segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

REDE DE INTRIGAS NO PALÁCIO


(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 14 de outubro de 1995)

Escritor diverte leitores ao imaginar uma seqüência apimentada para a doce história de Cinderela

Anastácia e Bonifácia
, de Flávio de Souza. Companhia das Letras, 208 páginas, R$ 18


Um belo dia, um príncipe encontrou um sapatinho de cristal e todo mundo conheceu a história de Cinderela. Finais felizes à parte, o livro Anastácia e Bonifácia, de Flávio de Souza, oferece uma seqüência ao clássico de Charles Perrault que deixaria qualquer fada-madrinha ruborizada. O texto não deixa dúvidas: a gata borralheira é tão boa e pura quanto uma pedra. E no Palácio Real, onde ela vivia com o Príncipe Ferdinando, a única lei seguida à risca estabelecia que ninguém era de ninguém

Flávio de Souza, que ficou mais conhecido como roteirista e diretor da peça Fica comigo esta noite, traz à tona um sórdido arquivo de cartas que comprometem a reputação da nobre donzela. Boa parte delas escritas por suas duas meias-irmãs, Anastácia e Bonifácia.

O livro subverte ao extremo o tão famigerado final feliz - o desfecho açucarado onde todos os dramas, ódios e paixões contados numa história somem como uma nuvem de poeira. O autor não hesita em acrescentar uma pitada de pimenta à versão tradicional da vida de Cinderela. Todas as podridões camufladas no interior dos personagens surgem e se cruzam, criando uma atmosfera de cinismo que envolve a todos, inclusive Cinderela (segundo o texto, Cindy para os íntimos).

A todo momento, a história da formosa donzela recebe uma alfinetada de descrédito e ironia. Numa das dezenas de cartas que compõem o texto, Anastácia conta para Bonifácia o que pensa sobre sapatinhos de cristal que se perdem e encantos que se quebram às doze badaladas. "Só mesmo uma cretina imbecil seria capaz de inventar tanta baboseira, e só um imbecil poderia acreditar".

A linguagem tacanha e grosseira faz jus à personalidade agressiva de remetentes e destinatários. Nesse verdadeiro correio de falsidade, Flávio de Souza foi extremamente impiedoso com o príncipe Ferdinando (no texto, Nandão para os íntimos), o anjo bom que encontrou os sapatinhos de cristal e tirou Cinderela da semi-escravidão em que vivia. Descrito como amante de orgias e homossexual enrustido, Ferdinando consegue ser dono de um dos textos mais horríveis que já surgiram na face da terra: "Cem vezes cem vezes precioza e bela, sem ti cinto-me metade sem cintido, Cinderella!!"

Outras pérolas de pura ignorância brotam da volúvel Anastácia, principalmente numa carta que dirige à mãe, Dona Inácia, a terrível madrasta de Cinderela. "Você sabe que eu sei que você sabe que eu sei que você assassinou o velho Castor com pequenas doses de veneno".

As opiniões da meia-irmã de Cinderela mudam muito rápido, mais rápido que política econômica, e outra característica de suas frases é a sutileza - comparável a de um batalhão de choque. "Você é podre. Mais podre que um monte de fezes de um rato morto pela mordida de um morcego, louco, rouco".

Nesse ambiente, onde a falsidade talvez seja o sentimento mais nobre, ou menos corrosivo, de todos, Cinderela é despida de todos os seus universais encantos. Despida literalmente, em muitos trechos. Classificada por Bonifácia como "tacanha, burrinha e simplória", a doce princesa do conto de fadas recebe uma penca de adjetivos nada pomposos. Na verdade, alguns bem imaginativos".

Além de ladra, a "taturana loira" é suspeita até mesmo de ser um...homem! Tudo bem que essa brilhante dedução partiu da mente já afetada de Anastácia, mas até que a explicação tem lá sua lógica. "Que candidato poderia ser melhor para um homem que gosta de homens do que uma mulher que é um homem?" Conjecturas à parte, a dedução nunca passaria a denúncia num lugar onde o Rei, Guilherme Ludovico Monterey Astrobaldo, governa segundo orientações dos astros, atravées de seu mago Banquo. Uma de suas projeções astrológicas, inclusive, deve ter influenciado todos os personagens dessa louca história. "O sol transita em Libra, a Lua cresce em Touro, enquanto Marte faz das suas em Virgem".

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