quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

PASSAPORTE PARA O INUSITADO


De A a Z, "dicionário mostra histórias e casos tragicômicos tirados do dia-a-dia do turista

(Publicado no caderno "Idéias", do "Jornal do Brasil", em 23 de setembro de 1995)

Dicionário do Viajante Insólito, de Moacyr Scliar. L&PM, 120 páginas, R$ 16


"Quem viajou muito pode mentir com impunidade". Não se sabe se esse provérbio francês tem lá seu fundo de verdade, mas, sem dúvida, Moacyr Scliar o incluiu no Dicionário do viajante insólito por alguma forte razão. Talvez seja porque o livro - recomendado para qualquer tipo de viagem, até mesmo os 20 minutos da barca Rio-Niterói - é uma agradável mistura entre a realidade do viajante e a ficção do escritor.

O provérbio citado acima recebe a companhia de outras dezenas de frases espirituosas, sempre ao pé de casa página. Além delas, as ilustrações cômicas e o texto leve e bem-humorado de Scliar dão ao Dicionário a aparência de tudo - menos de um dicionário.

Na letra R, por exemplo, o autor fala sobre roteiro turístico. Nada demais, se um certo delírio literário não transformasse Moisés (aquele mesmo, dos Dez Mandamentos) em agente de viagens. O tour de Moisés, com destino ao Monte Sinai, seria guiado por uma nuvem de dia e uma coluna de fogo à noite. Segundo o livro, é um espetáculo imperdível, mesmo sendo de tarifa econômica.

Se a imaginação de Scliar viaja em muitas escalas do livro, experiências bem palpáveis também ganham o seu devido espaço. A visita à ex-prisão de Alcatraz, na Costa Oeste dos EUA, é um bom exemplo. Por um minuto, o autor sentiu na pele a terrível solitária de Alcatraz. "Não me lembro de outro minuto mais longo em minha vida", afirma.

O Dicionário comprova que o tão malfadado jeitinho brasileiro não se limita às fronteiras tupiniquins: "Turista brasileiro freqüentemente é esperto". Segundo Scliar, mal os filhos da Terra Brasilis chegam a uma cidade, descobrem qual a loja que vende mais barato, o restaurante onde se come melhor e como entrar de graça num museu.

Esse jogo de cintura não faria falta a nenhum tipo de viajante. Pelo contrário, seria muito bem-vindo, já que o livro constata que essa curiosa criatura está sempre pedindo informações, num inglês macarrônico, num espanhol incompreensível, num alemão arrevesado.

A ironia do viajado autor em relação aos turistas se manifesta de A a Z. As reservas não são feitas, as malas somem e as comidas exóticas provocam verdadeiras turbulências nos fígados e intestinos. Com roteiro ou não, o que deixa muitos turistas à beira de um ataque de nervos é o problema da reserva antecipada nos hotéis. O próprio autor do livro já foi vítima desse terrível problema, embora a situação que ele viveu tenha expandido as fronteiras do absurdo.

Ao pedir reserva num hotel de São Luís, no Maranhão, Moacyr Scliar teve que soletrar pacientemente seu sobrenome: S de Silveira, C de Carlos, L de Luís e assim por diante. Ao chegar ao hotel, a desagradável surpresa: a reserva não havia sido feita em seu nome, mas sim para o Silveira, o Carlos, o Luís...

Lógico que muitos leitores poderão duvidar dessa história de pescador, mas como o autor dedica o livro à esposa Judith, "que não me deixa - ou me deixa mentir", - basta entrar no clima bem-humorado que domina o Dicionário. Moacyr Scliar provoca o leitor com a agradável contradição entre o estímulo ao turismo, retratado em diversas e interessantes experiências, e a ridicularização das cenas de dia-a-dia do turista, onde na maioria das vezes o próprio autor é o personagem principal.

Essa contradição intencional se verifica até mesmo, ou principalmente, nas já citadas frases de pé-de-página. Se, por um lado, Gustave Flaubert faz uma recomendação sucinta e bem objetiva -, "Viagem: deve ser feita rapidamente" - Santo Agostinho esbanja filosofia: "O mundo é um livro. Quem não viaja, só lê uma página". O livro não pretende responder se viajar é bom ou não mas, ao que parece, Moacyr Scliar e sua insólita imaginação estão mais para Santo Agostinho do que outra coisa.

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