pura quanto uma pedra. E no Palácio Real, onde ela vivia com o Príncipe Ferdinando, a única lei seguida à risca estabelecia que ninguém era de ninguém

Flávio de Souza, que ficou mais conhecido como roteirista e diretor da peça Fica comigo esta noite, traz à tona um sórdido arquivo de cartas que comprometem a reputação da nobre donzela. Boa parte delas escritas por suas duas meias-irmãs, Anastácia e Bonifácia.

O livro subverte ao extremo o tão famigerado final feliz - o desfecho açucarado onde todos os dramas, ódios e paixões contados numa história somem como uma nuvem de poeira. O autor não hesita em acrescentar uma pitada de pimenta à versão tradicional da vida de Cinderela. Todas as podridões camufladas no interior dos personagens surgem e se cruzam, criando uma atmosfera de cinismo que envolve a todos, inclusive Cinderela (segundo o texto, Cindy para os íntimos).

A todo momento, a história da formosa donzela recebe uma alfinetada de descrédito e ironia. Numa das dezenas de cartas que compõem o texto, Anastácia conta para Bonifácia o que pensa sobre sapatinhos de cristal que se perdem e encantos que se quebram às doze badaladas. "Só mesmo uma cretina imbecil seria capaz de inventar tanta baboseira, e só um imbecil poderia acreditar".

A linguagem tacanha e grosseira faz jus à personalidade agressiva de remetentes e destinatários. Nesse verdadeiro correio de falsidade, Flávio de Souza foi extremamente impiedoso com o príncipe Ferdinando (no texto, Nandão para os íntimos), o anjo bom que encontrou os sapatinhos de cristal e tirou Cinderela da semi-escravidão em que vivia. Descrito como amante de orgias e homossexual enrustido, Ferdinando consegue ser dono de um dos textos mais horríveis que já surgiram na face da terra: "Cem vezes cem vezes precioza e bela, sem ti cinto-me metade sem cintido, Cinderella!!"

Outras pérolas de pura ignorância brotam da volúvel Anastácia, principalmente numa carta que dirige à mãe, Dona Inácia, a terrível madrasta de Cinderela. "Você sabe que eu sei que você sabe que eu sei que você assassinou o velho Castor com pequenas doses de veneno".

As opiniões da meia-irmã de Cinderela mudam muito rápido, mais rápido que política econômica, e outra característica de suas frases é a sutileza - comparável a de um batalhão de choque. "Você é podre. Mais podre que um monte de fezes de um rato morto pela mordida de um morcego, louco, rouco".

Nesse ambiente, onde a falsidade talvez seja o sentimento mais nobre, ou menos corrosivo, de todos, Cinderela é despida de todos os seus universais encantos. Despida literalmente, em muitos trechos. Classificada por Bonifácia como "tacanha, burrinha e simplória", a doce princesa do conto de fadas recebe uma penca de adjetivos nada pomposos. Na verdade, alguns bem imaginativos".

Além de ladra, a "taturana loira" é suspeita até mesmo de ser um...homem! Tudo bem que essa brilhante dedução partiu da mente já afetada de Anastácia, mas até que a explicação tem lá sua lógica. "Que candidato poderia ser melhor para um homem que gosta de homens do que uma mulher que é um homem?" Conjecturas à parte, a dedução nunca passaria a denúncia num lugar onde o Rei, Guilherme Ludovico Monterey Astrobaldo, governa segundo orientações dos astros, atravées de seu mago Banquo. Uma de suas projeções astrológicas, inclusive, deve ter influenciado todos os personagens dessa louca história. "O sol transita em Libra, a Lua cresce em Touro, enquanto Marte faz das suas em Virgem".

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

PASSAPORTE PARA O INUSITADO


De A a Z, "dicionário mostra histórias e casos tragicômicos tirados do dia-a-dia do turista

(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 23 de setembro de 1995)

Dicionário do Viajante Insólito, de Moacyr Scliar. L&PM, 120 páginas, R$ 16


"Quem viajou muito pode mentir com impunidade". Não se sabe se esse provérbio francês tem lá seu fundo de verdade, mas, sem dúvida, Moacyr Scliar o incluiu no Dicionário do viajante insólito por alguma forte razão. Talvez seja porque o livro - recomendado para qualquer tipo de viagem, até mesmo os 20 minutos da barca Rio-Niterói - é uma agradável mistura entre a realidade do viajante e a ficção do escritor.

O provérbio citado acima recebe a companhia de outras dezenas de frases espirituosas, sempre ao pé de casa página. Além delas, as ilustrações cômicas e o texto leve e bem-humorado de Scliar dão ao Dicionário a aparência de tudo - menos de um dicionário.

Na letra R, por exemplo, o autor fala sobre roteiro turístico. Nada demais, se um certo delírio literário não transformasse Moisés (aquele mesmo, dos Dez Mandamentos) em agente de viagens. O tour de Moisés, com destino ao Monte Sinai, seria guiado por uma nuvem de dia e uma coluna de fogo à noite. Segundo o livro, é um espetáculo imperdível, mesmo sendo de tarifa econômica.

Se a imaginação de Scliar viaja em muitas escalas do livro, experiências bem palpáveis também ganham o seu devido espaço. A visita à ex-prisão de Alcatraz, na Costa Oeste dos EUA, é um bom exemplo. Por um minuto, o autor sentiu na pele a terrível solitária de Alcatraz. "Não me lembro de outro minuto mais longo em minha vida", afirma.

O Dicionário comprova que o tão malfadado jeitinho brasileiro não se limita às fronteiras tupiniquins: "Turista brasileiro freqüentemente é esperto". Segundo Scliar, mal os filhos da Terra Brasilis chegam a uma cidade, descobrem qual a loja que vende mais barato, o restaurante onde se come melhor e como entrar de graça num museu.

Esse jogo de cintura não faria falta a nenhum tipo de viajante. Pelo contrário, seria muito bem-vindo, já que o livro constata que essa curiosa criatura está sempre pedindo informações, num inglês macarrônico, num espanhol incompreensível, num alemão arrevesado.

A ironia do viajado autor em relação aos turistas se manifesta de A a Z. As reservas não são feitas, as malas somem e as comidas exóticas provocam verdadeiras turbulências nos fígados e intestinos. Com roteiro ou não, o que deixa muitos turistas à beira de um ataque de nervos é o problema da reserva antecipada nos hotéis. O próprio autor do livro já foi vítima desse terrível problema, embora a situação que ele viveu tenha expandido as fronteiras do absurdo.

Ao pedir reserva num hotel de São Luís, no Maranhão, Moacyr Scliar teve que soletrar pacientemente seu sobrenome: S de Silveira, C de Carlos, L de Luís e assim por diante. Ao chegar ao hotel, a desagradável surpresa: a reserva não havia sido feita em seu nome, mas sim para o Silveira, o Carlos, o Luís...

Lógico que muitos leitores poderão duvidar dessa história de pescador, mas como o autor dedica o livro à esposa Judith, "que não me deixa - ou me deixa mentir", - basta entrar no clima bem-humorado que domina o Dicionário. Moacyr Scliar provoca o leitor com a agradável contradição entre o estímulo ao turismo, retratado em diversas e interessantes experiências, e a ridicularização das cenas de dia-a-dia do turista, onde na maioria das vezes o próprio autor é o personagem principal.

Essa contradição intencional se verifica até mesmo, ou principalmente, nas já citadas frases de pé-de-página. Se, por um lado, Gustave Flaubert faz uma recomendação sucinta e bem objetiva -, "Viagem: deve ser feita rapidamente" - Santo Agostinho esbanja filosofia: "O mundo é um livro. Quem não viaja, só lê uma página". O livro não pretende responder se viajar é bom ou não mas, ao que parece, Moacyr Scliar e sua insólita imaginação estão mais para Santo Agostinho do que outra coisa.